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André Sturm

Cannes 2021 fez lembrar prazeres que só um festival ao vivo oferece

Foram muitos os percalços para estar evento, mas valeu cada gota de ansiedade

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André Sturm

Presidente do Belas Artes Grupo, é ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo (jan.17 a jan.19)

[RESUMO] Autor conta as dificuldades que enfrentou para participar do Festival de Cannes deste ano, da autorização para ingressar na França à quarentena de sete dias na chegada, e discute como a pandemia transformou a atmosfera do evento.

Quando vi o anúncio de que o Festival de Cannes aconteceria “fisicamente” em julho, decidi que estaria lá. Imaginei que, se eu conseguisse tomar uma vacina aprovada pela OMS, seria o suficiente. O meu último evento presencial havia sido o Festival de Berlim, em fevereiro de 2020. Parecia outra vida.

Frequento festivais de cinema desde 1989. Cinema é meu trabalho, minha paixão, e o de Cannes é o mais importante do calendário. O público fica sabendo do tapete vermelho, o desfile de celebridades e os filmes da competição, mas, por baixo e ao lado, acontece o Marché du Film, em que cerca de 15 mil profissionais negociam o que você verá nos próximos anos.

Produtores e cineastas buscam financiamento; atores e atrizes, trabalho; agentes de vendas buscam novos projetos com potencial e oferecem os que possuem; distribuidores do mundo inteiro buscam descobrir os novos sucessos para oferecer em seus países.

Existem também mostras oficiais paralelas de prestigio (Quinzena dos Realizadores e Semana da Crítica, por exemplo) e muitas sessões de mercado, restrita aos profissionais. Milhares de turistas em busca de uma foto ou autógrafo se misturam aos profissionais pelas ruas e lugares. Vive-se cinema durante esses dias.

Depois de tanto tempo, era corajoso decidir realizar o evento. Eu queria apoiar a iniciativa, voltar a ver filmes inéditos na tela grande, encontrar as pessoas ao vivo e não por reunião de Zoom, ouvir e tentar falar francês, inglês, espanhol ou italiano, enfim, encontrar o bom e velho normal.

Consegui tomar uma vacina aceita pela OMS e esperava pela nova regulação, que imaginava que seria “moleza”. Nada disso. A entrada de brasileiros estava barrada na Europa. Comecei minha saga: escrevi para o Marché, procurei o Consulado da França e, com o imenso apoio deles, muitos papeis, documentos e assinaturas, saiu uma autorização do Ministério do Interior da França para minha ida! Huhu!

Mas tinha que ficar sete dias em quarentena. Ok. Fui antes e fiquei em um pequeno apartamento. Podia sair duas horas por dia, entre 10h e 12h. Às 9h59, eu estava na porta da recepção e saia para o sol. Calor de verão, ia até a praia para um mergulho no mar e um banho diário de sal, depois uma volta pela cidade para comprar mantimentos e voltar para o quarto. Levei oito livros e algumas revistas de palavras cruzadas.

Com o fuso, à tarde, tinha contato com a equipe no Brasil para trabalho. Terminou sendo uma semana de “semiférias”. Obriguei-me também a uma limpeza mental. Nada de noticias sobre o Brasil. Uma dica para vocês: sete dias sem ler a palavra Bolsonaro deixou-me em um bom humor e leveza que há muito não tinha.

Cumprida a quarentena, livre na véspera do início do festival, aproveitei para pegar minha credencial, catálogos e tomar um drinque com o diretor-geral do Marché para agradecer o apoio. Ele sentou: “Deu tudo certo mesmo? Conseguiu vir? Como foi no aeroporto? Pediram todos aqueles documentos? Você é o único brasileiro que veio! E um dos poucos da América Latina. Parabéns!”. Era sincero e até pagou o drinque.

Nas ruas da cidade, as pessoas andavam sem máscara. Nas lojas e locais fechados, com. O festival, para garantir mais segurança, fez uma parceria e montou um grande laboratório, obrigando todos os estrangeiros e franceses não vacinados a fazer um teste PCR a cada dois dias. Não tínhamos que pagar, e era obrigatório apresentar o resultado para ter acesso às áreas do Marché.

