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BBB sem sexo e com caso de suicídio, reality shows da Ásia são avesso do formato

Programas como Terrace House e Casamento às Cegas Japão também não têm as brigas de costume

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Cartaz de divulgação de 'Casamento às Cegas Japão'

Cartaz de Casamento às Cegas Japão, reality show da Netflix Netflix/Divulgação

São Paulo

Enquanto disputam provas para ter a chance de sair de uma ilha deserta batizada de Inferno e desfrutar de encontros românticos num hotel luxuoso, jovens exibem seus corpos sarados à procura do amor verdadeiro.

Esse poderia ser mais um reality show de pegação como Big Brother Brasil, De Férias com o Ex, O Crush Perfeito, The Circle ou Brincando com o Fogo, que premia os que aguentam ficar mais tempo sem transar.

Mas essa é a descrição de Solteiros, Ilhados e Desesperados, produção sul-coreana que reforça o catálogo de realities de origem asiática da Netflix que são o avesso do formato que o holandês John de Mol, da Endemol, criou na virada do século.

Há, ainda, Casamento às Cegas Japão e Terrace House, também nipônico, que foi cancelado depois de uma de suas participantes se suicidar.

Casal em cima de uma ponte com rosas em cena de Casamento às Cegas Japão
Cena de Casamento às Cegas Japão, da Netflix - Divulgação

São programas que refletem o modus operandi de uma sociedade que não tolera pegação, briga nem qualquer outro elemento picante que esculpiu no imaginário popular a imagem de um reality, numa tendência contrária a dos brasileiros, que criticaram o BBB deste ano por falta de emoção, isto é, dos quebra-paus homéricos que marcaram a edição passada com Karol Conká.

Prova disso é que o ponto alto de Solteiros, Ilhados e Desesperados é o beijo que Kang Soyeon, dona de uma academia de boxe de 33 anos, dá na bochecha de Oh Jintaek, um empresário de 29 anos. O rapaz pergunta se poderia dividir a mesma cama com a moça, que noutro momento faz uma massagem nas costas dele.

São atitudes que passariam batidas entre os brasileiros, mas bastaram para que os comentaristas do programa, quatro celebridades sul-coreanas, ficassem com os olhos esbugalhados de constrangimento.

Nick Farewell, escritor e roteirista sul-coreano que vive no Brasil desde os 14 anos, diz que o reality é um reflexo realista da sociedade coreana. Ele lembra que certa ingenuidade também é vista nos k-dramas, as novelas sul-coreanas, com "personagens que têm 20 anos nas costas, mas mal conseguem pegar na mão um do outro", e no k-pop, universo da indústria musical em que namoros não são bem vistos e acabam até proibidos pelas gravadoras.

Não que os conflitos não ocorram, diz o roteirista. É que eles ficam escondidos nos bastidores, num reflexo da "moralidade" e da "política de boa convivência e de respeito ao próximo" que imperam na Coreia do Sul.

O reality, lançado em dezembro, chegou ao ranking das dez produções de TV mais vistas da Netflix mundo afora, lista em que permaneceu por três semanas. Foi o programa sul-coreano de variedades de maior sucesso no streaming.

É a fórmula que funciona no país, diz Farewell. Change Days, que não foi lançado no Brasil, ousou um pouco mais e foi acusado pelo público de influenciar divórcios. O programa acompanha três casais à beira da separação indo a encontros para decidirem se querem mesmo romper o relacionamento ou se vão reatar.

O divórcio, que ainda é um tabu em alguns países asiáticos, também é retratado por Casamento às Cegas Japão, lançamento de fevereiro em que parte dos participantes, divorciados, vão ao programa à procura de um novo amor.

O estudante Felipe Arantes, que faz parte da comissão de jovens da Bunkyo, uma entidade brasileira de cultura japonesa, diz que o reality já é visto com desconfiança por parte dos japoneses, em especial os mais velhos, por quebrar a tradição de que o laço familiar não pode ser rompido.

O programa, se é que é preciso dizer, tampouco tem cenas de sexo ou intrigas. "O Japão é muito bom em varrer as coisas para debaixo do tapete", diz Arantes. "Já vi programas japoneses em que os casais estão debaixo dos cobertores, mostram poucos segundos, e a gente só descobre o que acontece por conversas entre eles."

Uma das principais polêmicas do reality girou em torno do cabelo de um dos participantes, colorido, que levou sua noiva a ter medo de apresentar o rapaz aos pais. "Tem uma expressão japonesa que diz que o prego que se destaca é martelado para baixo. Desde pequenos, os japoneses escutam que têm que ser iguais uns aos outros", Arantes lembra.

A preocupação em "não ser martelado" também é vista entre os participantes do Terrace House, em que três homens e três mulheres dividem uma casa. A produção, criada há dez anos, foi cancelada no ano retrasado depois que uma de suas participantes se suicidou.

Era Hana Kimura, uma lutadora de 22 anos que sucumbiu à enxurrada de críticas que recebeu nas redes sociais depois de ter brigado com um colega que lavou e estragou uma de suas roupas. O público a cancelou e não a perdoou, diferente do que ocorreu com Conká no BBB, que, no Japão, "não seria perdoada e talvez também tivesse cometido suicídio", diz Arantes.

Na Coreia do Sul, não é diferente. A participante mais querida do Solteiros, Ilhados e Desesperados recebeu críticas tão duras quanto Kimura porque usava roupas falsas de marcas de luxo. Mesmo depois de pedir desculpas, ela precisou sair das redes sociais e perdeu o emprego de influenciadora digital.

Hana Kimura, lutadora e participante do reality show "Terrace House"
Hana Kimura, lutadora e participante do reality show japonês Terrace House - Divulgação

Episódios como esses lembram que o cyberbullying é um problema grave na Coreia do Sul e no Japão, que estão entre os países com as maiores taxas de suicídio do mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Em 2019, o Japão registrou uma taxa de mortalidade por suicídio de 15,3 por 100 mil pessoas. Na Coreia do Sul, a taxa foi de 28,6 por 100 mil habitantes. É um número alto se comparado ao do Brasil, que ficou em 6,9 a cada 100 mil pessoas.

Terrace House foi cancelado depois do suicídio, mas os outros programas seguem a todo vapor. A próxima temporada de Solteiros, Ilhados e Desesperados, que levou ao cancelamento da influenciadora, já está confirmada.

É que, embora possam parecer distantes demais de parte do público da Netflix, as diferenças culturais vistas nesses realities são a razão para o seu sucesso, na avaliação de Fábio Lima, criador da Sofá Digital, uma agregadora de conteúdo sob demanda que trabalha com serviços de streaming como a Netflix.

No Brasil, por exemplo, além de receberem os órfãos do BBB que procuram outros realities, esses programas atendem a uma demanda crescente por conteúdo de viés conservador, na esteira dos k-dramas, diz Lima.

"Existe um segmento grande de jovens com uma visão mais conservadora que se veem nesses programas. No Brasil, isso vem na onda até do gospel e do sertanejo, mais conservadores do que o pop, que são os maiores gêneros musicais do país."

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