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Sergio Kalili

Idealista e libertário, Narciso Kalili inovou na imprensa e desafiou a ditadura

Filho relembra a atuação do jornalista, que morreu em 1992, e da geração formada na revista Realidade

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Sergio Kalili

Jornalista

[resumo] Filho relembra a trajetória do pai, o jornalista Narciso Kalili, e de uma geração —formada na revista Realidade, no final dos anos 1960— que marcou época na imprensa brasileira com suas reportagens densas, críticas e inovadoras durante os anos de repressão da ditadura militar.

Daniel, meu filho, não conheceu o avô. Aliás, Narciso Kalili não conheceu nenhum dos seis netos. Morreu cedo, em 7 de agosto de 1992, aos 56 anos, durante uma cineangiocoronariografia.

Essa palavra complicada nunca saiu da minha cabeça. Um exame invasivo para verificar a presença de obstruções das artérias coronárias. O dele deu errado. Na certidão de óbito está “parada cardiorespiratória, choque mais edema agudo de pulmão, obstrução crítica do tronco da artéria coronária esquerda”.

Morreu sufocado, explicou seu médico, que não estava na sala, acompanhando o procedimento, como deveria. Uma vez ligou um jornalista da revista Veja para uma reportagem sobre erro médico. Até hoje não tenho a resposta, só a desconfiança de negligência.

A vida foi curta, mas intensa. Quem o conheceu sabe. Era pura energia, coragem, ousadia e criatividade. O jornalista Carlos Nascimento encerrou uma nota em um telejornal da Globo —onde Narciso, em sua última passagem pela emissora, ocupou o cargo de diretor de um núcleo de reportagens especiais formado especialmente para acomodá-lo e de onde comandou repórteres, como Caco Barcellos— lamentando: “Pena que vocês não o conheceram”.

Mylton Severiano afirmou que “Narciso era capaz de enxergar o lado escuro da Lua”. José Hamilton Ribeiro lembrou das edições e pautas maravilhosas das reportagens no Fantástico, de quando o amigo foi diretor em São Paulo. “As matérias davam mais de 40 pontos no Ibope.”

A cada ano, suas marcas vão desaparecendo, assim como as de sua geração. Muitos jovens jornalistas nunca ouviram falar dele. Não imaginam por que a Redação do jornal Unidade, do Sindicado dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, que será reinaugurada este ano, após uma reforma, leva seu nome.

Alguns não têm ideia de quem é essa turma, que começou a ganhar mais notoriedade a partir da revista Realidade, publicada pela um dia grande editora Abril, e que cimentou tamanha irmandade entre os profissionais que durou para o resto da vida.

Podiam brigar, mas estavam sempre perto ou de olho uns nos outros. Muitas vezes andavam em bando, assumindo e ocupando Redações, ou pedindo demissão conjunta em apoio a algum dos companheiros. Eram “cúmplices”, como definiu um dia o escritor e jornalista Roberto Freire, um dos integrantes do grupo, apelidado de “Bigode”.

Quando Narciso morreu, Sérgio de Souza, que foi editor de texto da publicação, fundador de várias editoras e revistas, a última a mensal Caros Amigos, e um dos mais importantes amigos de luta, principalmente em tempos bicudos da ditadura, foi chamado para editar um jornal Unidade inteiro em homenagem ao irmão de alma e profissão. De tão próximos, durante os anos 1960 e 1970, eram chamados de maneira jocosa de “o casal” por Ricardo Kotscho.

Índia ianomâmi na capa da revista Realidade sobre a Amazônia, de 1971
Capa da revista Realidade sobre a Amazônia, de 1971 - Reprodução

À Cristiane Teixeira Rodrigues, então estudante da Escola de Comunicações e Artes da USP, Sérgio disse, em 1993: “Contar a minha história é contar a história de Narciso.”

Levei o neto Daniel Kalili para conhecer outro irmão de alma, um dos que mais gosto da turma. “Filho, Zé Hamilton Ribeiro era um grande e querido amigo do seu avô, ele é guerreiro, como foi o vovô guerreiro.”

“Papai, que armas eles usavam?” “A caneta, filhão.” Zé é hoje um dos repórteres mais antigos em atividade, ainda ligado ao programa Globo Rural. Perdeu parte da perna no Vietnã. Ele explica que a ideia era fazer uma reportagem do front a partir do Norte, dominado pelos revolucionários comunistas, apoiados pela então União Soviética, até o Sul capitalista, apoiado primeiro pela França e mais tarde pelos Estados Unidos.

