Briga judicial de Scarlett Johansson e Disney é prenúncio de nova era no cinema

Plataformas digitais mudaram modelo de negócio dos estúdios e podem matar salas de exibição

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Ana Maria Bahiana

Jornalista da área cultural e editora-adjunta do site goldenglobes.com, é autora, entre outros livros, de "Nada Será Como Antes - MPB nos Anos 70" (Civilização Brasileira, 1980)

[resumo] Disputa judicial entre a atriz Scarlett Johansson e a Disney, a respeito da participação nos lucros e modo de exibição de filmes, simboliza um momento de intensa ruptura na indústria do cinema, no qual a ascensão das plataformas digitais transforma os métodos de produção dos estúdios e as formas de consumo audiovisual.

O assunto na indústria do cinema foi um só nos últimos dias: a briga entre Scarlett Johansson e a Disney. À primeira vista, trata-se de um Davi contra um Golias, ou, dependendo do ponto de vista, a trama heroica de uma mulher em defesa do hábito tradicional de ir ao cinema.

Na verdade, o que está acontecendo é algo muito mais complexo —mais uma encruzilhada na velocíssima evolução do consumo audiovisual.

Um resumo do drama: no dia 29 de julho, Scarlett Johansson deu entrada nos tribunais de Los Angeles um processo contra a Disney. A atriz alega que o estúdio violou o contrato que assegurava a exibição do filme “Viúva Negra” primeiramente nos cinemas, no período usual de 90 a 120 dias, para depois migrar para outras plataformas.

No caso em questão, as outras plataformas são apenas uma: a Disney lançou “Viúva Negra” concomitantemente nas salas de cinema e em seu serviço de streaming Disney+ (na categoria Disney Premier Access, com o valor adicional de R$ 69,90). A partir de 25 de agosto, todos os assinantes da plataforma poderão vê-lo.

Os advogados da atriz acusam o estúdio de “intencionalmente ter levado a Marvel a quebrar os termos do acordo, sem justificativa, de modo a evitar que a sra. Johansson obtivesse os benefícios de sua combinação com a Marvel”.

São comuns, mas não obrigatórios, acordos oferecendo bônus aos atores principais à medida que as vendas de ingressos em cinemas atinjam determinados patamares de renda. Pelo menos até o momento, nenhum contrato com ator ou atriz do primeiro time menciona bônus de desempenho de um filme que é exibido igualmente em uma plataforma digital.

A resposta legal da Disney foi agressiva e estratégica. Agressiva por deliberadamente humilhar Johansson, mencionando abertamente seu salário de US$ 20 milhões (R$ 104,5 milhões), “que ela pode vir a aumentar graças ao sucesso de Viúva Negra no Disney Premier”. Estratégica porque justificou a exibição digital como uma reação “aos tremendos e prolongados efeitos globais da pandemia de Covid-19”.

A CAA, a mais poderosa agência de talentos de Los Angeles, veio correndo em defesa da atriz, sua cliente. “Eles despudorada e falsamente acusaram a sra. Johansson de ser insensível à pandemia global de Covid, em uma tentativa de fazê-la parecer uma pessoa que todos sabem que ela não é”, declarou o presidente da agência, Bryan Lourd.

“Na verdade, ninguém sai ganhando”, diz um tarimbado analista de mercado que pediu para não ser mencionado. “Ela perdeu cerca de US$ 50 milhões (R$ 261,2 milhões) com a exibição no Disney+, e a Disney perdeu a simpatia de muitos fãs de uma personagem querida da Marvel. Depois de mais de uma década com a Marvel, com nove filmes de sucesso, Johansson está praticamente fora do estúdio. A Disney, como todos os grandes, está com bilheteria baixa mundialmente. Parece que estão com bons retornos, mas nada se compara aos totais pré-pandemia. Para que, então, adicionar a isso a inimizade das plateias?”

Um advogado da área de entretenimento que pede anonimato afirma que há uma espécie de aura de heroísmo nisso tudo, mas, na verdade, o caso é legalmente fraco. “Para começar, o arranjo dela com a Marvel foi por meio de emails.”

“O caso Scarlett é a interpretação errada de um contrato e de um relacionamento profissional”, afirma o produtor Randy Greenberg. “A Disney vai pagar o preço. É um dano a todo o relacionamento daqui para a frente, envolvendo todo o talento.”

No entanto, tudo ao redor dessa briga de gigantes, uma estrela contra um enorme estúdio, é algo maior que ambos, e pode indicar uma nova etapa na constante evolução da indústria audiovisual. A pandemia é elemento importante, mas a história toda começa na alvorada do século 20.

