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Passou da hora de impeachment de Bolsonaro começar, afirma criminalista

Para Augusto Botelho, impedimento é caminho mais embasado que crime comum e apelo a Tribunal Penal Internacional

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Bolsonaro sentado ao fundo, com sombras de pessoas no primeiro plano

O presidente Jair Bolsonaro durante solenidade de comemoração dos 160 anos da Caixa, no Palácio do Planalto Pedro Ladeira - 12.jan.20/Folhapress

Augusto de Arruda Botelho

Advogado criminalista, é cofundador e conselheiro nato do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

[RESUMO] Apesar da atuação condenável na pandemia, autor vê dificuldade para responsabilizar Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional e obstáculos da Procuradoria-Geral da República para acatar representações por crime comum. Criminalista defende que comportamentos do presidente configuram crime de responsabilidade e que não faz sentido esperar situação se agravar.

Um impeachment não pode ser o terceiro turno de uma eleição. Não se retira do cargo por meio desse processo quem foi eleito pelo voto e em determinado momento passou a fazer uma má gestão. O impeachment também não serve para afastar aquele candidato em quem não votamos e que, portanto, em tese não apoiamos desde a sua posse.

Seja qual for a razão para iniciativas nesse sentido —a prática de um crime de responsabilidade ou de um crime comum— é essencial que antes de mais nada ela seja juridicamente plausível, cabível.

Lembremo-nos dos traumas causados por dois impeachments realizados na história recente do nosso país. Não podemos banalizar essa medida extrema que é retirar do cargo uma pessoa que ali está pela representação mais clara de uma democracia: o voto.

Aquele que ocupa um cargo público de relevância, como o de presidente da República, está sujeito também a ser denunciado e julgado em tribunais e organismos internacionais. Importante mencionar que nessa situação deve-se observar sempre o princípio de que tais cortes precisam ser instadas a julgar quando a Justiça do país, diante de crimes, permanece inerte.

Feitas essas observações, vamos voltar nosso olhar para o atual caso brasileiro e a situação de Jair Bolsonaro na Presidência.

Há contra ele cerca de 60 pedidos de impeachment feitos pela prática de crimes de responsabilidade. Há também diversas representações apresentadas à PGR (Procuradoria-Geral da República), afirmando que o presidente, no exercício de seu cargo, cometeu crimes comuns. Por último, há pelo menos quatro solicitações em organismos internacionais para que Bolsonaro seja ali também investigado.

Começaremos por essas últimas.

Fundado em 1998 por um tratado internacional, o Estatuto de Roma, o TPI (Tribunal Penal Internacional) é conhecido por ser rigoroso na aceitação das denúncias. A rejeição dos pedidos chega a 90%. Os critérios envolvem não apenas a opção pela prevalência local no julgamento dos fatos, mas também na restritiva interpretação do que pode ou não ser considerado um crime contra a humanidade.

Especialistas brasileiros divergem sobre a possibilidade de responsabilização do presidente Bolsonaro diante de sua inconsequente e irresponsável condução do país durante a pandemia da Covid-19. Para alguns, o desrespeito às medidas sanitárias preventivas e aos protocolos conhecidos de saúde não pode, no caso brasileiro, ser caracterizado como uma política de Estado, mas sim como um ato isolado do mandatário, razão pela qual faltaria um dos requisitos para afetar a competência do Tribunal Internacional.

Para outros, como há o envolvimento direto do chefe do Poder Executivo no desrespeito a medidas que salvariam vidas, esse requisito já estaria atingido. Para os que sustentam a possibilidade de Bolsonaro ser denunciado e julgado perante o TPI, ele teria cometido aquilo que é considerado “outro ato desumano que cause intencionalmente grande sofrimento ou afete gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”.

Ainda que do ponto de vista teórico possa se cogitar a possibilidade de Bolsonaro responder perante tribunais internacionais, o fato concreto é que, primeiramente, o resultado de uma eventual condenação não o retiraria do cargo. É evidente que impactos econômicos e de imagem em um julgamento como esse são gigantescos, mas efetivamente afastá-lo do poder por meio desse mecanismo é algo neste momento impensável.

Resta, então, analisar o que internamente temos, o que é concreto, juridicamente firme e que possa ter uma definição antes de 2022.

Dois são os cenários possíveis para iniciar o afastamento do presidente da República nos dias atuais: um processo de impeachment em razão da prática de um crime de responsabilidade ou ele ser denunciado por um crime comum pela PGR.

A primeira observação necessária é que, apesar de o crime de responsabilidade ter a palavra “crime”, do ponto de vista técnico um crime de responsabilidade não é efetivamente aquilo que entendemos por crime. É uma conduta de inteiro conteúdo político e tem como sanção uma pena essencialmente política, como a perda do cargo, por exemplo.

