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Martim Vasques da Cunha

'Cobra Kai' e 'Lupin' retratam como o ressentimento molda a vida de excluídos

Para autor, séries recentes da Netflix oferecem uma reflexão ímpar sobre 'fim da classe média' no Ocidente

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Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)

[RESUMO] "Lupin" e "Cobra Kai", séries de sucesso na Netflix, partem respectivamente de histórias de roubos audaciosos e rivalidade juvenil para traçar um diagnóstico preciso do início do século 21: como a falta de perspectivas de ascensão social, fenômeno qualificado como o fim da classe média, pode levar indivíduos invisíveis aos olhos da sociedade a um misto de nostalgia e ressentimento de consequências trágicas.

“Você apenas me vê e nunca me olha”, diz o personagem Assane Diop, interpretado pelo ator Omar Sy, na série policial francesa “Lupin” (2021), da Netflix.

Na língua de Flaubert, o olhar (“regard”) é algo muito mais amplo, sério e profundo do que a mera visão (“voir”), que seria apenas observar a figura de uma pessoa.

O diálogo citado acima se dá entre Diop e três bandidos que pretendem roubar o colar da rainha Maria Antonieta no Museu do Louvre, em Paris. Os comparsas não sabem, mas a principal inspiração para tal feito é que Diop, desde criança, tem fixação pelo ladrão de casaca e instituição francesa do mundo ficcional do crime, Arsène Lupin, criado por Maurice Leblanc (1864-1941).

O que parece ser no início mais um enredo de roubo perfeito se transforma ao longo da série em um diagnóstico preciso da França, da Europa e, quiçá, do resto do mundo neste início do século 21.

Criada por Louis Leterrier (discípulo do cineasta Luc Besson), George Kay, François Uzan e o próprio Sy, a série parte de algo que já existia nos contos e romances de Leblanc: nós nunca observamos atentamente o que há ao redor e nunca olhamos o que realmente acontece com as pessoas, em especial se elas fazem parte dos “invisíveis” que vivem à margem da sociedade.

No caso das peripécias literárias, o Lupin original desejava comprovar, por A mais B, que era capaz de enganar todas as organizações da França, em especial a polícia, com golpes e roubos extremamente ardilosos, os quais fariam corar, por exemplo, a mente sutil e racionalista do detetive inglês Sherlock Holmes.

Não à toa, Lupin foi criado especialmente por Leblanc para ser a contrapartida gaulesa ao famoso personagem de Conan Doyle. Em comum, os dois têm a paixão pelo artifício a serviço da perfeição técnica.

De resto, estão em polos opostos, apesar de que, graças à ironia de Leblanc, Lupin resolve alguns crimes que Holmes jamais teria a paciência de elucidar. Além disso, o escritor francês grafa o nome do detetive inglês como Herlock Sholmes, alegando na época problemas de direitos autorais —o que, convenhamos, não deixa de ser uma artimanha tipicamente “lupinesca”.

Na primeira temporada da série com Omar Sy, ainda não há menção à rivalidade com Holmes. Assane Diop, o protagonista do programa, é um filho de imigrantes africanos que decide se vingar dos membros da alta sociedade que condenaram injustamente seu pai à prisão. Para isso, usa dos métodos de Lupin, pois os livros de Leblanc ajudaram-no a superar essa tragédia na infância.

Arsene Lupin, ladrão de Casaca, personagem de Maurice Leblanc
Arsène Lupin, ladrão de casaca, personagem de Maurice Leblanc (1864-1941) - Wikimedia Commons

A rixa, aqui, parece nos levar à antiga luta de classes já demarcada pelo marxismo de apostila. Neste ponto, contudo, a série surpreende: na verdade, quando o invisível Diop imita o ladrão de casaca, temos uma reflexão instigante sobre os efeitos da nostalgia e suas consequências para a perversidade que corrói a nossa alma —o ressentimento.

O filósofo político americano Mark Lilla escreveu, em “A Mente Naufragada”, que o nostálgico é o “exilado de um tempo presente”, pois vive em uma época passada que não pode ser compartilhada por mais ninguém, exceto ele próprio.

Incapaz de conviver com o sujeito ao seu lado, uma vez que poucos reconhecem o que seria essa “era de ouro”, ele se sente um “guardião” de um segredo a que poucos têm domínio. Como há a certeza de que ninguém será capaz de adquirir essa faculdade especial, sobra a alternativa do ressentimento, que, somado à nostalgia, cria uma dupla explosiva.

“Lupin”, a série, trabalha com essa tensão insólita, típica dos nossos tempos em que testemunhamos “o fim da classe média” (para citarmos o livro de outro francês, Christophe Guilluy).

Diop age como um nostálgico que pretende ter um lugar ao sol, e seu segredo para alcançar tal objetivo são os truques do personagem de Leblanc. Ele é um injustiçado de fato, que usa suas artimanhas para equilibrar um pouco a desordem da sociedade. Contudo, essa emulação contemporânea de Arsène Lupin escapa do ressentimento porque há uma doçura interior que salva Diop da destruição —e aqui temos de dar crédito à interpretação perfeita de Omar Sy.

