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Julio Bressane sintetiza seus quase 60 filmes em obra de 7 horas com cenas inéditas

Um dos maiores criadores do cinema nacional lança 'A Longa Viagem do Ônibus Amarelo' no Festival Ecrã, no Rio de Janeiro

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O cineasta Julio Bressane, em seu apartamento, no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro Eduardo Anizelli/Folhapress

São Paulo

"A minha percepção das coisas é visceral e distante. Eu sinto o apelo do mundo como um visgo que te prende. Mas tenho uma grande distância disso. Procuro sempre fazer alguma coisa que ainda não sei o que é. Eu faço um trabalho de escavação ótica. Isso demora. É uma longa espera".

No Rio de Janeiro, a voz baixa do cineasta Julio Bressane concorre com os sons duros, metálicos, de um canteiro de obras vizinho no Leblon. Em seu apartamento, ele me fala da concepção de seu novo filme "A Longa Viagem do Ônibus Amarelo", com sete horas e doze minutos de duração, codigirido pelo montador Rodrigo Lima. O Festival Ecrã exibe o longa em 1º de julho, na Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro, instituição que ajudou a conservar a obra de Bressane.

O diretor de cinema Julio Bressane, em seu apartamento, no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

Em dez anos de trabalho, os fragmentos de 58 filmes, rodados entre 1959 e 2020, se uniram a registros inéditos em Super-8 de uma viagem de seis meses de Bressane com a roteirista e professora de filosofia, Rosa Maria Dias, sua esposa, e Andrea Tonacci, diretor de "Bang Bang", de 1971, e "Serras da Desordem", de 2006.

No início dos anos 1970, em um carro Volkswagen, eles saíram de Veneza, na Itália, rumo a Katmandu, no Nepal, através da Turquia, Síria, Afeganistão, Iraque, Paquistão e Índia, vencendo paisagens mais tarde devastadas por guerras. O título se inspira num guia impresso da agência londrina Yellow Bus, especializada em roteiros orientais.

Se o Jean-Luc Godard ensaísta rumina a história do cinema com os filmes alheios, Bressane paira em "A Longa Viagem" como uma consciência da linguagem no íntimo de sua filmografia. Das três horas de Super-8 da aventura juvenil, sobreviveram os 25 minutos de imagens entrelaçados a sequências clássicas de seu cinema, registros pessoais e o curta inédito "A Peste".

A cronologia foi o vetor da montagem. "Eu tinha quase 80 horas quando juntei esse material. Eu vi isso como um vasto copião. Se fosse uma grande morada, qual seria a concha original? Fui procurar o cinema, o que havia de filme ali, o que só vivia no filme com o filme", diz Bressane, 77 anos.

"Toda a questão criativa está presa ao costume da época. A camisa de força da época é o costume. Todos esses filmes são prisioneiros daquele costume, daquele momento. Por isso a cronologia".

Em 17 anos de uma parceria iniciada com a montagem de "Cleópatra", de 2007, Rodrigo Lima passou a digitalizar e armazenar todos os filmes de Bressane, em casos mais raros escaneando negativos e cópias em 35 mm e 16 mm.

Pouco a pouco, Lima criou um vasto acervo de matrizes digitais em alta resolução. Sem essa arqueologia, o projeto de "A Longa Viagem" seria inviável. Diante das imagens, Bressane e o montador reconheceram obsessões e elos sintáticos dos 58 filmes.

O diretor Julio Bressane, 77, em seu apartamento, no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro - Folhapress

"Por exemplo, a figura fora de cena, muito estudada na pintura. Não é uma figura clássica do cinema, como é o travelling, o close, a panorâmica. O que está fora do quadro é tão importante quanto o que está. O que o pintor ou o realizador tem de influência psicológica fora da cena está dentro dela. O que está fora de cena é o que vai constitui-la", afirma o diretor.

"Descobrimos cerca de 27 ou 28 figuras, que são esses anéis que vêm no filme. Eu os chamei de medalhas do dilúvio. Vários trazem a questão do movimento na escada. O plano-sequência, planos de cinco minutos sem cortes, os closes. As sombras. O espelho".

A essas "medalhas do dilúvio" —a metáfora remete aos amálgamas de conchas descobertos por arqueólogos no topo de montanhas—, podemos acrescentar a recorrência de mãos, pés, nuvens, perfis em contraluz, corredores, arquiteturas e músicas executadas em sua duração integral.

A dado momento da entrevista, Bressane vai à estante em busca do livro "Atlas Mnemosyne", do historiador alemão da arte Aby Warburg, seu guia na conceituação da montagem de "A Longa Viagem". No inventário iconográfico, Warburg justapõe gestos semelhantes em obras de diferentes épocas, revelando a transmissão de "pathos" e motivos visuais. O diretor perseguiu essa liberdade do olhar, sem uma voz orientadora nas sete horas de filme.

