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Ruim, novo 'Exorcista' é terror moralista que desvirtua o original

'O Devoto', do diretor que fez últimos 'Halloween', aplica lógica identitária a trama incoerente sobre possessão

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O Exorcista: O Devoto

  • Onde Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Autoria Lidya Jewett, Leslie Odom Jr., Olivia O'Neill
  • Produção EUA, 2023
  • Direção David Gordon Green

Dois anos após provocar Hollywood com a crua melancolia de "Operação França", de 1971, William Friedkin, cineasta morto em agosto, conseguiu juntar num mesmo filme terra e céu, materialidade e místico.

Em "O Exorcista", não há dúvidas sobre o poder divino e a possessão demoníaca. Mas as tentações do padre protagonista, bem como as chagas da menina possessa, são humanas demais para só chocar um espectador espiritualizado.

O Exorcista - O Devoto
Lidya Jewett e Olivia O'Neill em cena do filme 'O Exorcista - O Devoto', de David Gordon Green - Divulgação

Cinquenta anos depois, quando falar da violência sobre os corpos femininos se tornou um tema recorrente na arte, por que o cinema parece ter encaretado tanto? Quem acha que conhece a Bíblia faz aberrações como "Som da Liberdade". E quem mal conhece o cristianismo cria monstros como este "O Exorcista: O Devoto", uma soma incoerente de referências para tentar aplicar a lógica identitária para retratar a velha batalha entre o bem e o mal.

Ao contrário do padre do filme original, o diretor David Gordon Green, que fez a última trilogia da franquia de terror "Halloween", parece ter respostas muito claras sobre o mundo que retrata. Até um tanto inconvenientes, como quando uma personagem se põe, de repente, a declamar um monólogo sobre o que é o mal. E Green, como a personagem, acha que a esperança —entenda-se, a confiança na comunidade humana— é suficiente para salvar o mundo.

Como bem sabia o padre do filme de 1973, fé não é consolação —sempre retórica e irreal. Talvez com medo de soar conservador por encarar uma questão espiritual, Green se rende a um roteiro sentimentaloide, mais interessado na religião como um fenômeno sociológico.

A trama gira em torno da possessão de duas adolescentes —uma negra, Angela, papel de Lidya Jewett, filha do protagonista, o cético fotógrafo Victor, vivido por Leslie Odom Jr.; e outra branca, Katherine, de pais evangélicos, interpretada por Olivia O'Neill, cujos traços remetem à garota do filme original.

O Diabo invade seus corpos quando elas se embrenham no mato para fazer um rito espírita e tentar contato com a mãe de Angela, morta num terremoto. O desastre é mostrado como prólogo da trama. Ao final, convém não entregar tudo, veremos que esse subtexto é mais conservador do que parece.

Novamente, talvez por receio de se debruçar sobre as minúcias da tradição judaico-cristã —já considerada meio fora de moda nos círculos progressistas—, basicamente veremos uma jornada que vai tentar reunir a maior quantidade de religiosos, de diferentes vertentes, para expulsar o demônio daquelas adolescentes.

Depois de uma jornada chata e cheia de falação —com direito à participação de Ellen Burstyn, a mãe do filme de 1973, que se tornou supostamente uma "especialista em exorcismos"— o filme culmina num ritual sincrético.

Há um padre católico (de origem latina), um pastor protestante (que não parece saber como proceder, o que soa estranho para uma doutrina que lida com exorcismos de forma mais cotidiana que os católicos), uma freira que nunca passou pelo noviciado (isto é, que desafia o patriarcado católico) e uma espécie de sacerdotisa, negra, afeita a ritos afro, que incorpora elementos da tradição cristã (e, também por acaso, é oncologista).

Aliás, a medicina é outra suposta aliada do processo —e não um elemento do terror, como eram as ressonâncias magnéticas do "Exorcista" de Friedkin. Os bipes de um monitor cardíaco vão acompanhar todo o rito do exorcismo junto dos versos em latim e das conversas com o Diabo.

Green, em vez de um exorcismo, parece filmar uma reunião dos "Vingadores", ou uma palestra motivacional, que culmina numa lição de moral humanista.

Engraçado como um cinema que dá tanto destaque aos corpos tire tão pouco prazer daquilo que filma. Se tivesse menos ideias vazias e mais possessão a valer —com mais cabeças girando, vômito e sangue, o que poderia ser o destino de uns bons milhões de dólares—, talvez a câmera de Green, que tem lá seu talento, se aproximasse de algum pensamento de cinema —isto é, de imagens que acompanham seus espectadores.

Quem for assistir a "O Devoto" pode acordar tranquilo no dia seguinte, crente de que ele foi só um pesadelo num mundo que tem uma joia como "O Exorcista". Basta não lembrar que mais dois filmes já foram confirmados.

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