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Se Elizabeth Bishop fosse Adélia Prado ou Rachel de Queiroz

Marilene Felinto rebate as críticas da esquerda ao perfil político da poeta escolhida para ser homenageada na Flip

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elizabeth bishop em preto e branco

Elizabeth Bishop no Brasil, em 1954 Divulgação

[RESUMO] Escritora considera revolucionária a escolha da americana para ser homenageada da Flip 2020 e rebate as críticas da esquerda ao perfil político da poeta, cujas frases sobre o golpe de 64 seriam insignificantes diante de sua vida e obra.

A gritaria provocada pela escolha da poeta americana Elizabeth Bishop para homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2020 não deixou de ser impressionante e detestável —manifestação de esquerda equivocada, irresponsável e sem propósito. 

Trato aqui do assunto —da escolha do nome, que considero revolucionária, antes de qualquer coisa— por quatro motivos: 1) minha paixão pela poesia e biografia de Bishop é antiga; 2) em 24 de setembro de 1995, foi publicada nesta Folha uma reportagem que fiz sobre vida e obra de Elizabeth Bishop, como enviada especial ao Rio de Janeiro e Petrópolis, dois lugares onde ela viveu; 3) no fim de novembro último (25), aceitei participar da leitura de trechos de cartas e poemas de Bishop, em São Paulo, quando do anúncio de seu nome como homenageada da Flip; 4) e porque andam me perguntando: “O que achou da escolha, você que, na edição anterior da Flip, falou mal do homenageado, Euclides da Cunha?”.

Ora, exatamente. A resposta a essa última pergunta é: falei porque tive a oportunidade de fazer a crítica; porque espaços de democracia devem acolher diversidade de visões sobre um mesmo fato. Ressaltei as qualidades da obra de Euclides da Cunha na ocasião, mas não pude me furtar a apontar sua concepção racista de mundo, sua colaboração para o racismo estrutural brasileiro que se perpetua. Ainda bem que tive a chance, e ali dentro da homenagem.

Volto à reportagem sobre Bishop. Naquele ano de 1995, não haveria algazarra de esquerda nem de direita conservadora quando da ideia do genial Alcino Leite Neto, então editor do caderno Mais! desta Folha (e hoje editor-executivo da revista Piauí), de bolar a edição do Mais! sobre Elizabeth Bishop, em cuja capa o título dizia: “Feijão preto, amor e diamantes”. E que tinha ainda como subtítulo: “O romance da poeta americana Elizabeth Bishop com Lota de Macedo Soares sai das sombras com o lançamento no Brasil da coletânea de cartas ‘Uma Arte’”. 

A coletânea seria publicada em novembro do mesmo ano. “Feijão preto” simbolizava o Rio de Janeiro, “amor” era Lota e “diamantes” era a cidade de Mariana, em Minas Gerais, onde Bishop também viveu.
A reportagem de quatro páginas —em que meu texto tinha como título principal “Mapa de um amor brasileiro”—, talvez o mais completo apanhado jornalístico já realizado no Brasil sobre Bishop, incluía análises de sua obra, traduções de textos e poemas, e relatos de seu amor pelo Brasil, tudo feito por nomes de importância no cenário literário-jornalístico aqui e fora do país.

Comentário e tradução de Nelson Ascher para um poema de Bishop dedicado a Manuel Bandeira; análise do crítico americano Harold Bloom sobre a obra da poeta (com tradução de Arthur Nestrovski); artigo do escritor e diplomata brasileiro João Almino sobre a visão que Bishop tinha do Brasil; texto de Joyce Pascowitch sobre a “high society” carioca da época, com quem conviveram Bishop e sua companheira Lota.

Nenhuma importância se deu naquele caderno às poucas frases de Bishop, em cartas a amigos, sobre o golpe de 1964, tamanha a insignificância disso na vida e na obra dela. No poema de amizade de Bishop a Manuel Bandeira, que consta da reportagem, outra constatação que, se não anula a frase crítica de Bishop sobre a poesia brasileira (de que toda ela caberia num poema de Dylan Thomas) e de que ela “falou mal” da poesia de Bandeira, contribui para reduzir a controvérsia ao lugar que lhe cabe na biografia da poeta. 

No dia seguinte ao anúncio da escolha de Bishop para a Flip, o mais irresponsável ataque que vi estava estampado em manchete do site de esquerda Brasil 247, que dizia que essa grotesca caricatura de presidente, Jair Bolsonaro, abriria a Flip 2020. 

O site, que reúne alguns profissionais de respeito, como os jornalistas Ricardo Kotscho e Gustavo Conde, simplesmente mentiu, valeu-se de distorção e manipulação da informação (procedimento típico do jornalismo corporativo de direita). Era o primeiro sinal, do meu ponto de vista, do tanto de misoginia, lesbofobia e despeito lusófono que também cercam a reação desproporcional ao nome da poeta americana. 

O Brasil 247 prima, aliás, por amontoar de machos brancos ocidentais seu abarrotado grupo de colunistas — um ou outro é preto, uma ou outra é mulher.

Não será inútil a comparação entre esse episódio reacionário que envolve o nome de Elizabeth Bishop e uma hipotética escolha da escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) para homenageada de um evento como a Flip.