Antes que o cinema desencarnasse de vez e se tornasse um entretenimento digital, possível de ser desfrutado de diferentes formas, filmes necessitavam de um corpo e de um lugar: nitrito, celuloide, cassetes, DVDs; maquininhas de parque de diversão, bares, lojas e, a partir do começo do século 20, lugares adaptados ou criados especialmente para a exibição de filmes. Os irmãos Lumière, na França, tinham o seu, assim como Thomas Alva Edison, nos Estados Unidos.

No começo, eram a exceção. Os primeiros estúdios —eles mesmos pequenos e, em muitos casos, toscos— preferiam fazer negócio com caixeiros-viajantes que ofereciam, em vez de sabão e vassouras, os novos filmes do mês, vendidos, em geral, a metro.

Os produtores acertavam um percentual não das vendas diretas, mas das vendas de ingressos. Com uma entrada baratíssima —cinco centavos de dólar nos Estados Unidos, dando origem ao termo “nickelodeon” para definir os primeiros cinemas—, rapidamente criava-se um novo negócio de consumo. Em 1908, havia 9.000 “nickelodeons” nos Estados Unidos.

Na mesma época, mais de 20 empresas nos EUA (e quase todas em Los Angeles, onde havia sol o ano todo e mão de obra barata) concentravam-se exclusivamente em fazer filmes.

Em muito pouco tempo, essas empresas descobriram a mina de ouro: se tivessem à mão todo o processo de fazer cinema, do controle dos direitos (tanto de técnicas quanto do conteúdo em si) à distribuição e exibição dos filmes, estariam feitos. E estavam.

Durante mais de quatro décadas, os estúdios mais fortes e financeiramente estáveis controlaram a vida de um filme do começo ao fim: ideia, conteúdo, atores, diretores, equipe, montagem final, divulgação, distribuição e exibição. Talentos diante e atrás das câmeras eram empregados da casa, com salários fixos, e todo estúdio que se prezasse tinha sua rede própria de cinemas, que exibia apenas os filmes da casa.

Redes de cinema de outros donos tinham que competir para obter filmes de sucesso depois que tivessem estreado nos estabelecimentos dos estúdios e, muitas vezes, tornavam-se, sem querer, foco de filmes estrangeiros ou de pequenos produtores, mais acessíveis. Cinemas em locais-chave habitualmente pertenciam aos estúdios. Quando se menciona a era de ouro de Hollywood, imagine uma hegemonia absoluta.

A farra acabou em 1948. Na verdade, começou a terminar em 1938, quando os oito principais estúdios —Paramount, MGM, Warner Bros., 20th Century Fox, RKO, Universal, Columbia Pictures e United Artists— foram processados pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos por violação da legislação antitruste.

O processo, em muitas idas e vindas, se arrastou durante dez anos, e, em 1948, o Departamento de Justiça venceu na Suprema Corte, e os estúdios não puderam mais ser donos de cinemas. Começava a fase que dominou a segunda metade do século 20, uma vasta reestruturação da indústria.

Muitos estúdios da era de ouro faliram. Muitos foram progressivamente adquiridos por empresas de outros ramos —como a Columbia, que passou para a Coca-Cola e depois para a Sony, sua matriz até hoje, ou a Warner, que já foi do Kinney Group (cujo forte eram prédios de estacionamento) e hoje é do gigante de comunicações AT&T.

Talentos não eram mais funcionários —passaram a negociar seus cachês e a exigir participação nos lucros de exibição.

Os estúdios tornaram-se amigos fiéis da Associação Nacional dos Proprietários de Cinema, apoiando e levando a seus eventos anuais atores famosos, para apertar mãos, fazer discursos e dar autógrafos.


Aos poucos, as redes de TV deixaram de ser oponentes perigosos. Todas as grandes foram devidamente anexadas aos conglomerados em torno de um estúdio. Ao fundo dessa história, um minúsculo estúdio ia crescendo sem que os demais prestassem muita atenção —uma empresa aparentemente dedicada a desenhos animados e a parques de diversão. A Disney, é claro.

Em 2020, a Justiça dos EUA revogou as regras que impediam estúdios de serem donos de cinema. Fulminadas pela pandemia, várias redes de exibição então correram para os estúdios com propostas de venda. Nada feito. Os grandes, os imensos, tinham outros planos.

“É o Oeste Selvagem”, diz um executivo de marketing, que prefere o anonimato, com experiência em vários grandes estúdios. “A Covid mudou tudo, inclusive os hábitos de consumo, e os estúdios precisam acompanhar sua audiência. Não há mais regras. Eu entendo que uma atriz como Scarlett Johansson, que tinha um acordo baseado nas vendas de ingressos em cinemas, tenha ficado furiosa.”

