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Ousadia seria Flip homenagear, juntos, Bishop e seu tradutor

É provável que muitos leitores vão conhecer a poeta pela voz de Paulo Henriques Britto

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bishop e lota em fazenda

Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares na fazenda Samambaia, perto de Petrópolis (RJ), em 1954 Rollie McKenna/Divulgação

[RESUMO] Ousadia seria a Flip homenagear, ao lado da escritora americana Elizabeth Bishop, seu tradutor no Brasil, o também poeta Paulo Henriques Britto.

No Brasil, a literatura nacional, ou, diria, a literatura escrita em língua portuguesa, não merece tanto espaço na mídia e destaque quanto a literatura estrangeira. Basta examinar o que se publica em jornais e revistas sobre o tema aqui. 

Nesse sentido, vamos na contramão de outros países, como os Estados Unidos e a Inglaterra, que priorizam a literatura local. 

Em uma conversa com a artista chilena Cecilia Vicuña, radicada há anos em Nova York, ela afirmou, por exemplo, que “os Estados Unidos são o país que menos lê traduções no mundo”. “Porque é um país que está orientado a pensar somente nele mesmo, somente nos seus interesses. Na cultura do egoísmo o tradutor não tem lugar”. Parece que não vivemos a “cultura do egoísmo” —o que seria positivo se não vivêssemos a cultura do colonizado.

Assim, não surpreende que o maior evento literário brasileiro, a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), queira homenagear a americana Elizabeth Bishop

A escritora morou no Brasil, embora nunca tenha escrito nada em português. Sua obra, escrita em língua inglesa, foi traduzida oficialmente por aqui pelo experiente tradutor e poeta Paulo Henriques Britto.

Como a Flip não é uma festa só para experts, ao contrário, é uma festa democrática (até quando?) que acolhe os mais diversos leitores, é provável que muitos deles, caso se interessem pela obra da Bishop, vão conhecê-la pela voz de Paulo Henriques Britto. Não deveria ser ele também o homenageado da festa, ao lado da escritora americana? 

Essa decisão, sim, seria ousada e estimularia a discussão sobre o estatuto do tradutor como coautor — e também sobre a ética do tradutor, quando ele se depara com posições políticas e pessoais controvertidas.

A Flip 2020 inovou, como afirma a curadora do festival, Fernanda Diamant, ao escolher uma “autora estrangeira”. Diamant sabia das “opiniões polêmicas e contraditórias” da escritora sobre o Brasil, mas as minimiza, destacando que Bishop as emitiu em “uma ou duas frases”. 

Como esta, aliás: “Reidy também era uma das poucas pessoas sãs com quem Lota tinha trabalhado. Ela jura que todos os homens brasileiros são ligeiramente doidos —as mulheres podem ser sãs, mas infelizmente são retardadas mentais...”. 

Somente essa afirmação já bastaria para indagar a razão da homenagem em um momento político tão traumático, em que preconceitos de todas as ordens e regressões têm se tornado uma bandeira ideológica.

Diamant justifica as opiniões políticas de Bishop afirmando que ela era “desinformada” e cita exemplos de escritores brasileiros que também tiveram opiniões polêmicas. Seria o velho provérbio às avessas, “um erro justifica o outro”? E, se justifica, por que não ouvir e discutir primeiro os autores nacionais com posições conflituosas? 

Na falta de um argumento convincente acerca do posicionamento de Bishop, tem-se apelado aos bodes expiatórios, em particular a brasileira Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, conhecida como Lota e parceira amorosa da poeta.

Paulo Henriques Britto afirma que as opiniões da escritora “refletem os juízos de valor” de sua companheira de anos e que Bishop não era uma escritora politizada. Outros dizem que a turma com a qual ela andava era má companhia.

Resumindo, Lota e a turma de Bishop são os os “inocentes livres”, como diria René Girard, que carregam os males da humanidade e, por isso, precisam ser expurgados no lugar dos culpados.

Evitar chamar Bishop à responsabilidade por suas próprias opiniões antidemocráticas e preconceituosas a respeito do Brasil é voltar a fazer, como disse Girard no livro “O Bode Expiatório”, o que “as comunidades medievais” faziam. 

Essas comunidades “temiam de tal modo a peste que até seu nome as apavorava; evitavam o mais que podiam pronunciá-lo e mesmo tomar as medidas que se impunham, com o risco de agravar as consequências das epidemias”, escreve Girard. 

“Sua impotência era tal que reconhecer a verdade não seria enfrentar a situação, mas antes entregar-se a seus efeitos desagregadores, renunciar a todo aspecto de vida normal. A população inteira se associava voluntariamente a esse tipo de cegueira. Tal vontade desesperadora de negar a evidência favorecia a caça aos ‘bodes expiatórios’.”

Quanto ao fato de Bishop não ser uma escritora politizada, pode-se dizer que o silêncio da escritora sobre as questões políticas brasileiras em sua obra reflete a indiferença a tudo o que acontecia à sua volta. Isso por si só é uma posição política. 

Na Flip 2020, teremos “olhos azuis, nomes ingleses e remadores”, como os vindos de “Santarém”, poema de Bishop escrito em 1978. 


Dirce Waltrick do Amarante, escritora e tradutora, é professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina e autora da peça "Minha Pequena Irlanda" (no prelo), baseada na obra de James Joyce.

Entenda a polêmica

Em 25 de novembro, a poeta americana Elizabeth Bishop (1911-79) foi anunciada como a homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty em 2020. A escolha gerou protestos. Mais do que o fato de ser estrangeira (a primeira na história da Flip), foram opiniões de Bishop sobre o Brasil, onde viveu de 1951 a 1971, o motivo das queixas. 

Em cartas, ela fez pouco de artistas brasileiros e elogiou o golpe de 1964, "uma revolução rápida e bonita". Armou-se nas redes sociais uma campanha pelo boicote à Flip. 

A curadora Fernanda Diamant ressaltou o vínculo da poeta com o país e considerou que as opiniões políticas eram influenciadas pelo grupo de sua companheira, a arquiteta Lota de Macedo Soares (1910-67). Na terça (3), a organização da Flip disse que estava ouvindo “as manifestações de todos e pensando em seu significado".

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