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'Seria bom se tivéssemos menos livros e autores', diz Benjamín Labatut na Flip

Celebrado autor chileno participou do evento após mesa com os brasileiros Amara Moira e Ricardo Lísias sobre autoficção

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Paraty (RJ)

"Há coisas mais importantes do que a literatura. O cinema, por exemplo. Seria bom se tivéssemos menos livros e menos autores", afirmou Benjamín Labatut, um dos mais celebrados nomes da literatura contemporânea na América Latina, na Flip.

"Você acabou de dar o título para os jornais", alertou, em tom bem-humorado, a mediadora da mesa, Rita Palmeira.

Nascido na Holanda e radicado no Chile, Labatut continuou "reduzam sua biblioteca a, no máximo, dez livros". "É como uma dieta, é preciso parar de comer porcaria."

Benjamín Labatut em mesa com Nair Benedicto na Flip 2022
Benjamín Labatut em mesa com Nair Benedicto na Flip 2022 - Walter Craveiro/Divulgação

Provocação? Opinião de uma sinceridade espantosa? Difícil saber. Orador envolvente, à vontade a ponto de tirar as sandálias e ficar descalço no palco do auditório da festa literária na noite desta sexta, Labatut agiu no evento como, de certa forma, faz nos seus livros, unindo relatos biográficos —ou, grosso modo, a verdade— e ficção.

Instantes depois, ao comentar a influência do alemão W. G. Sebald, mestre em ignorar as fronteiras entre gêneros literários, Labatut afirmou "a palavra escrita é o mais próximo que chegamos do coração das coisas". "A palavra falada não importa."

Ele é autor de livros como "Quando Deixamos de Entender o Mundo", composto por cinco narrativas, ensaios à primeira vista, mas com um quê de contos, como o leitor perceberá ao longo das quase 200 páginas. A publicação foi finalista do International Booker Prize e entrou na lista dos melhores do ano do jornal The New York Times.

Os textos acompanham sagas de grandes cientistas que levaram suas obsessões a um ponto extremo. Mais do que os limites entre rótulos literários, Labatut se interessa pelos delírios de matemáticos e químicos e seus desdobramentos muitas vezes trágicos. Ao se dedicar a esse tema, ele questiona a ciência de madeira contundente sem deixar de a exaltar.

"A liberdade da ciência é terrível, muitos descobrimentos nos aniquilaram. Nunca vamos alcançar um momento de pureza total [da ciência]", afirma o autor. Ao dizer isso, Labatut não pretende se contrapor à autonomia da física e de outros ramos do conhecimento, mas busca reiterar essa assustadora dualidade.

A primeira narrativa de "Quando Deixamos de Entender o Mundo" fala de Fritz Haber, o primeiro a conseguir extrair nitrogênio do ar, permitindo o cultivo de plantas sem recorrer a fertilizantes. Foi também o químico alemão o responsável por criar o gás Zyklon B, que exterminou soldados na Primeira Guerra Mundial.

"Me interessa a parte da ciência que escapa da minha compreensão, que vai além dos nossos limites. São as sombras. Ou, em outras palavras, é o mistério que me fascina", disse na Flip.

Durante sua apresentação, Labatut também exaltou a solidão como condição para a criação –e não apenas literária. É preciso estar "radicalmente sozinho" para buscar ideias originais porque, em geral, "pensamos com o pensamento dos outros".

"Quando minha filha nasceu, houve uma parte ruim, a constatação de que nunca mais eu voltaria a ficar só. Nas minhas férias, eu sempre ficava pelo menos duas semanas sozinho."

Literatura trans

A mesa anterior à de Labatut tinha como tema a autoficção, gênero dos romances que se valem da experiência pessoal dos autores. Mas as reflexões sobre classificações literárias ficaram em segundo plano.

Prevaleceu o humor. Foi um dos encontros mais divertidos da Flip graças, sobretudo, ao carisma e às boas histórias contadas por Amara Moira, travesti, feminista e doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp. Ela participou do debate ao lado do escritor Ricardo Lísias, com a mediação da poeta e jornalista Stephanie Borges.

Amara Moira e Ricardo Lísias em mesa na Flip 2022
Amara Moira e Ricardo Lísias em mesa na Flip 2022 - Walter Craveiro/Divulgação

Nas suas falas, Moira ressaltou a discriminação no Brasil em relação às mulheres trans e às prostitutas —ela trabalhou como profissional do sexo durante alguns anos em Campinas, no interior paulista. Mostrar essa realidade não a impediu, porém, de fazer comentários bem-humorados sobre órgãos e relações sexuais, além de termos utilizados para os definir.

Moira contou que seu livro "E se Eu Fosse Puta" acabou de ser traduzido para o espanhol para lançamento na Argentina. "O Brasil é impagável em vocabulário erótico. Fiofó, por exemplo, não poderia ser traduzido simplesmente para ‘culo’. E como dizer fio-terra em espanhol?"

O público do auditório principal, quase lotado, reagiu entre aplausos e risos.

Estudiosa da obra de James Joyce, a autora disse que aprendeu mesmo a contar histórias com a vivência nas ruas. Numa noite, Moira ouviu de uma amiga prostituta que tinha acabado de se despedir de um cliente "acredita que ele pediu para ninar a neca dele?".

Segundo a escritora, "é essa oralidade violenta que me interessa".

Lísias comentou as razões que o motivam a fazer autoficcção. Segundo o autor de "O Céu de Suicidas" e "Uma Dor Perfeita", entre outros, a literatura é sua forma de interferir na sociedade.

"A ficção faz parte da realidade. Com ela, eu atinjo setores da sociedade que eu não conseguiria", afirmou.

"Eu me sentiria mal se escrevesse na voz de um indígena. Sou um homem branco, de classe alta. Não tenho esse direito. Tenho que falar em meu nome", diz ele.

Seus livros são, entre outros objetivos, uma forma de demonstrar sua repugnância em relação à classe social da qual pertence. "Odeio meus vizinhos, por exemplo. Quero agredir essa gente, mas não posso fazer isso de maneira vulgar. A linguagem literária me oferece uma outra possibilidade".

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