A Longa Viagem do Ônibus Amarelo Julio Bressane
Julio Bressana e Rosa Maria Dias em foto de Andrea Tonacci, em 'A Longa Viagem do Ônibus Amarelo' - Divulgação

"A imagem tem um sentido dentro de um jogo de imagens, como se fosse um mosaico. Se você tira uma peça, aquilo se desmonta. E aquela peça que fica sobrevive não só com outro sentido, mas com outro valor e significado. Passa a ter o significado de uma nova montagem. Esse material todo foi possível porque ele se tornou anônimo quase 'lato sensu’. Porque são filmes tão pouco conhecidos que poderiam ser filmes anônimos. Mas passaram a ser realmente anônimos", diz.

"Há um conhecimento aos poucos do próprio meio. A câmera começa espontânea, intuitiva, ainda sem nenhum motivo", sugere o diretor, propondo outra leitura do filme. "Depois disso você vai adestrando a câmera a alguma coisa que viu, sentiu, e aí a câmera começa a ficar mais dentro da convenção, até que você possa, depois, com muito esforço, liberá-la de novo. Uma liberação depois do conhecimento".

"Primeiro é uma explosão, uma descoberta da câmera, do movimento. No segundo movimento, você começa a dominá-la, a adentrar a tradição. E aí começa uma difícil escolha de qual tradição. Eu fiz uma espécie de embaralhamento de imagens, onde essas coisas ficassem umas juntas das outras e não houvesse essa distinção".

Bressane se posiciona dois filmes adiante de si mesmo. No fim de julho, deve estrear "Capitu e o Capítulo", sua adaptação de Machado de Assis —no elenco, Mariana Ximenes, Enrique Diaz e Vladimir Brichta. Seu futuro longa, "O Leme do Destino", com Simone Spoladore e Josie Antello, está em fase de finalização. O descompasso do criador com o circuito comercial traduz, em algum plano, sua presença estranha no cinema brasileiro, como uma ilha de radicalidade.

No set, Bressane conduz as filmagens sem volteios. Ele relembra a cena aos atores e os posiciona em relação à câmera, aprovando com frequência o primeiro take. Mesmo com o digital, persiste sua economia da película. A atriz Djin Sganzerla, que viveu Sancha em "Capitu e o Capítulo", elogia sua sensibilidade em escolher planos longos e deixar o ator esvaziar os pulmões.

"Os roteiros de Julio são enxutos e poéticos. Cabe ao ator trazer organicidade àquele texto, que às vezes não é tão fácil de dizer, porque não é coloquial. Pra mim, filmar com Julio é um processo ritualístico", diz Djin, filha de Helena Ignez e Rogério Sganzerla, sua observadora desde a infância.

"Numa cena em que estamos dançando, ele falava muito da macumba, da origem do teatro, que vem do ritual. Esse ritual estava presente no encontro do ator com ele, a câmera e o set. Ele fala muito baixinho. É um processo íntimo. Ele ilumina o que está na mente dele".

Cartaz do filme 'O Anjo Nasceu', de Julio Bressane
Cartaz do filme 'O Anjo Nasceu', de Julio Bressane - Arquivos da Cinemateca do MAM

Atriz-síntese do cinema de Bressane em "O Anjo Nasceu", de 1969, e nos dois longas da fase da produtora Belair, "A Família do Barulho" e "Cuidado, Madame", ambos de 1970, Maria Gladys observa que o prazer de atuar em um filme do diretor convive com a brevidade da experiência.

"Na Belair, Julio e Rogério faziam filmes em uma semana. Com Julio, mal começava e ele me dizia ‘amanhã é o último dia’. Era rápido. Ah, não, eu queria filmar mais!", lembra Gladys. "Eles eram parecidos na linguagem, mas eram dois diretores completamente diferentes. Rogério era mais enlouquecido. Ele ia atrás, empurrando. Julio era um diretor mais contido. Ganhava-se pouco. Eu sou atriz do cinema mais barato, mas que me lavava a alma".

O teórico de cinema e professor emérito da Universidade de São Paulo, Ismail Xavier, autor de "Alegorias do Subdesenvolvimento", meditou em ensaios sobre a engrenagem da quebra do fluxo em filmes de Julio Bressane.

"Desde o início ele foi um cineasta que teve uma relação de tensão com o cinema novo. No desenvolvimento do trabalho dele, você vai encontrando sempre a forma de um cinema poético, que está marcado pela originalidade na maneira como imagem e som se relacionam e pela construção bem distinta das situações vividas pelas personagens", avalia Xavier.

Em "Matou a Família e Foi ao Cinema", de 1969, o crítico reconhece uma característica engendrada na primeira fase de Bressane e desdobrada em sua obra posterior. As situações de um filme se sucedem sem a explicação dos motivos de um ato.

