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Coronavírus vai marcar o fim de uma era no cinema

Pandemia acelera transição para plataformas de streaming

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[RESUMO] Eclosão da Covid-19 impõe série de mudanças na indústria do cinema, do fechamento das salas de exibição e adiamento de filmagens à mudança na regra do Oscar, o que, em longo prazo, deve se refletir na reorganização de forças entre os players do setor e na redefinição das formas de consumir o audiovisual, com o fortalecimento dos serviços de streaming.

Conforme foram sendo anunciadas as medidas de distanciamento social e confinamento, empresas do mundo todo viram, da noite para o dia, um abismo abrir-se sob seus pés.

Por ora, ninguém é capaz de dimensionar a vastidão do impacto que o drama sanitário terá sobre os mais variados negócios. Sabe-se, porém, que alguns deles têm particularidades que os tornam mais sensíveis às mudanças que a pandemia trouxe e trará consigo. O cinema é um caso.

Na última terça-feira (28), a Universal, celebrando os resultados do lançamento de “Trolls 2” direto no streaming, disse ao Wall Street Journal que o VoD (vídeo on demand) premium será o “novo normal”.

Na tarde desse mesmo dia, a revista The Hollywood Reporter noticiou que a 93ª edição do Oscar, em 2021, aceitará filmes que, durante a crise da Covid-19, estrearam no streaming. Até então, mesmo as produções da Netflix tinham de passar por uma sala de cinema para poder concorrer ao prêmio.

Acontece que, agora, salas não há. E, ao longo do último mês e meio, o futuro do circuito exibidor só foi ficando mais e mais nebuloso. No último sábado (25), a rede de cinemas CMX, com sede em Miami, pediu falência.

Antes, a Cineworld, segunda maior rede do mundo, tornou público o receio de quebrar; e a AMC, dona do maior circuito dos EUA, foi rebaixada pela agência de classificação de risco S&P Global e passou a ser considerada insustentável no médio prazo. Em reação à postura da Universal, a AMC disse que boicotará os filmes do estúdio.

O setor da exibição, dominado pelos grandes complexos, é um negócio de capital intensivo e que não possui ativos além dos equipamentos de projeção, uma vez que os imóveis são quase sempre alugados.

Um executivo diz, sob anonimato, que com as salas fechadas sua rotina é, de casa, gerenciar uma entrada de caixa igual a zero e uma saída de caixa que inclui aluguel, ainda que reduzido, condomínio dos shoppings e salários.

Em março, ao mesmo tempo em que o setor via suas notas despencarem na S&P Global, ficando lado a lado com a aviação, um estudo da Nielsen mostrava que os norte-americanos tinham aumentado em 85% o consumo de streaming na TV em relação a março de 2019.

O estudo diz respeito apenas à televisão, ou seja, deixa de fora o consumo em aparelhos móveis ou computadores. De acordo com a Nielsen, a Netflix liderou o mercado no período, tendo concentrado 29% do tempo gasto pelas pessoas em algum serviço de streaming, seguida por YouTube (20%), Hulu (10%) e Amazon Prime Video (9%). Na Ásia, o aumento do consumo dos serviços de streaming foi de mais de 100%.

Entre esses dois extremos, os estúdios, os produtores independentes e os distribuidores —empresas que fazem o elo entre a produção e o circuito exibidor— tentam salvar o presente sem, com isso, destruir o futuro. Sim, porque não só os exibidores precisam dos filmes. Os filmes sempre precisaram das salas para fazer a roda girar.

Via de regra, bastam três semanas em cartaz para que um blockbuster recupere o que foi gasto em lançamento e promoção. Sempre foi também o sucesso no cinema que determinou o tamanho do faturamento nas demais janelas —VoD, TV, etc. A questão é o “sempre”, advérbio que a Covid-19 pôs em xeque.

Desde que surgiu o entretenimento doméstico, que levou os filmes para dentro das casas, a sobrevivência dos cinemas é atribuída ao fato de a sala escura ser uma experiência única. Única, em grande medida, por ser coletiva. Pois é justamente aí que mora o desafio das salas para a volta ao funcionamento de antes.

A reabertura dos cinemas na China, em meados de março, revelou-se precipitada. Dez dias após as primeiras sessões, o governo determinou que fossem novamente fechados. No pouco tempo em que passaram abertas, as salas tiveram baixíssima ocupação. Vários países, Brasil incluído, ensaiam a reabertura para junho, talvez julho. Mas como será a volta?

À revista Le Film Français, o presidente da Associação Nacional dos Cinemas Franceses, Richard Patry, afirmou que, para além do medo de contaminação pelo coronavírus, há o impacto que o confinamento, e o tempo passado no sofá, já teve sobre o público.

