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Inacabado, 'Tigrero' filma elo entre Samuel Fuller e os karajás

Produção inacabada dos anos 1950 ressurge como conexão entre mestre do cinema americano e povo indígena

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Paulo Santos Lima

Crítico, professor de cinema e curador das mostras "Easy Riders - O Cinema da Nova Hollywood" e "O Cinema Francês Pós-Nouvelle Vague"

Os nossos indígenas brasileiros, mais especificamente os karajás, devem algo a Samuel Fuller. Diretor rebelde que dirigiu filmes críticos ao sistema, como "Paixões Que Alucinam", "Agonia e Glória" e "Cão Branco", foi ele quem registrou, em 1954, com uma câmera Bell & Howell 16mm —e, reza a lenda, 50 caixas de charuto e outras 70 de vodca—, o cotidiano da vida desses indígenas que ainda hoje vivem na ilha do Bananal, na região ribeirinha ao rio Araguaia.

O inusitado é que, de certa forma, os karajás devem algo também a Hollywood. A lógica rentista do cinema industrial americano tornou "Tigrero" impossível. Darryl F. Zanuck, presidente da 20th Century Fox, designou Fuller para buscar locações para o filme que seria estrelado por John Wayne, Ava Gardner e Tyrone Power.

Cena do filme 'Tigrero: Um Filme que Nunca Foi Feito', de 1994, dirigido por Mika Kaurismäki
Cena do filme 'Tigrero: Um Filme que Nunca Foi Feito', de 1994, dirigido por Mika Kaurismäki - Divulgação

Desejo de Fuller e também de Zanuck, rodar o filme na Amazônia brasileira seria muito arriscado e o seguro de vida do elenco, altíssimo. Mas Fuller, ao lado de Nicholas Ray e Elia Kazan um dos grandes nomes do cinema mais latente, moderno e crítico que desabrochou nos Estados Unidos do pós Segunda Guerra Mundial, era radical demais para aceitar um filme dessa natureza rodado em estúdio. O projeto, então, foi abortado.

Foi a esposa de Sam, Christa Lang Fuller, quem teve a ideia, nos anos 1990, de viabilizar um documentário com o diretor reencontrando aquele lugar. Assinaria a direção o finlandês Mika Kaurismäki, tão "brasileiro" que até tinha um bar no Rio de Janeiro, ele então bem entrosado com o país.

Amigo de Christa e de Mika, Jim Jarmusch, diretor de "Estranhos no Paraíso" e "Daunbailó", atuaria ao lado de Fuller —o que daria ao filme um ar de documentário ficcionalizado. Interessante sublinhar que o encontro de Jarmusch com os karajás, seus rituais e pinturas faciais, estarão, mais tarde, no rosto de Johnny Depp em "Dead Man", de 1995.

Nascia "Tigrero – O Filme que Nunca Existiu", cujo título, quase irônico, deixava claro que a essência daquele primeiro encontro de Fuller com a natureza selvagem do Pantanal em 1954 agora seria, em 1994, sobre os karajás e sua alta cultura, seu modo de sociabilidade com a natureza e humanos.

Seria, também, um filme muito pessoal e emotivo ao cineasta. Ao repisar na ilha do Bananal, quatro décadas depois, Sam não reconhece a geografia. Fiação telefônica, postes de luz, uma pista de pouso aéreo no lugar da densa mata de outrora, tudo estava irreconhecível.

Pelo menos até uma prosa mais longa com os jovens de lá atrás que agora eram anciões e, mais importante de tudo, os rituais permanecendo intactos mesmo convivendo com as televisões e roupas não muito diferentes à camiseta dos Ramones com a qual Jarmusch passeou pela aldeia.

A relação entre o primeiro encontro e a revisita, entre um Fuller quarentão e outro octogenário, entre aquela tribo exótica junto a um americano que ali não conhecia nada daquela cultura e agora possuem uma espécie de afeição e sentimento é a grande força do filme.

Porque "Tigrero – O Filme que Nunca Existiu" consegue detectar a história daqueles karajás que, apesar do violento projeto de aculturação que lhes foi imposto pela ditadura militar, ainda resistem e permanecem.

O filme que nunca existiu, na verdade, teria os animais e nativos "exóticos" mostrados de forma mais presente na tela (filma em locação permite tal latência visual), mas ainda seriam pano de fundo. O "Tigrero" que ressurge, em 1994, é essencialmente o da experiência de Fuller com aquele meio de vida.

Quando Fuller mostra as imagens capturadas em 1954 aos karajás, eles se reconhecem, lembram dos que já partiram e percebem os traços do tempo. Surge dali uma memória.

Não à toa, uma experiência semelhante à de Eduardo Coutinho, que foi, em 1984, com "Cabra Marcado para Morrer", ao encontro dos envolvidos que participaram de um filme sobre as ligas camponesas interrompido pelo golpe militar.

Em ambos os casos, a experiência de assistir a algo que de certo modo é um espelho e máquina do tempo dando conta de toda um trauma e decorrência históricos. E filmes de encontro e retomada, também. No caso de "Tigrero – O Filme que Nunca Existiu", o filme não só resgata algo perdido em 1954 como faz do 1994 em que foi feito uma reflexão sobre os karajás hoje, em 2023, inclusive porque é a primeira vez que este filme é apresentado ao público em solo brasileiro.

Tigrero – O Filme que Nunca Existiu

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