Já a prática de crime comum por um presidente pode e deve ter outras penas —de prisão, inclusive— além de simplesmente seu afastamento.

Apesar dessas diferenças, é importante deixar claro que o julgamento de um presidente, seja pela prática de um crime de responsabilidade, seja pela prática de um crime comum, tem um rito bastante semelhante. Além de um controle político de autorização —precisa passar pela Câmara dos Deputados— em qualquer das hipóteses para o afastamento é essencial que haja também um juízo favorável de conveniência política. É o tão falado “componente político” de um processo.

Vamos começar pela possibilidade do afastamento de Bolsonaro pela prática de crimes comuns. Inicialmente, temos um obstáculo bastante prático: o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, foi nomeado pelo presidente após um intenso jogo político, em que, obviamente, há interesses e compromissos firmados.

Não estou afirmando que a condição para a nomeação ao cargo tenha passado por uma blindagem do presidente, mas, por outro lado, não há elementos que me garantam não poder ser essa uma possibilidade.

Ultrapassado então esse percalço quase intransponível, temos uma análise jurídica a fazer. E para fazê-la é imperioso que tenhamos em mente que o direito penal é sempre a última opção —é o que chamamos de “ultima ratio”. O direito penal é acessório, é subsidiário, e só deve ser chamado quando outras áreas e outras possibilidades de sanção se mostram insuficientes.

Muito se fala, e principalmente em um momento de comoção causado por uma pandemia, de eventuais crimes praticados na desastrosa condução do combate à Covid-19. Há vários em discussão: expor a saúde de alguém a perigo; a infração de determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa; perigo de contágio. Todos eles são lembrados muito mais após uma leitura leiga desses tipos penais do que de uma leitura juridicamente aprofundada.

Adianto que há na doutrina penal brasileira bastante divergência sobre a responsabilidade penal do presidente no combate à pandemia.

Para afirmar que alguém cometeu um crime, há requisitos formais que precisam ser atendidos. E, para muitos autores, por mais que, volto a dizer, a postura de Bolsonaro em todos os aspectos tenha sido criminosa, ele pode não ter cometido tecnicamente um crime.

Não me filio àqueles que entendem que não há elementos suficientes para investigar o presidente pela prática de crimes comuns. Apenas faço essa ressalva para constatar que, além do componente político (o que, sinceramente, quando se trata da PGR nem sequer deveríamos tratá-lo), temos um componente técnico a ser enfrentado.

Portanto, se eu pudesse prever uma possível forma de afastamento do presidente durante seu mandato, essa previsão não passaria por um processo pela prática de crime comum.

Resta, por último, tratar do afastamento pela prática de crimes de responsabilidade. E aqui começo com uma indagação: é crível imaginar que, dos 61 pedidos feitos, nenhum deles encontre o mínimo fundamento? É crível pensar que após dois anos de um governo com um sem-número de conflitos, falas e atos atentatórios à nossa ainda jovem democracia não haja uma justificativa para se iniciar um processo de afastamento?

Mais ainda, diante da conduta do chefe do Poder Executivo no combate à pandemia, marcada por negacionismo à ciência, por incentivo às aglomerações e a invasões de hospitais, pela recomendação de drogas cuja eficácia não é comprovada e em alguns casos é contraindicada, pelo boicote ao uso de máscaras, pela insistência na sugestão de um inexistente tratamento precoce e, mais recentemente, pela falta de ação efetiva e emergencial para tratar da falta de oxigênio em Manaus —diante de tudo isso, não é possível afirmar que já há de sobra elementos para o início de um processo de impeachment?

Essa forma de afastamento tem como base a prática de um crime de responsabilidade que, em lei própria, caracteriza-se por condutas ora bastante específicas, ora mais genéricas. É absolutamente forçoso dizer que o presidente incidiu em várias delas, a começar por se portar de modo incompatível com a dignidade, honra e decoro do cargo que ocupa.

A falta de decoro de Jair Bolsonaro no cargo não se deve a um ato isolado; é aquilo que o professor da USP Rafael Mafei menciona como “um padrão comportamental que pode levar à conclusão inequívoca de que o Presidente não aceita os limites da Constituição”.

O componente jurídico para se iniciar um processo de afastamento está mais do que preenchido, está evidente, sob qualquer ótica. Falta ainda o tal componente político, que infelizmente poderá florescer o aumento cada vez maior no número de mortes causadas pela pandemia.

O afastamento de um presidente não pode estar condicionado ao agravamento de uma tragédia. Passou da hora, e todos os requisitos legais foram preenchidos, de um processo de impeachment começar.

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