É verdade, mas há uma verdade anterior: muito antes da pandemia, os estúdios já vinham mudando radicalmente suas metas e seus processos.

O conteúdo, a narrativa audiovisual, havia desencarnado de vez. Não precisava mais de suportes ou de lugares especiais. As pessoas não tinham mais que sair de casa para consumir e viver seus desejos, e as telas em suas casas ficavam cada vez maiores, mais nítidas e com som superestéreo.

Foi uma mudança drástica, mas demorou um tempo para ser absorvida. Enquanto a Amazon agregava filmes e séries a seu mercado digital de bananas e livros e a Netflix mudava sua pele de locadora de DVDs para algo muito mais radical, os estúdios cresciam para todos os lados, mas não para os apontados pelos serviços de streaming.

Quando os dois, Amazon e especialmente Netflix, sentaram-se à mesa dos grandes como se sempre estivessem lá, os estúdios acordaram para o século 21. Hoje, não há estúdio algum de grande porte que não tenha uma plataforma digital paga. E, já que se tem uma plataforma paga, por que não oferecer nela seus filmes “de cinema”, ainda mais em tempos de Covid?

“Nós continuamos fiéis aos nossos negócios de base, inclusive exibição em cinemas, que ainda são negócios bastante lucrativos”, diz Casey Bloys, diretor de conteúdo da HBO e da HBO Max (WarnerMedia), responsável por todos os canais digitais da Warner e um dos nomes mais poderosos da indústria.

“Não vamos acabar com nenhum deles, mas os negócios tradicionais, para poder continuar fazendo dinheiro, precisam se preparar para o futuro. É um grande passo ter, dentro da mesma casa, várias coleções de marcas e conteúdo, como temos —DC Comics, Warner Bros. Library, Turner Classic Movies, conteúdos infantis.”

Bloys faz uma explicação que diz muito da imensa transição que levou ao embate Scarlett Johansson versus Disney. “Estamos nos concentrando tanto em séries limitadas porque o desejo desse formato se tornou prevalente. O mercado de cinema para os filmes adultos de orçamento médio desabou. Dez anos atrás, séries como ‘Big Little Lies’ e ‘The Undoing’ seriam filmes, sem dúvida. Esse mercado não existe mais, e, em seu lugar, os criadores nos oferecem conteúdos de oito horas, com orçamentos que antes eram aplicados a filmes, e sabemos que o público gosta de consumir essas oito horas. É como ler um livro.”

Em resumo: o produto mudou, a plateia mudou, o modo de servir à plateia mudou. A Covid-19 apenas reafirmou hábitos que já vinham dos “dez anos atrás” mencionados por Bloys —a multiplicação de canais oferecendo conteúdo de qualidade, diversificado, internacional e ousado desbancou o lugar antes ocupado pelo cinema na indústria.

Voltamos a Randy Greenberg, produtor-executivo envolvido em mais de 200 projetos de grandes estúdios de Hollywood.

“Os estúdios ainda precisam da receita que vem dos cinemas, mas apenas durante uma janela crítica, a janela da estreia. É uma fonte de dinheiro ainda, mas os tempos das bilheterias de US$ 2 bilhões acabaram. US$ 2 bilhões? Acho que nem US$ 1 bilhão é possível, hoje. Esses tempos não voltam mais, e ‘Avatar’ [maior bilheteria do cinema, com US$ 2,8 bilhões no mundo] hoje está no Disney+. O lucro por exibição de filme em cinemas tornou-se irrelevante para os estúdios. O custo de realizar um filme é apenas uma despesa a mais, e os estúdios estão baseados nas receitas certas das assinaturas das suas plataformas.”

Se a visão de Greenberg é correta, os estúdios podem estar às portas de uma nova era de ouro: a era de ouro digital, com controle completo dos conteúdos, da criação à exibição. Se de fato ascenderem novamente a essa hegemonia, negociações sobre participação em vendas de ingressos ficarão obsoletas.

“Estamos no começo de um novo modelo”, diz Greenberg. “Se os estúdios colocarem suas prioridades cada vez mais em suas plataformas digitais, os cinemas estarão mortos. Se não colocarem, os cinemas vão viver. A Disney lidou muito mal com a questão Scarlett e, provavelmente, vai ter dificuldades com suas equipes. Mas os tempos de cachê por filme podem estar acabando, e os contratos de salário, como na época do sistema de estúdio clássico, são inteiramente prováveis —todos os filmes que os estúdios quiserem, por um valor fixo de pagamento, para cada talento. Além disso: quantas vezes um ator vai dizer ‘não’ até que o estúdio o force a estrelar o filme que ele não quer?”

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