Descrição de chapéu Livros Flip

Flip radicaliza proposta de diversificar convidados e editoras fora do eixo

Festa literária retoma programação presencial em Paraty com destaque para mulheres e Annie Ernaux, Nobel recém-premiada

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Paraty (RJ)

A Flip fez um aguardado retorno ao litoral paratiense no Rio de Janeiro, radicalizando a proposta de diversificar os autores da programação —tanto em termos identitários quanto, talvez especialmente, editoriais.

As mulheres dominaram o programa em quantidade e qualidade, numa festa que celebrou pela primeira vez uma autora negra, Maria Firmina dos Reis, e abriu palco para escritoras travestis brilharem nas figuras de Amara Moira e Camila Sosa Villada.

O trio de curadores deste ano, Fernanda Bastos, Milena Britto e Pedro Meira Monteiro, anunciou desde o início a intenção de valorizar escritores menos conhecidos, de editoras menores, vindos de fora do eixo Rio—São Paulo.

Público acompanhando por telão a mesa da escritora Annie Ernaux na Flip
Público acompanhando por telão a mesa da escritora Annie Ernaux na Flip, em Paraty - Zanone Fraissat/Folhapress

A proposta era dividir a luz entre gente graúda e independente, o que às vezes deu certo, às vezes rendeu conversas truncadas. Serviu para dar holofote a jovens como as poetas Midria e Alice Neto de Sousa, encantando o público massivo que veio ver Lázaro Ramos, e também Nay Jinknss, fotógrafa que criticou Sebastião Salgado na homenagem a Claudia Andujar. Mas, em algumas mesas, a falta de traquejo dos moderadores impediu que as discussões se aprofundassem.

Na entrevista coletiva que encerrou o festival, os curadores ressaltaram que queriam promover encontros —o que esbarrou na personalidade vaidosa do chileno Benjamín Labatut, que pediu para fazer sua apresentação sozinho e foi acatado. "A ideia era que todos estivessem compondo diálogos, mas os autores tinham de estar à vontade de estar nessa composição", disse Bastos neste domingo.

Britto disse que era preciso entender o autor como personagem —e, de fato, a entrevista com Labatut, de pensamento sofisticado e espirituoso, foi um ponto alto do festival.

Ao ceder a essa pressão, a curadoria apertou, de última hora, a mesa estrelada pela americana Saidiya Hartman ao incluir em sua composição o crítico literário Luiz Maurício Azevedo, antes previsto para dividir palco com o chileno. Um dos grandes nomes do festival, Hartman acabou com pouco tempo de fala.

Algo parecido aconteceu com Annie Ernaux, a Nobel de Literatura e maior estrela do evento, que falou menos do que o esperado ao dividir a mesa com Veronica Stigger, frustrando fãs ávidos por ouvir mais em sua palestra.

A presença de Ernaux foi, contudo, uma vitória inconteste da Flip, que viu uma Nobel recém-premiada ser ovacionada nas ruas de Paraty.

A forte presença de autores negros serviu também para iluminar contradições. O público que viu as pesquisadoras Fernanda Miranda e Ana Flávia Magalhães Pinto celebrarem Maria Firmina dos Reis na abertura da festa, no auditório, era quase todo branco.

"Paraty tem uma população majoritariamente negra, e dói não ver isso na plateia", disse Belita Cermelli, diretora de cultura e educação da Flip.

Mauro Munhoz, diretor artístico, reconheceu esse como um "incômodo e um problema", ressaltando as políticas de gratuidade no acesso às mesas. Também ao auditório da praça, o telão exibindo as mesas para uma plateia, esta sim, colorida e calorosa.

O preço salgado dos ingressos —R$ 120— é encarado pela organização como imposição de uma "regra matemática". Mas não é de hoje que não é preciso entrar no auditório para aproveitar a Flip.

As casas com programação paralela vicejaram, e os dias ensolarados estavam propícios para passeios ao ar livre —efeitos de uma Flip extemporânea na qual tinha até jogo da Copa do Mundo para ver.

Um dos destaques foi a antropóloga Hanna Limulja, de "O Desejo dos Outros", na Casa Folha, e as escritoras Cidinha da Silva e Ana Maria Gonçalves, que empolgaram um público enorme na Casa Record.

A Flipei atraiu multidões ao ar livre com mesas mais politizadas. A política, no entanto, ficou em segundo plano na festa, com poucas manifestações de autores em relação a Bolsonaro ou a Lula, talvez num reflexo da fadiga pós-eleitoral.

A Flip também sofreu uma rasteira do coronavírus, perdendo dois palestrantes do programa principal, Davi Kopenawa e Eduardo de Assis Duarte, por causa da Covid. Máscaras eram distribuídas pela organização, e boa parte do público aderiu.

Toda Flip é um experimento de tentativa e erro, houve um movimento para sair da mesmice e não se acomodar ao circuito midiático das grandes editoras. Nessa missão, a curadoria tripartite conseguiu criar uma programação com personalidade própria. O leitorado teve chance de encontrar autores de que já gostava, descobriu nomes insuspeitos e teve novas e velhas frustrações.

Foi o caso do escritor e cadeirante Carlos Eduardo Pereira, que enfrentou uma odisseia para conseguir chegar às casas onde participou de debates por causa da impossibilidade de circular pelas ruas de pedras do centro histórico de Paraty. A organização da festa admite que é urgente a cidade cuidar da questão.

Todo ano, a festa se renova. Esta foi em novembro, deixando a lembrança de um festival com calor, chuva e com Richarlison comemorado ao lado de uma Nobel. E do momento em que, enfim, a Flip voltou para casa.


Flipou: o que deu certo

Annie Ernaux
Grande trunfo ter a vencedora do Nobel logo depois de receber o prêmio

Autoras trans
Camila Sosa Villada e Amara Moira cativaram o público

Casas paralelas
Discussões nos espaços Flipei, Malê, Record e República extrapolaram o debate literário

Copa
O jogo do Brasil no auditório da Matriz teve grande público

Flopou: o que deu errado

Pouco espaço
Ao dividir o palco, as principais convidadas, Annie Ernaux e Saidiya Hartman, tiveram fala restrita

Mediação
A falta de objetividade e organização de mediações atrapalhou

Odores
O cheiro de esgoto nas ruas é mais pronunciado na época de calor

Sem ar-condicionado
O calor em casas da programação paralela incomodou

Casa Folha

O espaço completou dez anos de Flip. Relembre as edições anteriores:

2011 
Ferreira Gullar explorou a política em sua poesia

2012 
Javier Cercas comentou os caminhos da literatura em espanhol

2013 
Juan Pablo Villalobos destacou autores mexicanos

2014 
Tati Bernardi e Antonio Prata falaram sobre humor e poesia

2015 
Inácio Araujo falou sobre cinema e literatura

2016 
Benjamin Moser comentou o porquê da literatura

2017 
Djaimilia Pereira de Almeida falou sobre ‘Esse Cabelo’

2018
Alexandra Loras conversou com Lilia Schwarcz

2019 
O jornalista Otavio Frias Filho foi homenageado

2022 
Annie Ernaux falou com Geovani Martins

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