Se um sorriso negro traz felicidade, festivais destinados a públicos não brancos espalhados pelo Brasil são conhecidos por causarem catarses prometendo espaços seguros de entretenimento para quem vive com a sensação de não pertencimento. Os eventos, no entanto, sofrem para terem seu valor reconhecido e conseguirem patrocínio.
Entre novidades e eventos tradicionais, são exemplos o Festival Feira Preta, que aconteceu em São Paulo no início de maio; o Latinidades, realizado no final de julho, em Brasília; o Movimento Cidade, que acontece entre de 16 a 18 de agosto, em Vila Velha; o Afropunk, nos dias 9 e 10 de novembro, em Salvador; o Batekoo; em 23 de novembro, na capital paulista; e o Psica, nos 13, 14 e 15 de dezembro, em Belém.
"A música preta é fundamento da música brasileira, é parte dessa herança da diáspora forçada. Nossa presença em festivais está dada", diz Luedji Luna, artista recorrente nesses festivais. "Mas ainda que a gente seja contemplado em grandes festivais, é necessário que a gente construa espaços que sejam nossos, que coloquem corpos pretos como dono e proprietário, na tomada das decisões, na curadoria."
Para atraírem seu público-alvo, esses eventos também têm em comum a preocupação com a acessibilidade. A última edição da Feira Preta tinha ingressos por R$ 60. O próximo Psica já tem entradas disponíveis a partir de R$ 90; o Batekoo, por R$ 160; e o Afropunk, por R$ 170, enquanto o Latinidades e o Movimento Cidade são gratuitos.
Para comparação, o valor médio dos ingressos de outros grandes eventos no Brasil é de R$ 432, segundo levantamento da plataforma Mapa dos Festivais. A última edição do Lollapalooza tinha tíquetes a partir de R$ 1.425, e o próximo Rock in Rio parte dos R$ 795.
Se em "Sorriso Negro" Dona Ivone Lara evocava a felicidade, em 1981 os Racionais MCs, 20 anos depois, falavam que "o caminho da felicidade ainda existe, é uma trilha estreita em meio a selva triste". Já Emicida, em 2019, cantava que "a felicidade do branco é plena, a felicidade do preto é quase".
O tema é uma constante nas letras de artistas negros, sobretudo porque ainda parece ser uma realidade distante para pessoas não brancas, marcadas pelo estereótipo do sofrimento.
"A felicidade não pode ser considerada algo utópico para nós, para nossa comunidade. Ela é real, mesmo com tantos problemas. Muitas vezes, isso é tirado de nós. Temos que retomar nossa necessidade e vontade de sermos felizes", diz a cantora Preta Gil, que foi headliner da Feira Preta.
O evento escolheu a frase "ser feliz é nossa revolução" para conduzir a edição deste ano, no parque do Ibirapuera, em São Paulo, por onde passaram cerca de 50 mil pessoas em três dias. "O que percebo é que o público, principalmente de pessoas pretas, LGBTQIA+ e as ditas minorias, que a gente sabe que não são minorias, querem não só ir a um festival, mas ter a sensação de pertencimento à narrativa", diz a cantora.
Era esse o objetivo de Adriana Barbosa, que há cerca de 20 anos está à frente da Feira Preta, agora um festival. Desde o início dos anos 2000, o evento é voltado para empreendedorismo, tecnologia, música e artes visuais. "É óbvio que a resistência faz parte da história da população negra no Brasil, mas eu não quero falar só sobre luta. A gente precisa vibrar essa energia de felicidade também", diz Barbosa.
Além de Preta Gil, entre as atrações estavam nomes como Marcelo D2, Luedji Luna, Dona Onete e Tasha e Tracie. Em paralelo à programação musical, houve uma série de debates de temas variados, além da própria feira de empreendedoras.
Na última edição, a Feira Preta contou com estrutura semelhante à de outros festivais de médio porte da cidade, como Nômade, Turá e Coala, graças também ao engajamento de patrocinadores.
"Quando a gente começou, quase não havia festivais organizados por pessoas pretas, sobretudo por mulheres. Para a gente é tudo mais complexo, e disputar esse lugar dos festivais sendo uma mulher preta é mostrar que esse lugar também é nosso", diz Barbosa.
Caminha nesse sentido o festival Afropunk, que reuniu 50 mil pessoas em dois dias em Salvador na última edição, em novembro passado.
Nascido nos Estados Unidos como um movimento de resistência preta na comunidade punk-rock, com o lançamento de um documentário em 2003, o evento realizou sua primeira edição no Brooklyn, em Nova York, em 2005. Desde então, tem chegado a países como África do Sul, Reino Unido, França e Brasil.
"Seguimos um rastro deixado pelas rodas de samba, pelos bailes charme, pelos blocos afro do Carnaval de Salvador, pelas primeiras reuniões da cultura hip-hop e por aí vai. É permitir ao povo negro brasileiro pensar numa vida que vá além da sobrevivência", diz João Gabriel Mota, coordenador de comunicação da IDW, responsável pelo Afropunk no Brasil. "Celebrações como essa são um misto de utopia e realidade que serve como um respiro, um pequeno sonho compartilhado."
Com 12 anos de história e raízes periféricas, o Psica também surgiu dessa necessidade. Em sua última edição, no ano passado, o festival cresceu de tamanho e de importância e em três dias reuniu 60 mil
pessoas na capital paraense.
Mas, mais do que a capacidade de reunir multidões, o evento se destaca por combinar uma escalação diversa e celebrar o Pará em sua pluralidade cultural. É um evento em que Jorge Ben Jor tem o mesmo peso da rainha do tecnomelody, Viviane Batidão, ou uma equipe de aparelhagem como a Tudão Crocodilo.
"Os festivais que aconteciam em Belém reproduziam, de alguma forma, o que acontecia no Sudeste. Não tinha a nossa cara. A gente tinha necessidade de um espaço pensado para a gente, que a gente se sentisse seguro e mais livre ali", afirma Jeft Dias, que idealizou o festival ao lado do irmão, Gérson Júnior.
Mesmo com mais de uma década de história, o Psica, porém, só conseguiu patrocínio pela primeira vez no ano passado. "Até 2022, foi tudo na loucura mesmo, na raça, criando estratégias de financiamento, pegando dinheiro emprestado, enfim, tentando financiar o festival enquanto a gente estava vendendo
marmita na rua", conta Dias.
Foi se endividando também que a organização do festival Batekoo realizou sua primeira edição, em 2022. A festa criada por Mauricio Sacramento e Artur Santoro, em Salvador, há dez anos, tinha intenção de ser um evento feito por e para pessoas pretas e LGBTQIA+.
"Sinto que muitas vezes a gente ainda tem que entrar na verba de diversidade das marcas. Compartilhamos dessa mesma luta, de não entrar no que sobrou e conseguir fazer parte de um planejamento anual das empresas", afirma Sacramento. "Precisam entender a relevância cultural que movimentos como a Feira Preta e a Batekoo têm."
É ainda mais difícil provar essa relevância no mercado saturado do pós-pandemia. No primeiro semestre deste ano, foram realizados 146 festivais no Brasil, quase um por dia, um aumento de 18% em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo o Mapa dos Festivais. Nesse cenário, 17 eventos
foram cancelados ou adiados.
Somado a isso, "tem o racismo estrutural", afirma Jaqueline Fernandes, idealizadora do Latinidades, que acontece em Brasília desde 2008, mas até hoje não conseguiu patrocínio e depende de editais. "No caso do festival, é uma combinação ainda mais perversa —o racismo com machismo e uma falta de credibilidade de fé naquilo que a população negra produz."
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