O que me estimulou a escrever um texto sobre Narciso não foi só a reinauguração da Redação da Unidade e o fato de que é preciso assegurar que o sindicato e o jornalismo tenham memória, mas a lembrança do manuscrito que guardo comigo de um de seus trabalhos mais famosos, que de tão marcante foi refeito mais de quatro décadas depois, em 2014, por um repórter da revista Trip e outras duas vezes pela revista Veja, a última em 2017.

Jornalismo literário

Em outubro de 1967, Narciso , branco, olhos verdes, narrou em primeira pessoa uma reportagem produzida com outro jornalista, Odacir de Mattos, negro, olhos castanhos. Os dois saíram às ruas para medir o racismo em seis capitais do país, descrevendo as reações provocadas e vividas pela dupla de cor diferente. Quase sempre Odacir enfrentou dificuldades para ser atendido em bares, restaurantes e se hospedar em hotéis. Para ele, quase tudo ficou mais caro ou indisponível.

Numa das situações, os repórteres fingiram passar mal. A população só acudiu o jornalista branco. Em outra, Narciso passeou de mãos dadas com uma atriz negra. “Quando a cumprimentei e beijei-lhe o rosto, homens e mulheres que passavam nos olharam com certo espanto. [...] As fotografias de Mamprin são mais eloquentes que qualquer narração. Cochichos, cutucões, olhares, principalmente dos mais velhos.”

O repórter fotográfico e pintor italiano Luigi Mamprin, radicado em São Paulo em 1949, merece um parêntese. Ele é mais um guerreiro, como quase todos da turma. Antes de encarar a realidade brasileira, lutou na Segunda Guerra Mundial ao lado dos comunistas de Tito, na Iugoslávia. Faleceu em 1995. Pintou de maneira espirituosa o amigo Narciso em forma de Napoleão.

Odacir de Mattos repetiu a experiência de casal misto. Narra Narciso: “Os funcionários de uma loja comercial não se contiveram. Os que estavam na porta chamaram os que estavam lá dentro para ver o fenômeno. Ficaram comentando, rindo, cochichando. Odacir sabe o que acontece: ‘Antigamente, no tempo da escravidão, o branco tinha todas as mulheres negras que quisesse. O negro não podia jamais olhar para uma branca. Isso se reflete até hoje, pois o branco acha que o negro não tem nenhum direito de sair com uma branca’.”

Faziam o chamado jornalismo literário. As reportagens eram longas, profundas; os temas, importantes e polêmicos, muitos tabus na época, como sexo, religião e esquerda. Viviam a revolução sexual, a popularização da pílula, a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, a busca por uma revolução que trouxesse mais igualdade e justiça. Isso tudo sob uma ditadura.

Nos anos 1960, muitos jovens de classe média compartilhavam da filosofia, do idealismo, de viver a vida de operário, de agricultor, metalúrgico, para entender o mundo e melhorá-lo. Os jovens de 25 a 30 anos da revista Realidade fizeram algo semelhante em alguns trabalhos. De certa forma, foi assim com a reportagem do racismo.

Narciso e boa parte da equipe viveram ainda mais na pele dos outros na edição especial “A Juventude Brasileira Hoje”, de setembro de 1967. Narciso sentiu a vida dura do campo, trabalhando como camponês em uma fazenda na Bahia. Alberto Libânio, o frei Betto, morou em uma república de estudantes em Minas Gerais. Zé Hamilton virou operário numa fábrica em São Paulo. Sérgio de Souza, em outro número da revista, fez até tratamento de pele para descrever como é viver em Selma, Alabama, no sul racista dos Estados Unidos.

Narciso estampou duas capas da publicação. Numa se vestiu de capeta para decretar a falência do Diabo. Noutra, apareceu encenando um pico de psicotrópico.

Depois dos primeiros números, Myltainho, o Mylton Severiano, que dividia a edição de texto com Serjão, Sérgio de Souza, explicou-me que a turma da cozinha chegara a um tipo de tamanho ideal de reportagem; percebera que uma matéria deveria ficar em torno de 30 mil toques, tamanho bastante para se aprofundar e não tão grande para manter o leitor até o final, mas, claro, poderia haver exceções, mesmo porque não havia manual de Redação.

Aliás, todos eram contra qualquer camisa de força. As poucas regras podiam ser quebradas, o importante era publicar a melhor história já feita sobre o tema e escrever com emoção.

Serjão sempre foi um cara quieto e assertivo. Editor de texto brilhante, delicado e elegante, fazia o que já era bom ainda melhor. Caráter e ética para ele e aquele pessoal não vergavam.

