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Fernando Sabino, 100, ergueu sua literatura popular da crônica

Escritos do mineiro, que foram façanhas de popularidade, são marcados por simplicidade que custa muito a se conseguir

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O escritor Fernando Sabino

O escritor Fernando Sabino Acervo do autor

Rio de Janeiro

A história é manjada. Mas incontornável quando o assunto é Fernando Sabino, cujo centenário se completa nesta quinta, dia 12. O próprio escritor a contou em detalhes inúmeras vezes, falando com naturalidade, mas no fundo evidenciando seu incômodo.

Na tradição mineira de conversar fiado a sério, Sabino recebeu um telefonema de João Guimarães Rosa, que logo bisbilhotou: "Que é que você está fazendo?". Ao ouvir a resposta de que o amigo e colega de ofício estava tentando transformar um conto em peça de teatro, advertiu com "ar blandicioso": "Não faça biscoitos, faça pirâmides...".

O escritor mineiro Fernando Sabino - Paulo Cerciari/Folhapress

Ao entender o sentido lógico da metáfora —uma pirâmide é eterna, um biscoito, efêmero—, Sabino se sentiu não só incomodado como esmagado em suas pretensões de autor. Lembrou-se dos críticos impiedosos que praticamente o expulsavam da literatura, afirmando que ele era o inventor de um gênero composto de pequenos escritos sem qualquer dimensão literária. Ou seja: crônicas.

Sabino nunca foi o inventor da crônica. Nem poderia. Na língua portuguesa, o gênero vem se desenvolvendo desde os relatos sobre glórias e desastres da conquista marítima, com Diogo do Couto, passa por Machado de Assis e João do Rio e chega ao ponto alto de lirismo, invenção e coloquialidade com Rubem Braga e Paulo Mendes Campos.

Colaborando para jornais e revistas de todo o país desde a década de 1940, Sabino fez da crônica um instrumento para se comunicar mais diretamente com os leitores e se estabelecer como escritor profissional.

Algumas delas –em especial duas que estão entre as mais famosas, "O Homem Nu" e "A Última Crônica" – fogem ao formato; são tecnicamente contos, escritos sem qualquer literatice, com aquela simplicidade que custa muito para se conseguir. O estilo de Sabino, limpo e musical, vale a emulação.

No entanto, a frase de Guimarães Rosa —que ergueu uma pirâmide de Quéops, o "Grande Sertão: Veredas" – não lhe saiu da cabeça.

Para desassossego, elaborou uma lista de classificação: tudo bem que Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Victor Hugo, Dickens, Melville, Pedro Nava eram piramidais. Em compensação, Tchékhov, Montaigne, Kafka, Poe, Twain, Borges e Machado eram confeiteiros de mão cheia. É um sofisma, mas bem bolado.

A provocação rosiana está ligada a outro momento inevitável da trajetória de Sabino, a publicação, em 1956, do autobiográfico "O Encontro Marcado", livro que "corre", na definição de Paulo Mendes Campos. Com apenas uma palavra, explica o prazer da leitura, a estima crítica e o alcance de circulação entre o público.

Em termos de Brasil, foi uma façanha: mais de 500 mil exemplares vendidos, mais de cem edições (a mais recente sai agora pela editora Record, comemorando a data redonda de nascimento do autor). Em época de maior difusão no currículo básico de ensino, chegou a ter duas reimpressões por ano. Hoje, ao lado da troca de correspondências com Clarice Lispector, continua a ser a obra mais falada de Sabino, sobretudo pelos jovens.

O enorme sucesso de "O Encontro Marcado" bloqueou o Sabino romancista? O escritor Lúcio Cardoso tinha certeza de que a maldição do segundo romance —conseguir fazer algo tão perfeito quanto o primeiro— seria longa: "Ah, que ótimo! Vamos ficar livres de Fernando Sabino por mais 30 anos".

Cardoso quase acertou na previsão maledicente. O segundo romance, "O Grande Mentecapto", só viria 23 anos depois. Foi a terceira mulher do escritor, Lygia Marina, quem achou numa limpeza de gavetas os originais batidos a máquina de uma obra interrompida mais de três décadas antes. Em apenas 18 dias, as 40 folhas amareladas se transformaram em 250 estalando de novas.

Nelas, conta-se a história picaresca de Geraldo Viramundo, um vagabundo das estradas de Minas Gerais com insights de Dom Quixote, Lazarillo de Tormes, Pantagruel, Carlitos e até de Vinicius de Moraes.

Publicado em 1979, "O Grande Mentecapto" foi a divertida resposta às angústias da entressafra. Durante o jejum romanesco, o escritor experimentou outras áreas. Fundou duas editoras com Rubem Braga: a Editora do Autor, especializada em crônicas, e a Sabiá, que lançou entre nós Gabriel García Márquez e Manuel Puig.

Associado ao cineasta David Neves, criou a Bem-te-Vi Filmes, que produziu uma série de documentários sobre escritores brasileiros: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Erico Verissimo.

Escreveu para o Jornal do Brasil perfis de dar inveja a Gay Talese, mais tarde reunidos em dois volumes intitulados "Gente" —que deveriam ser adotados em escolas de jornalismo.

Foi cancelado, antes que a expressão existisse, ao publicar em 1991 o livro "Zélia, uma Paixão", em que a narra o envolvimento amoroso, na base do bolero, entre a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, da Economia, e o ex-ministro Bernardo Cabral, da Justiça, ambos do governo Collor.

Àquela altura, ele já se considerava membro de uma sociedade em extinção: um homem de letras. Dedicou-se a preparar sua "obra póstuma antecipada", dando à luz, entre outros livros, "Os Movimentos Simulados", romance iniciado em 1946.

Ao morrer de câncer em 2004, na véspera de completar 81 anos, tinha pronto o epitáfio que se lê na lápide do seu túmulo: "Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino".

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