Com 'Ad Astra', cineasta leva perda familiar ao espaço sideral

Obra de James Gray é marcada por personagens aprisionados por laços de parentesco e paixões que não controlam

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Martim Vasques da Cunha

[RESUMO] Criador de obra breve e coesa, o diretor James Gray retrata em seus filmes personagens feridos por perdas familiares e aprisionados a paixões que não controlam, angústias que também reverberam no espaço sideral no recente ‘Ad Astra’.

A obra cinematográfica de James Gray é um lamento amoroso sobre a perda familiar. Desde “Fuga para Odessa” (1994), seu primeiro longa, seus heróis estão aprisionados pelos laços de parentesco. Envolver-se no mundo do crime, como aconteceria também nas películas seguintes, “Caminho sem Volta” (2000) e “Os Donos da Noite” (2007), é apenas uma consequência lógica. 

Esses filmes formam um trio no qual a família e a criminalidade (ou o seu oposto, o mundo da lei) são reflexos de uma consciência atormentada que, para encontrar uma solução na dor que envolve a perda, vive em um universo subterrâneo onde as paixões sufocam a bondade.

Tomemos o exemplo de Bobby Green, o marginal de luxo vivido por Joaquin Phoenix em “Os Donos da Noite”. Seu sobrenome neutro esconde as origens familiares —na verdade é Grusinsky, um nome russo—, como também a relação ambígua que tem com o pai, o chefe de polícia Burt (Robert Duvall). 

Bobby admira o patriarca, mas não seguiu seus passos. Deixou este caminho para o irmão mais velho, Joseph (Mark Wahlberg). Descobrimos depois que a ferida emocional tem a ver com a perda trágica da mãe, cujo sobrenome de solteira é o mesmo de Bobby no submundo russo. Ele renega o pai porque quer relembrar a mulher que lhe deu a vida. No entanto, no mundo de James Gray, a ausência de um ente querido não faz alguém escapar de sua vocação. 

Nesta intrincada trama policial, que envolve crime, tráfico de droga e uma intensa perseguição de carros (digna dos melhores momentos de “Operação França”, de William Friedkin), o amor fraternal de Joseph por Bobby faz este último descobrir o que deve realmente fazer. O lamento é, então, transformado em dever.

A família ainda é um cárcere no filme seguinte de Gray, feito após a sua “trilogia do submundo russo”. 
Como se fosse um cenário opaco, a Rússia continua lá, mesmo nas ruas modernas do Brooklyn (afinal de contas, Gray é de descendência ucraniana).

Não à toa, em “Amantes” (2008), o cineasta emula um clássico literário de Fiódor Dostoiévski, a novela “Noites Brancas” (1848), já filmada por ninguém menos que Luchino Visconti e Robert Bresson. 

Há uma nítida diferença entre as adaptações: se Visconti e Bresson encenaram a história de amor do pobre-diabo apaixonado por uma mulher envolvida com outro homem como tragédia lírica, Gray a trata como um filme noir. 

Há apenas um detalhe a mais na sua versão: o papel de indeciso não é mais o da mulher, e sim o do homem —no caso, o jovem Leonard, novamente interpretado por Phoenix. 

 “Os Donos da Noite” e  “Amantes” dão a impressão de que Gray sempre faz o mesmo filme. É a mais pura verdade. Apesar dos gêneros distintos —o primeiro é um filme policial, o segundo é um romance—, o tema da perda familiar permanece.

Os atores Mark Wahlberg (policial) e Joaquin Phoenix em cena do longa-metragem "Os Donos da Noite"
Os atores Mark Wahlberg (policial) e Joaquin Phoenix em cena do longa-metragem "Os Donos da Noite" - Divulgação

Todavia, se em “Donos” o eixo é a relação conturbada entre Bobby e o chefe de polícia Burt, em “Amantes” a ferida está na própria psique de Leonard. Ele não consegue cumprir as expectativas de seus pais —e, por isso, capitula diante das paixões sobre as quais não tem controle.

O lamento só pode ser curado ao encontrar duas mulheres —Sandra (Vinessa Shaw), a moça ideal da vizinhança, e Michelle (Gwyneth Paltrow), o obscuro objeto de desejo com um passado conturbado. Leonard não sabe o que fazer com essas duas alternativas encarnadas da realidade que deve viver. 

Vemos então a habilidade cinematográfica de Gray: com imagens sutis e uma encenação precisa (além de uma sublime Isabella Rossellini como a mãe amorosa que guia silenciosamente o filho perturbado), ele faz o espectador perceber que o verdadeiro crime de Leonard não é apenas de caráter psicológico ou sentimental. É recusar o que o real lhe oferece e buscar um mundo semelhante a um belo sonho, mas que sempre termina em danação.

James Gray ampliaria esse dilema na sua “trilogia épica”, composta por “Era uma Vez em Nova York” (2013), “Z: A Cidade Perdida” (2016) e “Ad Astra”, em exibição no Brasil.