“O que as pessoas fazem?”, pergunta Patry. “Elas vêm Netflix, Disney+ ou Amazon Prime Video e vão, assim, se desacostumando da sala de cinema. O cinema é uma máquina que não pode parar. Se ela para, é difícil colocá-la em movimento de novo.”

Há, por outro lado, os que apostam no desejo que a impossibilidade desperta: depois disto tudo, uma ida ao cinema teria ainda mais valor. Falou-se inicialmente numa retomada com as salas vendendo 50% dos lugares disponíveis e, agora, trabalha-se até com 25%.

Os cinemas, de toda forma, já começaram a ser atropelados pela velocidade das mudanças nestes tempos de exceção.

Com o prolongamento da quarentena e a inevitabilidade das medidas sanitárias no retorno, os estúdios de Hollywood, que inicialmente remarcaram o lançamento de seus títulos mais fortes para o segundo semestre ou para 2021, passaram a olhar com outros olhos para o VoD.

Dez dias depois do fechamento das salas nos Estados Unidos, os estúdios já tinham reorganizado o calendário, com novas datas de estreia para filmes como “Viúva Negra” (Disney), “Velozes e Furiosos 9” (Universal), “Mulher-Maravilha 1984” (Warner) e “Top Gun: Maverick” (Paramount). A temporada de verão, que vai de maio a agosto nos EUA, concentra, de acordo com a revista Variety, 40% do faturamento anual do setor.

Não demorou, no entanto, para que a busca pela organização do futuro —marca importante da indústria do cinema, que prevê estreias com até cinco anos de antecedência— fosse dando com os burros n’água.

Primeiro, a Universal anunciou que colocaria “Trolls 2”, da DreamWorks, no streaming no dia 10 de abril, data em que estava prevista a estreia nos cinemas. A locação do título no mercado norte-americano foi estipulada em US$ 19,99 (R$ 109,75) —no Brasil, “Trolls 2” segue aguardando a reabertura das salas.

Na sequência, a Disney marcou a estreia de “Artemis Fowl, o Mundo Secreto” para 12 de junho. “Apenas no streaming”, anuncia o trailer. Deve ser o primeiro de muitos.

Cabe lembrar que a empresa lançou, há seis meses, seu próprio streaming, o Disney+. O canal, que chegou à Europa durante a pandemia, atingiu rapidamente 50 milhões de assinantes.

O “VoD premium”, defendido pela Universal, faz parte do modelo transacional do VoD (TVoD,) baseado em locação e venda. Sua lógica é completamente diferente do modelo de assinatura, popularizado com a Netflix.

O TVoD, grosso modo, substitui a velha locadora, mas o que “Trolls 2” mostrou é que há gente disposta a pagar o valor do ingresso do cinema, ou mais, para ver uma estreia em casa.

O lançamento direto no streaming revela-se, assim, uma forma de tatear possibilidades para o futuro e de gerar uma receita que compense as perdas geradas pelo fechamento não só das salas, mas também dos parques temáticos.

E como se fossem poucas as questões apontadas até aqui, há de se levar em conta, por fim, que a produção foi interrompida, pois os sets, como quase tudo, não podem funcionar.

Os filmes que estavam em pós-produção seguiram, mas com cronogramas alterados, pois o trabalho remoto, de efeitos especiais ou som, tem outro ritmo. Os projetos que estavam em pré-produção ou com filmagem prevista, por sua vez, viraram uma grande incógnita.

Os novos protocolos de saúde devem tornar obrigatória a redução das equipes e podem tornar inviáveis sequências com muita gente fechada num lugar; as agendas de equipe e elenco terão de ser refeitas; e promessas de financiamento podem cair por terra.

No que diz respeito à criação, não sabemos que roteiros sobreviverão à Covid-19 e o quanto as sequências frenéticas dos blockbusters caberão na nova realidade.

Assim como a crise de 1929 ou a Segunda Guerra fizeram, a Covid-19 marcará uma nova era do cinema. A reorganização de forças entre os players e a redefinição das formas de consumir, ver e sentir —transformações que estavam em curso, diga-se— passaram a ser involuntariamente postas em prática.

Nesse cenário, não é improvável que um circuito exibidor reduzido se torne, cada vez mais, um lugar para blockbusters. Na visão de alguns analistas, só eles serão capazes de ter um faturamento que justifique o lançamento.

Esse é, na verdade, um cenário que já vinha se desenhando, com os filmes menores espremidos em uns poucos horários e salas, processo que pode ser acelerado. Isso, é claro, se ainda for possível levantar US$ 100 milhões para fazer uma superprodução.

O que será o cinema não se sabe. Só fica a certeza de que as imagens, que o homem começou a produzir nas cavernas, seguirão. Mais presentes do que nunca, inclusive.


Ana Paula Sousa, jornalista, é autora da tese de doutorado em sociologia “Dos Conflitos ao Pacto: As Lutas no Campo Cinematográfico Brasileiro no Século 21” (Unicamp, 2018).

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