Em geral, o festival, que acontece em maio, aconteceu em julho, no verão e, portanto, havia um tipo de turista diferente, o que veio em busca da praia e encontrava um festival de cinema. Era fácil perceber a diferença entre os dois tipos nos bares e restaurantes.

No primeiro dia, fui pela manhã para a área do mercado, onde agentes de vendas montam seus estandes —pouca gente. A informação oficial, posterior, foi de que cerca de 5.000 profissionais vieram, algo como um terço do número usual. Várias empresas utilizam apartamentos fora desse espaço, o que também aumentou a sensação de vazio.

Mas o resultado foi incrível. Pela primeira vez em mais de uma década, eu conseguia assistir a dois filmes, no cinema, sentado, do começo ao fim. Não havia enormes filas para entrar, brigas por lugar, reuniões de trabalho eram tranquilas, falávamos de filmes, de cinema e de interesses variados. Pude almoçar e conhecer melhor pessoas com quem lido há tempos e nem sabia se tinha filhos ou não.

Tive tempo de ir assistir à apresentação de um projeto de filme pelo genial cineasta romeno Cristian Mungiu, algo impensável em anos anteriores devido à falta de tempo. Esse foi um dos melhores momentos do evento: uma apresentação inteligente, perspicaz e irônica, tão boa que negociei os direitos para o Brasil, sendo que ele só filmará no inverno romeno.

Agora escrevendo, fiquei pensando se foi bom mesmo ter ido nessa apresentação... o festival tem um lado de cassino: a competição oficial. Todo o mundo quer adivinhar que filme vencerá e comprá-lo antes. Desperta o lado mais competitivo e, às vezes, irracional dos envolvidos. Os vendedores, claro, se aproveitam disso.

Como tenho “muitos anos de praia”, já aprendi a não entrar nessa loucura. Quer dizer, 95% do tempo, já que ninguém é de ferro. Muitos anos atrás, eu estava arrasado porque tinha perdido a disputa por um filme, encontrei um distribuidor muito experiente, contei a ele e recebi uma lição que nunca esqueci: é sempre melhor lamentar pelo filme que não comprou que pelo filme que comprou!

Esse clima de Cannes, de aparência, de glamour, de hotéis caros, restaurantes pretenciosos, carrões e outras coisas que é melhor não falar realmente vira a cabeça das pessoas. Adquirir os simples direitos de distribuição de um filme torna-se essencial para sua vida, mais ou menos como brigar por causa de jogo de futebol.

Muitos anos atrás, entrei nesse clima. Cheguei a oferecer US$ 100 mil por uma comédia francesa! Nunca esquecerei o momento que sai ao Sol e me dei conta do que havia feito. Passei a noite em claro, mas meus anjos da guarda me salvaram.

No dia seguinte, voltei para o ok do vendedor, e ele fez a maior cena, quase chorou, dizendo que seu chefe havia fechado com outro, outro mais tonto que eu, que cobriu minha oferta. Quase chorei! Mas com uma cara séria disse que ele tinha que me compensar pela tristeza e acabei fazendo outro negócio excelente.

Voltando a esse ano, também tive uma experiência incrível, quando fui assistir a estreia do filme dirigido pela excelente atriz Sandrine Kiberlain. Sou fã da atriz e gostei muito do filme. No dia seguinte, fui falar com a agente de vendas que eu queria estar de alguma forma em uma entrevista com ela. No dia seguinte, lá estava eu ao lado de uma jornalista de Viena para uma conversa com a musa. De novo, prazeres que somente um festival ao vivo te oferece.

Foram muitos os percalços para estar no Marché de Cannes 2021, mas valeu cada gota de ansiedade. Público empolgado com novos filmes, bolsa de apostas dos filmes da competição, assistir a filmes no cinema e descobrir pequenas perolas para trazer ao Brasil, encontrar as pessoas do mercado tanto para negócios como para conversas, fantasia e mundo real, negócios e ilusão.

Viver novamente o cinema não tem preço. Como dizia o letreiro naquela fachada: "Cinema é a maior diversão!".

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