Descrição de chapéu The New York Times

Entenda a relação do rei Charles 3º, que já pintou, tocou e atuou, com as artes

Monarca tem mais apreço pela cultura do que Elizabeth 2ª, que preferia assistir a corridas de cavalo do que ir ao teatro

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Alex Marshall
The New York Times

Em 1987, Arthur George Carrick, então com 39 anos, um pintor desconhecido de aquarelas, submeteu uma obra para avaliação da Exposição de Verão, uma das mais importantes mostras de arte britânica.

Realizada anualmente na Royal Academy em Londres, a exposição dá aos amadores a oportunidade de exporem seus trabalhos ao lado de pinturas e esculturas de artistas mundialmente famosos. Todos os anos, milhares de britânicos inscrevem suas obras. Quase todas são rejeitadas.

idoso com roupa de rei acena para público
O rei Charles 3º (ao centro), em coroação de 6 de maio de 2023, em Londres, na Inglaterra - Daniel Leal/AFP

O trabalho de Carrick era simples e tradicional —uma pequena aquarela mostrando casas de fazenda e algumas árvores sob um céu azul pálido—, mas os curadores viram algo de especial nele, e a pintura foi uma das 12.000 obras escolhidas para a mostra.

O que os curadores não sabiam é que tinham sido enganados. "Arthur George Carrick" era um pseudônimo. O verdadeiro pintor era o homem coroado rei da Grã-Bretanha neste sábado (6).

Ao longo de sua vida, o rei Charles 3º se envolveu na vida cultural britânica não só como produtor de arte, mas como um ávido espectador e patrono. No Reino Unido, Charles é muitas vezes retratado como tradicionalista quanto à cultura, devido ao seu conhecido amor pela arquitetura clássica.

Algumas de suas paixões confirmam esta imagem. Ele, que vai regularmente à ópera, fundou uma escola de desenho e uma academia de artes tradicionais.

Mas muitos de seus gostos são menos elevados, como convém ao primeiro rei britânico a crescer na era da mídia de massa. Em entrevistas, Charles disse ser fã da música e dos filmes de Barbra Streisand e de séries de comédia surrealistas, entre elas "Monty Python's Flying Circus" e "The Goon Show". Também é amante confesso da música de Leonard Cohen e do The Three Degrees, uma banda de soul de Filadélfia.

Com interesses tão variados quanto esses, ele é o monarca mais sintonizado culturalmente em mais de um século. Se a rainha Elizabeth 2ª, que morreu no ano passado, se interessava mais por corridas de cavalos do que pelos milhares de espetáculos a que assistiu durante seu reinado, o fascínio de Charles pelas artes e pelo entretenimento reflete os interesses de muitos daqueles que o precederam no trono.

No século 17, Charles 1º, um mecenas de pintores como Peter Paul Rubens e Anthony Van Dyck, construiu uma das mais importantes coleções de arte da Europa. Seu filho, Charles 2º, reabriu os teatros britânicos depois de os rebeldes puritanos terem forçado o fechamento e lançou as bases do que veio a se tornar o West End —a região que concentra os teatros londrinos. No século 18, George 3º construiu uma coleção superlativa de 65.000 livros que se tornou o coração da Biblioteca Britânica.

No entanto, enquanto os monarcas anteriores eram conhecidos por suas paixões, Charles tem sido frequentemente definido pelas coisas das quais não gosta. A partir da década de 1980, quando era príncipe de Gales, Charles criticou a arquitetura moderna e promoveu alternativas baseadas em formas clássicas, por meio de discursos, livros e programas de televisão.

Em várias ocasiões, interferiu e se esforçou para bloquear diretamente projetos de construção em vidro e aço. Assim, despertou a ira dos arquitetos britânicos, alguns dos quais classificaram sua intromissão como inconstitucional.

Neste sábado, o amor do rei pela música está em plena exibição. Ele encomendou 12 obras para a cerimônia de coroação, entre elas "Agnus Dei", para coral, de Tarik O'Regan, compositor americano nascido em Londres.

