Bienal do Rio se descola dos livros enquanto se mantém como a sua maior vitrine

Evento chega aos 40 anos trazendo celebridades e artistas de outras áreas para engrossar o caldo da literatura

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

ilustração em preto e branco mostra diversos prédios modernistas postos um ao lado do outro

Obra ‘Utopia’, da dupla Detanico Lain, em que cada elemento arquitetônico do modernismo brasileiro e das metrópoles atuais do país simboliza uma letra do alfabeto Divulgação

São Paulo

A escritora Ana Maria Machado foi à primeira Bienal do Livro do Rio, há 40 anos, pouco depois de dar à luz sua filha caçula. Leitores ávidos enchiam os corredores do Copacabana Palace, já uma grife absoluta da cidade, e ali a autora guardou a memória de um episódio muito vívido.

Machado, hoje com 81 anos, andava com seu editor em meio às prateleiras de livros quando tiveram vontade de dar meia volta para dar uma nova olhada no estande anterior. E não dava. Era um fluxo incontornável de pessoas. O amigo então comentou: "não sei se isso é sinal de que deu tudo errado ou de que foi um sucesso grande demais".

Quatro décadas depois, a resposta é evidente. Aquela Bienal abarrotada no hotel de luxo carioca reuniu, segundo a estimativa da organização, cerca de 20 mil visitantes. A deste ano espera mais de 600 mil.

O espaço refletiu esse crescimento e foi de cerca de 1.500 metros quadrados na edição de estreia a quase 100 mil metros quadrados agora, no Pavilhão do Riocentro, onde o evento organizado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros acontece a partir desta sexta-feira até o próximo domingo, dia 10.

A Bienal aumentou de tamanho, mas também se metamorfoseou num animal bem diferente, acompanhando transformações no mercado e no comportamento do público leitor.

É algo que se vê até no contraste entre as sedes, como aponta Tatiana Zaccaro, diretora de negócios da GL Events, empresa responsável pela organização.

"O fato de ser no Copacabana Palace, para um número irrisório de pessoas, mostra que você tinha ali uma elite carioca muito presente", comenta a executiva. "Nesses 40 anos, você vê como a Bienal não só cresceu como se tornou um evento popular."

foto em preto e branco mostra pessoas andando entre estandes de livros
A segunda edição da Bienal, então chamada Feira Internacional do Livro, no São Conrado Fashion Mall em setembro de 1985 - Raimundo Neto/Agência O Globo

Parece outro universo, mas Ana Maria Machado lembra que, à altura daquele ano de 1983, era raro que massas de leitores encontrassem de perto seus autores favoritos, o que conferia a eles uma aura maior de celebridade.

Há 40 anos, já havia a Bienal de São Paulo, tocada pela Câmara Brasileira do Livro desde 1970. Mas os eventos com autores dando palestras e autógrafos ainda eram escassos e só entraram em profusão depois, com a Flip, que fez do convite a autores internacionais também um lugar-comum.

Hoje, a Bienal consegue trazer alguns dos escritores mais populares do mundo, com atenção especial aos do gênero young adult, a galinha dos ovos de ouro das editoras. Autoras pop como Holly Black, Julia Quinn e Cassandra Clare estarão nesta edição carioca.

E vale pausar um pouco sobre o aspecto celebridade. É evidente que a curadoria —composta pela diversa tríade Clara Alves, Mateus Baldi e Stephanie Borges— privilegia a literatura na agenda, programando autores de peso como Valter Hugo Mãe, Itamar Vieira Junior, Conceição Evaristo e Geovani Martins.

É cada vez mais comum, no entanto, ter na Bienal pessoas que construíram sua popularidade em outras mídias e então migraram para o livro, sejam influenciadores, podcasters ou artistas de outras áreas.

Dois formatos desta edição servem de exemplo didático. "Páginas no Palco" vai trazer personalidades para apresentar textos literários —Vera Holtz, com sua elogiada montagem "Ficções", baseada em Yuval Noah Harari— ou interpretar escritoras —Claudia Abreu encarnando Virginia Woolf e Beth Goulart e Laila Garin como Clarice Lispector.

E "Páginas na Tela" vai discutir adaptações de literatura a outros meios, aproveitando para trazer estrelas do calibre de Lázaro Ramos, Marjorie Estiano e Tainá Muller.

"Brinco que se fôssemos lançar a primeira Bienal hoje, ela seria a ‘Bienal das Histórias’, ‘das Narrativas’, e não ‘do Livro’", diz Zaccaro, a diretora do evento.

"O livro é sempre a matéria-prima, é a estrela de onde sai tudo e para onde vem tudo no fim", acrescenta, lembrando "Harry Potter", que foi de franquia literária a inúmeros produtos, e profissionais que começam a carreira como youtubers e depois escrevem livros. Mas ela aponta que é preciso "desmistificar a questão de que você tem que ter o papel na mão para se sentir leitor".

O quadrinista Mauricio de Sousa ilustra, a seu modo, essa linha de pensamento à reportagem.

Ao mesmo tempo em que exalta o livro como o lugar onde mora "o crescimento intelectual de nós todos", o criador da Turma da Mônica ressalta que esteve em bienais desde os anos 1970, "caprichando muito, sempre, na apresentação do nosso estande com elementos ligados aos produtos que estamos lançando".

O potencial de comércio da Bienal está escancarado a qualquer pessoa que já pisou dentro de um de seus pavilhões. A edição de dois anos atrás, feita num respiro em meio à pandemia, vendeu mais de 2 milhões de livros, mesmo com um público mais modesto.

Não é segredo que a presença num evento como esse tenha um quê de estratégia de marketing. Mas é impossível ignorar que também tem um forte pendor emocional.

Mauricio de Sousa estará na mesa de abertura nesta sexta, ao lado de autores como Ruy Castro, Thalita Rebouças e a própria Ana Maria Machado. Com 87 anos completos, ele responde um pouco incrédulo quando a reportagem pergunta se esse tipo de evento não o exaure. "Cansar?", diz ele. "Com aquela energia toda?"

Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.