"São formas de criar um tipo de narração que define uma transgressão naquilo que é a expectativa do espectador. Não tem explicação. A personagem cumpre a frase do título. Ele mata a família e vai ao cinema assistir ao filme ‘Perdidas de Amor’, com duas personagens que se matam".

"Ele trabalha com citações de filmes e referências a determinados cineastas. Essa poética chama a atenção para os procedimentos. A atenção ao aspecto formal da obra é importantíssima em toda a carreira dele. Não há um convite, como num cinema de ficção mais industrial e convencional, para mergulhar na história."

Cena do filme 'Matou a Família e Foi ao Cinema', de Julio Bressane
Cena do filme 'Matou a Família e Foi ao Cinema', de Julio Bressane - Arquivos da Cinemateca do MAM

A liberdade da câmera, acrescenta Xavier, se firmou nessas experiências. "Tem filmes dele que são muito claros no processo de fazer planos longos, às vezes com a câmera fixa, às vezes com movimentos de câmera que definem um tipo de olhar que faz com que o espectador tenha que fazer essa junção e fruir esse descompasso entre as ações tal como estão sendo conduzidas pelos atores. E, ao mesmo tempo, entender que a câmera tem liberdade para estabelecer seu próprio caminho. Isso define um chamar atenção para a obra, em vez de fazer a pessoa mergulhar na ficção, num processo poético que tem como uma das funções importantes chamar atenção sobre si próprio".

Bressane aponta uma violência estética menos destacada em seu par de obras transgressoras de 1969, "O Anjo Nasceu" e "Matou a Família", rodados logo após o AI-5, em meio ao avanço da censura da ditadura militar.

"Os dois tiveram na época uma coisa que foi a razão da proibição. Foi o impacto da violência cinematográfica, não dos assassinatos do filme. Isso era uma consequência secundária", defende Bressane. "A violência do filme era você pegar uma imagem em preto e branco, que aqui ainda estava se tratando como se fosse uma luz de estúdio industrial, filmar em 16 mm e ampliar. O Brasil não tinha técnica de ampliação".

"Ao ampliar, fez ressaltar o grão. Isso foi uma violência cinematográfica. E foi por isso que "Matou a Família" foi proibido. A história do título, do sangue, das mortes, tudo foi secundário. Foi interditado sem que os censores soubessem o que estavam interditando. Estavam interditando essa aberração que foi o surgimento do grão. Cada grão tem uma mancha de luz. São milhões de grãos. A combinação é que vai dar a imagem".

O cineasta Julio Bressane
O cineasta Julio Bressane - Arquivos da Cinemateca do MAM

O olhar concentrado na pele da linguagem não altera a dimensão política de sua obra. E a distância de leituras diretas (e óbvias) da realidade não o retiram do mundo. Bressane acompanhou atentamente o surgimento da anomalia Jair Bolsonaro. "Foi realmente um choque muito grande, uma regressão imensa, como se você visse por fraqueza, por inanição, alguém voltar a engatinhar. Foi uma das coisas mais terríveis que podiam ter aparecido. E apareceu".

A enxurrada de séries realistas e lineares no streaming e o insulamento do cinema de invenção não abalam seu ânimo. "Nada acaba. Tudo sobrevive. Nunca, em época nenhuma, o cinema que se volte mais pra buca do essencial do cinema teve veiculação grande. Nem na época do cinema mudo, quando ele surgiu. Sempre foi ali uma espécie de chama que se manteve viva nessa questão original do cinema. O cinema foi criado para ser uma chave do pensamento", afirma o diretor.

"A chama do cinema de Lumière, do primeiro cinema, de usar as imagens importantes para o pensamento, existiu desde sempre. Sempre foi à margem do cinema, sempre viveu com dificuldade e sempre sobreviveu com mais dificuldade ainda. Vive até hoje. Seja no streaming, seja na Netflix, o espaço desse cinema será muitas vezes eclipsado. Mas ele será sempre feito. Tudo sobrevive. A ideia de que uma coisa só vai dominar é perigosa".

Bressane pega o "Atlas Mnemosyne" de Warburg e folheia até o painel com o quadro "O Almoço na Relva", feito entre 1862 e 1863 por Edouard Manet, posto ao lado de motivos mais antigos na representação do julgamento de Páris, o príncipe de Tróia, num sarcófago romano e em pinturas ou gravuras de Giorgione, Marcantonio Raimondi, Giulio Bonasone, Baldassare Peruzzi e Anton Raphael Mengs.

O cineasta sorri da impropriedade das páginas de identificação das imagens, em confronto com a liberdade do olhar. "Quem fez isso foi o editor. Warburg nunca faria. Seria uma traição. Para ele, você devia conhecer cada um desses quadros".

A Longa Viagem do Ônibus Amarelo

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