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Gal Costa

Lanny Gordin, gringo, fez da guitarra elétrica seu jeito de falar brasileiro

Nascido na China, músico não dominava português e tinha menos de 20 anos quando injetou vigor e viagem na tropicália

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São Paulo

De muitas formas, Lanny Gordin era o cara certo na hora certa. O mítico guitarrista, morto na última terça-feira (28), foi responsável por tocar o instrumento mais determinante para a estética da tropicália, justamente quando o movimento despontou no Brasil.

Em 1967, uma passeata contra a guitarra elétrica tomou o centro de São Paulo, com nomes como Elis Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e até mesmo Gilberto Gil. Tratava-se de uma briga conceitual —aquele instrumento visto quase como alienígena faria a cultura brasileira abaixar a cabeça para a música anglófona.

homem branco de barba toca guitarra
O guitarrista Lanny Gordin em retrato dos anos 1970 - Acervo Guilherme Held

Nada disso preocupava para Gordin. Nascido em Xangai, na China, filho de russo com polonesa, ele morou em Israel antes de chegar ao Brasil. "Não tenho cultura pra entender movimento tropicalista ou qualquer movimento", ele disse à Folha há dois anos.

Alheio a questões de identidade nacional, determinantes na época, Gordin gostava mesmo de tocar. Adolescente, já se apresentava nas noites da Stardust, boate de seu pai, Alan Gordin, em São Paulo.

Dividiu o palco com instrumentistas geniais como Hermeto Pascoal —com quem gravou a pérola cult "Brazilian Octopus", álbum de 1969— e Pepeu Gomes, de quem virou amigo. Não demorou a tocar com artistas da jovem guarda, que já usavam a guitarra elétrica, mas numa pegada ainda muita presa aos Beatles.

Mas seu estilo só foi se consolidar junto com a tropicália. O movimento queria abraçar a guitarra, e Gordin se somou a nomes como Sérgio Dias, dos Mutantes, nessa missão.

Enquanto Caetano Veloso, Gil e Gal Costa representavam com suas ideias, vozes e corpos os conceitos tropicalistas, Gordin tocava com liberdade. Não queria fazer política com uma guitarra na mão, mas expandir as possibilidades de existência através dela.

Fosse solando um baião em "17 Léguas", gravada com ele por Gilberto Gil, ou abrilhantando os dedilhados desengonçados de Jards Macalé em "78 Rotações", Gordin injetava vigor, viagem e um tanto de descontração na tropicália.

Sua guitarra remetia a Jimi Hendrix na agressividade e nos agudos cortantes, mas Gordin sabia soar psicodélico como no disco de capa colorida de Gal, de 1969. E ele também dominava a sujeira.

Nos anos 1960, os engenheiros de som eram orientados a limpar ruídos das fitas. Mas Gordin abusava dos efeitos de distorção, e a textura ruidosa da guitarra é indissociável dos álbuns clássicos da tropicália —incluindo também trabalhos de Rita Lee, Erasmo Carlos e Tim Maia.

Tais subversões só foram possíveis por causa de gente corajosa como o maestro Rogério Duprat e o produtor Manoel Barenbein, presentes na maioria desses discos. O segundo deles se lembrou, em entrevista a este repórter, de como gravou "Irene" para o álbum branco de Caetano.

Barenbein tocou para Gordin uma gravação em que Gil erra a hora de começar a cantar, Caetano brinca com ele, e a dupla volta a performance do começo. Nesse momento, o guitarrista improvisa um solo tão estranho quanto intrigante, que parecia vir de outro planeta. Fascinou o produtor a ponto de ele lançar a música mesmo com o "erro".

É uma situação que reflete como Gordin, conhecido pelos improvisos, injetou espontaneidade num movimento tão cheio de premissas e conceitos. Isso além do fogo que sua guitarra trouxe àquela turma amante de violão, bossa nova e a canção brasileira.

Quando Gordin, que também tocou baixo em vários desses discos clássicos, foi citado por Gal como uma das pessoas que ela admirava em "Meu Nome é Gal", ele não tinha mais que 18 anos. Não dominava o português, e fez das seis cordas elétricas sua maneira de falar brasileiro.

Na morte, foi reconhecido por gerações de guitarristas, de Pepeu Gomes a Edgard Scandurra, passando por Kiko Dinucci. Afinal, pegar numa guitarra no Brasil é ecoar um dos responsáveis por fazer o instrumento ter vida própria nesse canto do mundo.

Anos depois da marcha contra a guitarra, Gordin tocou com Elis Regina e Jair Rodrigues. Àquela altura, não dava mais para dizer que o instrumento não falava brasileiro.

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