Fascínio de Picasso pela pré-história lembra descaso com o Museu Nacional

Exibição em Paris destaca relação do artista com o período e reforça influência das descobertas da época em seu trabalho

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Betty Milan

Escritora e psicanalista, é autora de “O Papagaio e o Doutor” e “Baal”; membro da Academia Paulista de Letras

A arte pré-histórica nunca foi tão contemporânea. Soubemos dela graças às escavações dos arqueólogos feitas a partir do século 19. O homem tinha uma organização social e um pensamento simbólico do qual as expressões artísticas são testemunho.

"Mulher Lançando uma Pedra", obra de Picasso em exibição na mostra "Picasso e a Pré-História", no Museu do Homem de Paris
"Mulher Lançando uma Pedra", obra de Picasso em exibição na mostra "Picasso e a Pré-História", no Museu do Homem de Paris - Mathieu Rabeau/Succession Picasso/Divulgação

Não criava sem escolher cuidadosamente os seus suportes –paredes ou objetos materiais– e as técnicas de fabricação. Os homens pré-históricos são verdadeiros artistas e os modernos souberam reconhecer isso. Eles se valeram da produção daqueles para criar suas obras.

A "Vênus de Lespugue", estatueta de marfim datada do paleolítico superior, entre 24 mil e 26 mil anos atrás, inspira os artistas há mais de um século. Descoberta numa gruta da Haute Garonne, na França, ela ora é vista como uma deusa primitiva, ora como mulher ideal. Picasso se deixou inspirar continuamente por ela.

A fim de lembrar os 50 anos da sua morte, o Museu do Homem de Paris fez uma exposição sobre Picasso e a pré-história. As descobertas arqueológicas e a importação de esculturas permitiram que ele tivesse acesso a um catálogo de obras até então inéditas. O artista se valeu das mesmas para o seu trabalho, privilegiando a arte universal da pré-história –universal porque diz respeito à origem da humanidade.

Quarenta pinturas, esculturas e desenhos dialogam, na exposição do Museu do Homem, com as obras dos ancestrais e com os objetos que o artista guardava preciosamente no ateliê –50 fragmentos de ossos trabalhados pelo tempo e a erosão das águas, além do crânio e dos cornos de um bovídeo, testemunhando a paixão de Picasso pela tauromaquia.

É o seu memento mori, locução latina que serve para lembrar que somos mortais e que pode ser traduzida para "lembrar que você vai morrer".

A exposição abre com uma vitrine onde estão duas réplicas da "Vênus de Lespugue", o que se explica pela mudança radical na obra de Picasso, depois da chegada da estatueta ao Museu de História Natural, em 1927.

O artista passou a representar a mulher de forma inteiramente nova. Além de fazer abstração do rosto, associou volumes lisos e abaulados evocativos da "Vênus" –cabeça oval desprovida de detalhes anatômicos, seios e nádegas muito volumosos, praticamente esféricos, e pernas curtas.

Dois quadros se destacam na exposição, "A Mulher Lançando uma Pedra" e "O Acrobata Azul". No primeiro, a figura representada é simultaneamente humana e animal, mineral e orgânica, feminina e fálica. Mostra a ambivalência da natureza e do gênero e evoca o imaginário popular da pré-história, um mundo deserto, inquietante, onde dos povos originários só restam os ossos.

No "Acrobata Azul", chama a atenção a postura dinâmica e estirada da criatura num movimento giratório que faz pensar na liberdade de execução dos afrescos parietais do paleolítico. Uma liberdade que, segundo o curador, também se explica pelo relevo e a porosidade da rocha na qual a imagem do animal em movimento era representada.

Quem visita a exposição se dá conta do fascínio exercido sobre Picasso pela pré-história e da importância a ela conferida pelos franceses. Como não pensar no incêndio do Palácio Imperial Brasileiro que destruiu grande parte do acervo do Museu Nacional com 20 milhões de itens, entre os quais o crânio de Luzia?

Um acervo comparável ao do Louvre. Foi uma tragédia anunciada —salas fechadas, sem condição de uso, falta de manutenção, infiltrações, gambiarras com extensões elétricas desencapadas numa estrutura inflamável de madeira.

Um risco de incêndio que os administradores não ignoravam e podia ter sido evitado. Não foi evitado e, como se não bastasse, o incêndio não pôde ser apagado em tempo hábil. Quando o Corpo de Bombeiros chegou, faltava água nos hidrantes das imediações. O fogo durou seis horas. Um descaso que comprometeu de forma irreversível o acervo e o conhecimento da nossa pré-história.

Até quando o Brasil vai ser o país do "tem, mas falta"?

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