Na prática, acabou compartilhando a direção do grupo com Paulo Patarra, o chefe de Redação e, por isso, recebendo o apelido de capitão por alguns companheiros. Quase todos tinham apelidos carinhosos.

Foi Patarra que trouxe Narciso ao jornalismo. O comunista contou que, a partir dos anos 1950, volta e meia saía pela estudantada, na rua Maria Antônia, em busca de novos militantes para o partidão.
“Lá estava Kalili, aluno de história da USP. ‘Oh, cabeludo! Vem cá’, chamou Paulo.” O PCdoB ganhou mais um integrante, assim como as Redações. O então estreante perdeu os cabelos e, querido pelos colegas, colecionou apelidos, como Turco e Bagdá.

Vovô Guerreiro nasceu de pais judeus libaneses. Cresceu na Mooca. No começo, a filharada, cinco meninas e dois meninos, dormia toda num quarto. O pequeno Narciso era um devorador de livros.
Seu pai, Salim Kalili, um pequeno comerciante do Brás que foi enriquecendo, ficava preocupado. Não queria perder o primogênito nem o herdeiro dos negócios; suplicava: “Narciso, para de ler, vai fazer mal pros olhos, menino!”.

Antes da Realidade, tinha mais um apelido. Hamilton Almeida Filho, o HAF, outro prodígio daquela turma que já foi quase toda, que ganhou o primeiro Esso de Jornalismo aos 17 anos, lembra da primeira vez em que viu Narciso. O relato mostra um pouco da personalidade do Turco.

“Eu estava sentado num canto da redação da Última Hora, de Samuel Wainer, quando, perto do início do fechamento, por volta das 18h, começa um burburinho. Um grita de lá: ‘Oh Jacaré!’ Outro grita de cá: ‘oh Jacaré!’ Em pouco tempo, a Redação quase toda: ‘Oh Jacaré!’ E aí que surge a figura, sobe numa das mesas e berra: ‘Jacaré é a puta que o pariu!’ Este era o Narciso”, encerra HAF. “E a redação inteira o aplaudiu!”

A Última Hora foi o primeiro emprego na grande imprensa de Narciso, onde foi repórter de polícia e chefe de reportagem. Antes, trabalhou no jornal do Partido Comunista.

O auge da Realidade foi com a turma que criou a revista. Vai de 1966 a 1968. No período, Narciso, Sérgio de Souza e o escritor Roberto Freire, entre outros, se aproximam de um colega de Redação, Duarte Pereira, militante-fundador da AP (Ação Popular), corrente socialista ligada à juventude católica.

Os três, mais Paulo Patarra, o chefe de Redação, e Eduardo Barreto Filho, editor de arte, formavam um núcleo na publicação. Quando chegavam para propor uma reportagem, uma capa ao filho do dono e diretor da revista, Roberto Civita, já vinham com a ideia pronta e discutida com toda a turma.
“Com o filho do dono como diretor de Realidade, não havia limite de dinheiro ou recursos”, dizia Patarra.

Ele lembra como arquitetou aquilo. “Fui chamado por Roberto para um almoço no Jockey Clube de São Paulo, com um colega com quem disputava o controle da futura revista. Estava perto de perder a chance, quando tive a ideia. “Roberto, quer saber? Acho que você que deve assumir a direção do projeto.”

Censura e AI-5

Narciso foi o primeiro a deixar o prédio da Abril. Explico que Vovô Guerreiro, assim como os outros do grupo, não aceitava outra coisa que não fosse jornalismo na veia. A debandada maior começou com a aproximação do AI-5 e o consequentemente aumento de pressão, intromissão e redução de liberdade sobre a Redação.

Outro repórter brilhante, Carlos Alberto Azevedo, o Azevedinho, caiu na clandestinidade. Durante dez anos, contribuiu com a imprensa alternativa —teve participação decisiva no Jornal Movimento, de Raimundo Pereira.

Serjão, que não gostava de dar entrevistas, com o passar dos anos, cada vez mais tímido, escreveu, em 1998, à Revista da USP. “Já meses antes da decretação do AI-5, começamos a experimentar o dedo da censura interna, vinda da própria diretoria da editora. Em princípio, admitindo a discussão, que sabíamos significar apenas o preâmbulo da implosão da equipe, planejada e logo depois executada. A parte que os econômica e politicamente fortes costumam corriqueiramente chamar de radicais deixou a revista, foi procurar outros caminhos, dos quase nenhum que havia. Fui chamado por Samuel Wainer para o projeto de um tabloide semanal que ele queria lançar, o Ideia Nova. Quase toda a equipe de Realidade, inclusive alguns que não haviam deixado a Abril, empenhou-se no projeto.”

