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'Ela Disse' mostra abusos de Harvey Weinstein sem mostrar face do agressor

Filme parte de investigação de duas repórteres do New York Times sobre as acusações de estupro contra o produtor

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Lúcia Guimarães
Nova York

O rosto do produtor Harvey Weinstein não aparece durante as duas horas e nove minutos de "Ela Disse", o filme baseado no livro homônimo de duas repórteres do New York Times sobre a apuração das acusações de estupro e abuso sexual contra o poderoso fundador do estúdio Miramax.

Dirigido por Maria Schrader, "Ela Disse", que tem previsão de estreia para 8 de dezembro no Brasil, termina antes da explosão mundial do movimento MeToo que se seguiu à publicação do furo das jornalistas Jody Kantor e Megan Twohey, ganhadoras do prêmio Pulitzer.

Carey Mulligan e Zoe Kazan em cena do filme 'She Said', dirigido por Maria Schrader
Carey Mulligan e Zoe Kazan em cena do filme 'She Said', dirigido por Maria Schrader - JoJo Whilden/Divulgação

A escolha da diretora alemã e da roteirista Rebecca Lenkiewicz de não apresentar cenas explícitas de violência sexual e reduzir ao mínimo a presença de Weinstein —ele é vivido por um ator, de costas— confere potência e sutileza ao drama das mulheres que as repórteres passaram quase um ano tentando convencer a contar suas histórias.

Harvey Weinstein cumpre pena de 23 anos em Nova York e enfrenta agora um novo julgamento criminal em Los Angeles que pode somar décadas à primeira sentença, decretada em 2020.

A versão de cinema do relato histórico, que tem Carey Mulligan no papel de Twohey e Zoe Kazan no papel de Kantor, toma liberdades dramáticas, mas distingue "Ela Disse" de outros celebrados filmes sobre jornalismo, como "Todos os Homens do Presidente", "Spotlight: Segredos Revelados" e "The Post".

Pela primeira vez, o fio condutor da narrativa é concentrado em mulheres e, sobretudo, nas vítimas de Weinstein que não eram atrizes famosas —eram produtoras, assistentes e foram esmagadas por ele com ameaças e advogados.

Das atrizes conhecidas que Weinstein estuprou ou assediou, apenas Ashley Judd vive o próprio papel, em cenas que ilustram sua decisão crucial de contribuir como fonte pouco antes da publicação da reportagem original, em outubro de 2017, provocando um efeito cascata de novas denúncias que selaram a sorte do produtor. A voz real de Gwyneth Paltrow é ouvida num telefonema da atriz com Zoe Kazan, papel de Jodi Kantor.

O estilo sóbrio da diretora europeia e o tom da narrativa, sem glamour ou heroínas fáceis, sugerem uma ironia —"Ela Disse" é um filme que Harvey Weinstein poderia ter produzido no passado, quando fundou o estúdio independente que trouxe nova sensibilidade a Hollywood e acumulou dezenas de prêmios no Oscar. Uma porta-voz do produtor fez piada sobre o fato de que "Ela Disse" fracassou feio na bilheteria no primeiro fim de semana.

Não há relação entre filmes que resistem à passagem do tempo e sucessos imediatos de público. As guerras de plataformas de streaming que, no momento, abalam a indústria –"Ela Disse" estreou só em cinemas— tornam mais imprevisível a popularidade de um filme a médio prazo, especialmente uma obra que mostra a Hollywood sua imagem nefasta no espelho.

Além do bom desempenho das protagonistas, o filme tem um ótimo elenco coadjuvante. Samantha Morton está excepcional como Zelda Perkins, a ex-assistente da Miramax atacada pelo produtor nos anos 1990. Numa longa cena, ela explica o terror que sofreu nas mãos de Weinstein e seus executivos.

Há quem especule que "Ela Disse" pode ser prejudicado pela represália cultural a excessos do MeToo, que nada têm a ver com a história original, a investigação tenaz das repórteres. A rapidez com que o movimento pipocou no mundo, em 2018, trouxe também a mentalidade de rebanho que suspende o critério de julgar cada caso pelo próprio mérito.

Se o MeToo fez tombar em série muitos homens poderosos no entretenimento, no jornalismo e em outras corporações, o bordão "acredite na mulher" produziu uma cega blindagem de acusadoras sem provas. Como a mídia é especialmente vulnerável à percepção pública, exílios sumários foram decretados.

E foi assim que uma estrela do entretenimento se tornou a vítima mais emblemática das fogueiras de indignação —Al Franken, o comediante transformado em um dos mais eficazes senadores americanos deste milênio. Ele ganhou quatro prêmios Emmy em 15 anos no programa "Saturday Night Live", onde era redator e criou personagens icônicos que satirizavam a piedade puritana dos americanos.

Eleito em 2008 e reeleito em 2014, Franken se tornou conhecido como firme defensor de causas trabalhistas e minorias sexuais. Mas, no final de 2017, foi acusado de assédio sexual por uma atriz com quem havia feito turnê de comédia para entreter tropas.

A história da atriz mais tarde se mostrou mentirosa, mas, como outras mulheres relataram abraços e beijos fora de ordem, no tsunami do MeToo vários colegas democratas pressionaram pela renúncia imediata de Franken, sem que ele tivesse tempo de ser oficialmente investigado.

Nesta quinta-feira, a jornalista E. Jean Carroll vai registrar em Nova York uma queixa civil de agressão sexual contra Donald Trump.

Ela relatou em detalhes ter sido estuprada pelo ex-presidente nos anos 1990 e vai aproveitar uma lei estadual que permite, até novembro de 2023, que vítimas de casos com prazo vencido na Justiça possam processar seus agressores. De certa forma, o fim da carreira de crimes de Weinstein foi apressado por Donald Trump.

Quando a repórter Megan Twohey investigava múltiplas denúncias de agressão contra o então candidato, em 2016, aumentou a curiosidade do jornal sobre possíveis outros assediadores poderosos e impunes. A voz de Trump é imitada com perfeição no filme pelo comediante James Austin Johnson, num telefonema em que ele berra e insulta a repórter que o investiga.

"Ela Disse" lembra que, para o jornalismo se aliar à Justiça, é preciso ética, paciência e resistência a pressões de poderosos. O mesmo poderia ser dito do cinema.

Ela Disse

  • Quando Previsão de estreia em 8 de dezembro nos cinemas
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Zoe Kazan, Carey Mulligan e Mike Houston
  • Produção EUA, 2022
  • Direção Maria Schrader
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