É para se perguntar se haveria o mesmo alarido “de esquerda” ao nome da escritora cearense, ela que apoiou, sempre de público, o golpe de 1964. Em setembro de 1991, Alcino Leite e eu entrevistamos a escritora em seu apartamento no Rio de Janeiro, também para esta Folha. Já no abre introdutório da entrevista (publicada em 14/09/1991, no então caderno Letras) escrevemos: “Rachel relembra seus tempos de militância comunista e seu paradoxal apoio ao golpe de 64”.

Rachel, então com 80 anos, se defendeu e dourou a pílula. Chamou o golpe de “movimento de 31 de março” e atribuiu a brutal repressão da ditadura a “um lado do Exército, reacionário, que tomou gosto pelo poder, representado pela facção do Costa e Silva”. E ainda teve a desfaçatez de dizer que “Castelo Branco jamais foi um fascista, era um liberal de esquerda”.

Ora, o também cearense marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967) foi um dos articuladores do golpe militar de 1964 e primeiro presidente da República no período de ditadura. As famílias Castelo Branco e Queiroz eram da oligarquia cearense e ambas aparentadas de José de Alencar, o escritor. Eram íntimas, tanto assim que Rachel participou diretamente do governo de Castelo Branco.

Não bastasse isso, outro fato para que a esquerda míope condenasse hoje (condenaria?) o nome de Rachel de Queiroz: a última aparição da escritora no cenário político do país aconteceu em 1991, quando recebeu, do então presidente Fernando Collor, a Ordem Nacional do Mérito. Nos anos 1930, Rachel travara relações com o jornalista Arnon de Mello, pai de Collor.

Não se pode esquecer também que Rachel de Queiroz foi a primeira mulher eleita para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, instituição de todo elitista, alienada, machista e branca. Não houve nenhum alarde quando da escolha de Queiroz à “imortalidade”.

rachel de queiroz sentada em rede
A escritora Rachel de Queiroz em sua fazenda Não Me Deixes, em Quixadá (CE) - Eder Chiodetto/Folhapress

Última comparação pertinente: em 2014, a poeta mineira Adélia Prado foi ao programa de entrevistas Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, e fez declarações agressivas contra o PT, Lula e Dilma. Alegava a corrupção da esquerda, como se a corrupção endêmica e histórica do Brasil fosse atributo do PT no poder. 

Não houve gritaria de nenhuma esquerda como reação às declarações de Adélia, não houve manchete mentirosa, não houve divulgação irresponsável de notícia falsa, não houve perseguição aos editores do programa de TV, então comandado pelo suprassumo da mídia golpista, um jornalista cujo nome não merece nem ser mencionado. 

Em sua fala, Adélia Prado afirmava, entre outras besteiradas redutórias do momento político do país (pré-impeachment de Dilma): “Nós estamos vivendo um momento muito esquisito, um momento muito triste. É uma ditadura disfarçada. Não me sinto em um país democrático[...]. Na ditadura [militar] nós estávamos mais vivos do que estamos agora”.

A poeta não teve nem mesmo a sensibilidade (ou a informação necessária) para perceber a importância do governo de uma mulher, Dilma Rousseff, para o Brasil, primeira mulher eleita presidente da República num país onde centenas de mulheres são assassinadas como moscas todos os dias, com a conivência do cisheteropatriarcado dominante, sexista e heterossexista.

Perdi um tanto do encanto que tinha pela pessoa de Adélia Prado, de quem fui razoavelmente próxima em determinada época, mas não por sua poesia.

A escolha de Elizabeth Bishop para a Flip 2020 é revolucionária por todos os aspectos que dão o tom de sua biografia: inclusive este de que a imagética de sua poesia grandiosa é brasileira.

Não há contexto histórico ou político que justifique a grosseria com que a escolha do nome de Elizabeth Bishop foi recebida por uma certa esquerda —qual? À la pitbull Ciro Gomes? Quem são?—, esquerda inócua, inútil, que parece desconhecer (tal qual os fascistas) o conceito de tolerância, de coexistência, de convivência, de diversidade e pluralismo; esquerda que não tem força nem sequer para articular uma greve geral, ou manifestação de rua que mobilize mais do que parcas 2.000 cabeças; muito menos consegue arranjar passeatas de militantes organizadas e focadas no combate ao que interessa, no verdadeiro inimigo —que não é Elizabeth Bishop nem a Flip. Coitado do Brasil destes tempos. 


Marilene Felinto, escritora e tradutora, escreve na Folha duas vezes por mês. marilenefelinto.com.br

 

Entenda a polêmica

Em 25 de novembro, a poeta americana Elizabeth Bishop (1911-79) foi anunciada como a homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty em 2020. A escolha gerou protestos. Mais do que o fato de ser estrangeira (a primeira na história da Flip), foram opiniões de Bishop sobre o Brasil, onde viveu de 1951 a 1971, o motivo das queixas. 

Em cartas, ela fez pouco de artistas brasileiros e elogiou o golpe de 1964, "uma revolução rápida e bonita". Armou-se nas redes sociais uma campanha pelo boicote à Flip. 

A curadora Fernanda Diamant ressaltou o vínculo da poeta com o país e considerou que as opiniões políticas eram influenciadas pelo grupo de sua companheira, a arquiteta Lota de Macedo Soares (1910-67). Na terça (3), a organização da Flip disse que estava ouvindo “as manifestações de todos e pensando em seu significado”

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