Descrição de chapéu Perspectivas

Busca por representação aumenta presença de negros nos palcos e plateias

Festivais e espaços culturais estão cada vez mais preocupados em levar diversidade a sua programação

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No início dos anos 1940, depois de assistir a uma montagem peruana de “O Imperador Jones”, de Eugene O’Neill, o ator, diretor e dramaturgo Abdias Nascimento se inquietou com o protagonista. Jones, um personagem negro, era interpretado por um ator branco maquiado de preto.

“Por que um branco brochado de negro?”, questionou então Abdias, que comparou o caso à situação brasileira. “Na minha pátria, tão orgulhosa de haver resolvido exemplarmente a convivência entre pretos e brancos, deveria ser normal a presença do negro em cena, não só em papéis secundários e grotescos.”

Instigado, o diretor e líder negro viria a fundar poucos anos depois, em 1944, o Teatro Experimental do Negro —e faria ele próprio o papel do imperador Jones. A companhia carioca atuou até os primórdios do regime militar, com o intuito de valorizar a herança cultural e a identidade do negro, e formou nomes importantes como a atriz Ruth de Souza.

A questão de Abdias ainda ecoa no teatro brasileiro. Nos últimos anos, porém, a busca por representatividade vem conseguindo, mesmo que a passos lentos, alterar as cores dos palcos e das plateias, sempre tão dominados por atores e espectadores de pele clara. E também mexer com festivais e espaços culturais, cada vez mais preocupados em levar diversidade a sua programação.

Eu mesma, pessoa branca, em dez anos de cobertura teatral pouco reparei na discrepância étnica das casas de espetáculo —por ignorância, privilégio ou mesmo falta de atenção.

Há diversos fatores nessa equação, mas a representatividade (para artistas e público) tem papel fundante.

Divulgada em 2018, a última pesquisa Cultura nas Capitais, realizada pela consultoria JLeiva em 12 cidades brasileiras, mostrou que negros e indígenas participam menos de atividades culturais do que brancos, ainda que tenham maior interesse. 

Segundo análise da consultoria, essa menor frequência pode estar combinada a outras desigualdades, como dificuldade de acesso, baixa escolaridade e menor renda desses grupos na sociedade. Mas haveria outra razão. “As pessoas autodeclaradas pretas e indígenas tendem a participar mais frequentemente de comunidades que promovem eventos ligados a questões identitárias —inclusive eventos culturais”, diz o estudo.

É justamente o que se vê nessas produções recentes. Não há apenas artistas negros em cena, escrevendo ou dirigindo trabalhos. São espetáculos que discutem questões do negro sem a visão estereotipada que se tornou tão comum. Assim, as plateias somam presença maior de afrodescendentes, que se veem representados em cena.

Isso ocorre em trabalhos de linguagens diversas, de musicais populares a produções experimentais, que muitas vezes vão na contramão da atual crise. Num cenário de recessão econômica e cortes na área da cultura, em que os teatros sofrem com a falta de público, esses espetáculos muitas vezes têm casas cheias. 

É o caso do musical “Elza”, no qual sete atrizes negras interpretam facetas da cantora. A peça estreou no ano passado, circulou por 16 cidades e, segundo a produção, hoje soma mais de 100 mil espectadores. Já fez quatro temporadas no Rio e começou a terceira em São Paulo, no Teatro Porto Seguro, na sexta (8).

Outro caso que chama a atenção é o da performance “Cuidado com Neguin”, do carioca Kelson Succi. Nascido no Complexo do Alemão, onde ainda vive, ele faz de seu espetáculo uma série de narrativas sobre a relação do negro pobre com a cidade. É o olhar torto na rua, a violência e até o estereótipo do “exótico”. 

Kelson divulgou seu trabalho com vídeos em redes sociais e viu suas sessões lotarem de jovens negros como ele. Até chamou a atenção da equipe do cantor Baco Exu do Blues, que o convidou para atuar em “Bluesman”, premiado clipe do músico baiano.

homem com rosto molhado
O ator e diretor Preto Amparo em cena do espetáculo “Violento” - Divulgação

Já “Violento”, do mineiro Preto Amparo —que busca uma identidade autônoma do negro, livre da opressão social—, provocou depoimentos bastante comoventes de espectadores, que se viram representados em cena, num bate-papo logo após uma sessão no Sesc Ipiranga, em agosto. 

Produções também ganham força ao reler clássicos sob a perspectiva negra, como fazem “Black Brecht: E se Brecht fosse Negro?”, do coletivo Legítima Defesa, inspirada na peça “O Julgamento de Luculus”, do dramaturgo alemão; e “Gota d’Água {Preta}”, uma adaptação do diretor Jé Oliveira para o musical de Chico Buarque e Paulo Pontes. 

Ou também ao ocupar espaços habitualmente brancos, caso de “O Encontro – Malcolm X e Martin Luther King Jr.”, que se tornou o primeiro espetáculo de elenco todo negro a cumprir temporada no tradicional Teatro Anchieta, no Sesc Consolação. E até tornando-se tema de mostras, como o 1º Fórum de Performance Negra de São Paulo, que começa no dia 15/11, e de livros, entre eles “Dramaturgia Negra”, antologia recém-publicada pela Funarte e organizada por Eugênio Lima e Julio Ludemir.

Por fim, firmam-se como resistência num período de ascensão do conservadorismo, em que grupos rechaçam políticas para minorias e as conquistas de movimentos sociais. Uma espécie de oásis numa amplidão de virulência. 


Maria Luísa Barsanelli é jornalista especializada em teatro.

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