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Livros

Sem ler Chico Buarque, não se entende o Brasil pós-golpe dos militares

Livros do escritor, que recebe em Portugal o prêmio Camões, ganham potência ao serem pensados ao lado de suas músicas

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Tiago Ferro

Escritor, crítico literário e autor de 'O Seu Terrível Abraço' e 'O Pai da Menina Morta', vencedor do Prêmio Jabuti 2019 (ambos pela editora Todavia)

São Paulo

Quando, em 2016, Bob Dylan foi anunciado vencedor do Nobel de Literatura, muita gente torceu o nariz. Entre eles o historiador Perry Anderson, que afirmou em tom mordaz que o prêmio para o astro do pop equivalia ao Nobel da Paz para Henry Kissinger em 1973.

Três anos depois, Chico Buarque receberia, pelo conjunto da obra, a distinção mais importante da literatura em língua portuguesa, o prêmio Camões. E passava a integrar um seleto grupo de romancistas e poetas, entre eles João Cabral de Melo Neto, José Saramago e Raduan Nassar.

olhos e nariz de chico buarque em preto e branco
O escritor e compositor Chico Buarque, que enfim deve receber seu prêmio Camões - Francisco Proner/Divulgação

A obra de Chico como romancista é sólida. Seus livros têm relevância independente de sua produção mais conhecida como letrista e compositor. Por eles, recebeu prêmios importantes no Brasil, incluindo três Jabutis, teve boa acolhida pela crítica especializada e foi traduzido para diversos idiomas.

Basta ler as primeiras páginas de "Estorvo", seu romance de estreia de 1991, para reconhecer traços da melhor literatura contemporânea. O embaralhamento geral da trama e a precariedade da construção do narrador, bem como do universo ao seu redor, coincidem com os contornos que a sociedade brasileira começava a apresentar naquele início de anos 1990 de hegemonia do capitalismo, ainda não delineados pelas ciências sociais ou pelo senso comum.

Ao seguir as pegadas do "Dom Casmurro" de Machado de Assis em "Leite Derramado", de 2009, escancara os desejos, trambiques e preconceitos impublicáveis de uma elite europeizada e fora da lei. O narrador em fim de linha etária e financeira abre o jogo sobre a degradação da própria família e do tecido social do país, que encontra unidade apenas através de relações criminosas.

Em tom irônico, o romance "Essa Gente", de 2019, lançado em pleno governo Bolsonaro, expõe o ridículo e a violência da "gente ordeira e virtuosa", deixando os setores progressistas, ainda embalados por velhas utopias, entre o exílio e o suicídio, uma vez que bolhas artificiais de civilidade já não eram mais viáveis.

Se essa robusta produção —seis romances e um livro de contos, além de peças— afasta o tipo de crítica dirigida a Dylan por ser "apenas" um letrista a receber um prêmio literário, já que seu romance "Tarântula" segue obscuro ainda hoje para a maioria de seus fãs, os livros de Chico ganham potência ao serem pensados ao lado de sua face artística mais celebrada.

O sentimento de desilusão e desagregação social dos principais romances é velho conhecido de suas canções. Se falta utopia ou esperança a essas letras, o olhar crítico que privilegia os excluídos representa ganho evidente para a ideia de um país mais justo.

Alguns exemplos —o trabalhador brutalizado em "Construção"; a repetição infernal do dia a dia de uma faixa pobre da população, mas ainda com emprego e casa, em "Cotidiano"; o país estraçalhado pela ditadura e pela mercadoria na impiedosa colagem "Bye Bye Brasil"; no apagar das luzes da ditadura, o pé atrás com grandes projetos coletivos em "Pelas Tabelas" e "Bancarrota Blues", parceria com Edu Lobo; a empatia pelos indesejados da "sociedade de bem" em "Ode aos Ratos"; a insinuação da prostituição infantil em "Carioca"; e, finalmente, a obra-prima recente "Caravanas", melhor síntese de um país que abriu o jogo sobre seus desejos de extermínio.

Se não é possível entender a sociedade americana oscilando entre a contracultura e a vida administrada pelo capital sem as canções de Dylan, certamente não se conhece o Brasil pós-golpe de 1964 sem escutar e ler Chico Buarque.

Cá entre nós, qualquer prêmio é muito pequeno perto da imensidão do que artistas como eles realizaram. Mas o Camões, no caso de Chico, é especialmente simbólico.

Como tanta coisa parada ou destruída durante o governo Bolsonaro, a entrega do prêmio não aconteceu em 2019. O ex-presidente se recusou a assinar o documento que chancelava a premiação do lado brasileiro. Deve ser finalmente entregue, pelas mãos do presidente Lula, em cerimônia realizada em Lisboa na semana em que se celebram os 49 anos da Revolução dos Cravos.

Deixa a todos nós —e hoje sabemos sem esforço quem é esse "nós"— com um sorriso no rosto. Como um bom samba, "depois de tanta demência", ajuda a afastar "uma dor filha da puta".

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