O mesmo ocorre, no lado oposto do Atlântico, com “Cobra Kai”, outro seriado da Netflix que também se alimenta comercialmente do sentimento de nostalgia. Seu tema é o universo ficcional dos filmes “Karatê Kid”, a clássica trilogia dirigida por John G. Avildsen (especialista em pobres-diabos que vencem na vida, como ficou provado em “Rocky: um Lutador”, com Sylvester Stallone), protagonizada pelos atores Ralph Macchio e Pat Morita, que interpretaram, respectivamente, o discípulo Daniel LaRusso e o mestre de artes marciais sr. Miyagi.

A premissa da nova trama é insólita. No primeiro filme, de 1984, tínhamos a rivalidade entre LaRusso e o valentão Johnny Lawrence (William Zabka), este motivado por seu "sensei" implacável, John Kreese (Martin Kove). Os dois jovens se enfrentam em um concurso de caratê, no qual o primeiro ganha o prêmio com um golpe surpreendente.

Depois disso, a vida de Lawrence se transforma em um inferno. O brigão derrotado passa a sofrer o pecado capital para quem vive nos Estados Unidos: ser um “invisível”, alguém que todo mundo vê, mas ninguém olha.

O que consome Johnny Lawrence, agora na casa dos 50 anos e completamente falido em termos emocionais e financeiros, é seu ódio por Daniel LaRusso e o desejo nostálgico de retornar a um passado em que viveu a sua “era de ouro”, especialmente com a namorada, Ali (Elisabeth Shue), que o trocou pelo rival.

Assim como Diop ao devorar os livros de Arsène Lupin, o playboy da Califórnia suburbana, repleta de sol, acredita que precisa consertar seu passado. No caso, reabrir o dojo, a academia de caratê onde aprendeu o que era ser um homem: Cobra Kai.

Da mesma forma que a série francesa, essa “Malhação” americana (como falam vários de seus críticos, incapazes de perceber a subversão intrínseca a quem sabe contar uma história) vira tudo pelo avesso porque apresenta algo novo a respeito dessa união perturbadora entre nostalgia e ressentimento.

Para os criadores deste novo capítulo da saga “Karatê Kid” —Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald (que contaram com a ajuda de Macchio e Zabka na concepção geral), a disputa entre Lawrence e LaRusso se torna o estopim para um ciclo de violência que contagia não só seus próprios filhos, mas principalmente os alunos que, descontentes com o que o futuro monetário lhes reserva, adotam as artes marciais como válvula de escape para seus instintos mais cruéis.

Em “Lupin” e “Cobra Kai”, temos, mais do que um mero retrato da nostalgia como algo que serve apenas às necessidades pecuniárias do algoritmo da Netflix, uma reflexão ímpar de como esse sentimento prejudica a vida de cada pessoa mergulhada nele.

Claro, não encontraremos nas duas séries a profundidade das obras de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. Todavia, ambas possibilitam às novas gerações formas de entender o próprio comportamento humano, ao permitir que elas olhem para si mesmas e não vejam, impassíveis, o desmoronamento do mundo onde vivem.

Na verdade, quem antecipou essa tendência foi (como sempre) David Lynch, na terceira temporada de “Twin Peaks” (2017). Todos esperavam um retorno ao sabor nostálgico da clássica série da década de 1990, com direito a tortas de ameixa e café preto elogiados pelo agente do FBI Dale Cooper, mas encontraram algo completamente inesperado: uma intensa meditação sobre culpa e arrependimento —e de como esses dois sentimentos são combustíveis para a reelaboração da realidade via um imaginário deformado.

Por óbvio, “Lupin” e “Cobra Kai” não possuem a mesma intensidade lunática de “Twin Peaks”, mas seus criadores entenderam a inovação de Lynch: persistir na nostalgia de um tempo que se foi contribui somente para a permanência da violência entre nós.

É o que ocorre entre Johnny Lawrence e Daniel LaRusso, incapazes de evoluir em suas vidas pessoais. É também o que vemos na frágil família construída por Assane Diop, cuja obsessão por Arsène Lupin acaba por prejudicar seu tão amado filho.

Há também, claro, a questão social. Apesar de separados por um oceano e por línguas diferentes, os personagens de “Cobra Kai” fazem parte do mesmo fenômeno do "fim da classe média" que Diop tenta resolver em “Lupin”.

Christophe Guilluy escreve o seguinte em seu livro sobre o tema: “O desaparecimento da classe média ocidental é um processo lento e multifatorial que assume diferentes formas segundo os contextos econômicos nacionais, mas que, no fundo, provoca em toda parte a fragilização das categorias que representavam a base de uma classe média culturalmente integrada e em uma dinâmica de ascensão social”.

Assane Diop e Johnny Lawrence são o resultado desse desabamento histórico, mas não se fazem de vítimas. Aceitam as consequências de suas escolhas e assumem seus erros. Cada um procura um modelo saudável para orientar suas ações.

É provável que, no decorrer da série francesa, Diop tenha de reinventar a figura de Lupin para algo mais próximo da sua circunstância pessoal. Da mesma forma, conforme tem a consciência de que sua rivalidade com LaRusso corrói sua vida, Lawrence abandonará a nostalgia e os ensinamentos macabros de John Kresse para se transformar, pouco a pouco, em um sr. Miyagi ocidental, revelando-se assim o verdadeiro herói da saga “Karatê Kid”.

A conclusão acima pode chocar os fãs de ambos os seriados. Não seria, porém, interessante perceber que nós também apenas vemos os personagens que moldaram as nossas biografias, mas nunca olhamos para eles?

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