No primeiro filme, Marion Cotillard vive Ewa, imigrante polonesa que, junto com a irmã caçula doente, tenta viver o “sonho americano”, mas acaba vítima dos trambiques de Bruno (Phoenix), que se apaixona por ela.

O filme não é um mero épico romântico. Gray subverte os clichês ao introduzir o tema do desejo mimético, já esboçado em “Amantes”. É pouco provável que o cineasta conheça a obra de René Girard, o teórico francês que discorreu obsessivamente sobre o fato de que tudo o que fazemos neste mundo é cópia de um modelo que imitamos sem sabermos a razão. Isso não impede, porém, que um grande artista como Gray converse com ideias, teorias e sentimentos de outrem, pois fazem parte da condição humana.

Portanto, na história de Ewa e Bruno, o cineasta adiciona Emil (Jeremy Renner), primo do trambiqueiro que também se envolve com a jovem polonesa. O impasse está armado —e o que antes parecia ser uma família postiça transforma-se novamente no lamento por uma perda que já estava determinada há muito tempo. 

Em termos cinematográficos, Gray também expande seu escopo. Antes, suas influências eram os filmes policiais da década de 1970, o Scorsese de “Taxi Driver”(1976) e os melodramas neorrealistas de Visconti e Rossellini. Nos filmes mais recentes, ele dialoga com o Coppola de “O Poderoso Chefão - Parte 2” (1974), o Sergio Leone de “Era Uma Vez na América” (1984) e o Visconti operístico de “Rocco e Seus Irmãos” (1960).

Os atores Gwyneth Paltrow e Joaquin Phoenix em cena de `Amantes' (2008), de James Gray
Os atores Gwyneth Paltrow e Joaquin Phoenix em cena de `Amantes' (2008), de James Gray - Divulgação

O desejo mimético entre os personagens é refletido no próprio desejo mimético do cineasta ao dialogar com seus pares de profissão. Segundo a crítica, Gray é considerado um cineasta de molde clássico por causa de seu amor pela tradição da sétima arte. Trata-se de um engano.

Se observarmos atentamente sua filmografia, percebemos que é um dos cineastas mais experimentais dos últimos anos. Uma prova está no plano final de “Era uma Vez em Nova York”, que registra um Phoenix atormentado, fugindo sem saber para onde, refletido em um espelho que mostra ao espectador que ele era o verdadeiro imigrante do título original (“The Immigrant”).

Este experimentalismo dissimulado fica evidente em “Z: A Cidade Perdida”. Trata-se de uma mistura de David Lean com Werner Herzog, dois cineastas que, apesar de lidarem com o gênero épico, são antípodas. Gray, contudo, os une porque, ao contar a história do explorador Percy Fawcett (Charlie Hunnam) na busca obsessiva pelo território mítico de Eldorado, lida novamente com o desejo mimético. 

A ferida do personagem não é mais no âmbito emocional, mas no curso da história da civilização. A loucura de Fawcett contamina toda a sua família, destruindo o filho e a esposa, e também se espalha pela Inglaterra dominada pelo mito do progresso tecnológico. O desejo mimético torna-se, assim, uma espécie de metafísica negativa, registrada por Gray para nossa posteridade.

Os atores Joaquin Phoenix e Marion Cotillard em cena do filme "Era Uma Vez em Nova York", de James Gray
Os atores Joaquin Phoenix e Marion Cotillard em cena do filme "Era Uma Vez em Nova York", de James Gray - Divulgação

Logo, resta ao jovem cineasta (tem 50 anos) vislumbrar o futuro. É o que faz com “Ad Astra”. Todos os temas dos filmes anteriores convergem para esta ficção científica que, apesar de conversar com o Kubrick de “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), tem como influência maior o Coppola de “Apocalypse Now” (1979) e a base literária desse épico de guerra —a novela “O Coração das Trevas” (1899), de Joseph Conrad.

Roy McBride (um Brad Pitt minimalista) viaja ao espaço sideral para encontrar o seu pai desaparecido em Netuno, Clifford, pioneiro da ciência que supostamente seria o culpado por ataques de energia que afetam o planeta Terra. Nosso herói foge para o “silêncio infinito” das estrelas porque quer fugir de si mesmo. A perda o consome. 

Na busca, porém, Roy percebe que “o filho herdou os pecados” do patriarca. Descobre uma ira primitiva dentro de si —e procura desesperadamente por alguma solução.

Ele a encontra ao reconhecer que, no vasto universo, a solidão e o abandono metafísico são os únicos anteparos. Não há como fugir. Se recusarmos tal fato, estaremos condenados a não aprender a viver —e a amar.

No fim de “Ad Astra” (e no cinema de Gray em geral), é isso o que “movimenta o sol e as outras estrelas”. E é o que nos faz ir adiante, em uma arte da perda cuja maior recompensa é transformar nosso lamento em vitória.


Martim Vasques da Cunha é jornalista e escritor, autor de “Crise e Utopia: O Dilema de Thomas More” (2012) e “A Poeira da Glória” (2015)

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