Em entrevista por telefone, O'Regan disse que, quando se estuda "aquilo de que Charles gosta e não gosta", surge a imagem de um homem cujos interesses são "claramente nuançados". "O rei é claramente afetado de maneira forte pela música e outras artes."

idoso branco usando roupas de rei
O rei Charles 3º em coroação de 6 de maio de 2023, em Londres, na Inglaterra - Gareth Cattermole/Reuters

O novo monarca vem dizendo que seu amor pela cultura foi estimulado por sua avó, Elizabeth, a rainha-mãe, que o levou à Royal Opera House em Londres aos sete anos para assistir a um balé pela primeira vez. "Lembro-me de ter ficado completamente fascinado com a magia da coisa", disse Charles em entrevista a uma rádio, em 2018.

A rainha-mãe também encorajou o amor de Charles pela música clássica e o futuro monarca aprendeu a tocar trompete na orquestra de seu colégio interno. Charles recorda que acreditava estar indo bem no instrumento até que um professor interrompeu um ensaio gritando: "Os trompetes! Parem os trompetes!" Depois disso, ele começou a estudar violoncelo.

No Trinity College, Charles tocava na orquestra e atuava em espetáculos de comédia, como membro da sociedade teatral da faculdade.Agora , aos 74 anos, o novo rei se sente mais à vontade como espectador do que como artista.

Assiste com frequência a óperas e balés em Londres. Um porta-voz da Royal Opera House disse que o rei foi à ópera no mês passado em uma visita privada. Ele também assiste regularmente às produções da Royal Shakespeare Company, na sede do grupo de teatro em Stratford-upon-Avon, na Inglaterra. É patrono de ambas as organizações.

O príncipe Harry, em sua recente autobiografia "O Que Sobra", recordou ter acompanhado o pai a peças da Royal Shakespeare Company em diversas ocasiões. "Aparecíamos sem avisar e assistíamos a qualquer peça que estivesse em cartaz", escreveu Harry. "Não fazia diferença para o meu pai", diz Harry. A favorita do pai, no entanto, é "Henrique 5º".

Charles esteve cercado de obras-primas desde a primeira infância. A coleção de arte da família real inclui nada menos do que 600 desenhos de Leonardo da Vinci, entre outros tesouros. No documentário "Royal Paintbox", de 2013, Charles disse que mal se interessava por essas obras até a adolescência, quando "de repente todos os quadros nas paredes e a mobília entraram em foco".

Segundo o documentário, Charles não recebeu qualquer educação artística formal e aprendeu sozinho a pintar com aquarelas. Quando inscreveu secretamente seu trabalho na Exposição de Verão da Academia Real, em 1987, já pintava cenas rurais e residências reais há décadas.

Uma seleção das aquarelas do rei está em exposição pública na Sandringham House, uma das casas de Charles, no condado de Norfolk, até 12 de outubro.

Charles também pagou para que artistas o acompanhassem em viagens ao exterior, produzindo registros dos acontecimentos que depois se tornariam parte da coleção de arte real.

Diarmuid Kelley, um pintor figurativo que acompanhou Charles em uma visita ao México e à Colômbia em 2014, disse que a instruão que recebeu era para pintar o que quisesse. Kelley disse que desenhou cenas de rua e uma visita a um templo, "nada de estranho ou vanguardista", em suas palavras.

"A monarquia é, por natureza, conservadora", disse Kelley. "Não há como abraçar artistas que se opõem ao establishment quando você é o establishment."

O compositor O'Regan disse que, independentemente do que as pessoas pensem sobre o gosto de Charles, o momento é bom para ter um amante das artes no trono do Reino Unido. Os subsídios do governo para algumas organizações culturais foram cortados no ano passado.

Para O'Regan, as novas composições que o rei encomendou para a cerimônia de coroação representam "uma declaração clara sobre a importância das artes". Reis não devem dar instruções aos governos, diz O'Regan, mas Charles está pelo menos mostrando que a cultura é importante.

Tradução de Paulo Migliacci

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