“Liberdade jornalística recuperada, boneco do tabloide pronto, estoura o AI-5. Na mesma noite de 13 de dezembro de 1968, Samuel desaparece e corremos todos a desmontar a Redação, improvisada num espaço que ele conseguira no Hotel Apolo, na Boca do Lixo, em São Paulo. Começavam os anos de chumbo. Longos anos, e cheios de histórias envolvendo jornalistas. Mas, essas ficam para outra oportunidade.”

Narciso voltou então para o jornalismo diário. De volta à Última Hora, que desde 1971 já não era mais de Samuel Wainer, mas de Octavio Frias de Oliveira, publisher do Grupo Folha, ajudou a liderar uma greve, com apoio do sindicato, sob o regime militar, por melhores salários e, principalmente, por mais liberdade. O jornalista Georges Bourdoukan estava lá. “Enquanto a gente chamava o pessoal para a paralisação, o Frias chegou e disse: ‘Narciso, deixa de ser quixotesco, você é um Dom Quixote. Eu só não te demito porque você é muito charmoso’.”

Na trilha do Bondinho

Narciso era um cara carismático, não tinha só o dom da escrita, mas da palavra. Sabia hipnotizar no discurso, e foi assim que liderou e montou Redações. Alguns colegas lembram-se dele em manifestações contra os militares que apertavam o torniquete.

Certa vez, contaram-me que, durante um protesto, um oficial ordenou: “Todo mundo circulando! Circulando!”. Narciso imediatamente comunicou o pessoal: “Vamos dar as mãos, fazendo uma roda. Agora, circulando...”. Também disseram-me que ele ajudou a lançar bolinhas de gude ao chão para dificultar o trabalho da cavalaria que partia para cima.

A ditadura mergulhava o país na mais profunda e violenta repressão dos anos Médici. Em busca de imprensa livre, sem patrão, e para melhor combater o totalitarismo, com jornalismo, reportagens, criatividade e irreverência, Narciso, Sérgio de Souza e Eduardo Barreto fundam a A&C, a editora Arte & Comunicação.

Levam com eles ao menos dois futuros presidentes do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo, os amigos Gabriel Romero e Audálio Dantas. Publicam a Revista de Fotografia, o Jornalivro (que era a venda em forma de jornal de livros e romances já consagrados) e O Grilo, uma revista de histórias em quadrinhos, com tirinhas da contracultura, irreverentes, que discutiam comportamento e podiam chocar os bons costumes.

A revista foi a primeira a publicar no Brasil histórias de Robert Crumb, considerado o maior nome do quadrinho underground americano. Reproduziram a turma da Peanuts, do Charlie Brown e Snoopy, criada por Charles M. Schulz, e do cartunista gringo Jules Feiffer, com críticas à sociedade em geral e à classe política.

O carro-chefe era O Bondinho, revista de serviço, distribuída pelo Pão de Açúcar, mas que foi se tornando cada vez mais cult. Ao estudante de jornalismo Vlamir Pimentel, Narciso explicou, em 1984, por que a turma logo rompeu com a rede de supermercados. “O dinheiro oferecido para continuar era muito pouco.”

O fato é que, sem o contrato com Abílio Diniz, a publicação ficou muito mais livre e interessante, mas também não durou mais do que dois anos, de 1971 a 1972, assim como a editora, por falta de anunciantes.De toda forma, marcou época.

“Bondinho está nascendo. Foi um parto difícil, mas não doloroso. Se é duro fazer uma revista de prestação de serviço com linguagem jornalística, será também muito gostoso ir descobrindo a grande cidade, canto por canto, segredo por segredo.” Assim era o editorial da primeira edição da revista, que vinha com reportagem de capa sobre um brinquedo novo na cidade de São Paulo, o tobogã, com fotos e depoimentos feitos pelo fotógrafo George Love.

Love e Cláudia Andujar (conhecida pelo trabalho com os indígenas ianomâmis, luta mais atual e necessária do que nunca) se conheceram na Realidade, casaram-se e seguiram a turma, assim como Walter Firmo e outros mestres da fotografia.

Na edição número dois, reportagem sobre o mercado das flores do largo do Arouche, de Roberto Freire. Na três, um restaurante grego. Mais adiante, as compras de Natal.

Antes do final do primeiro ano, as reportagens já perguntavam: “O que pode estar por detrás das latas de lixo de gente importante ou famosa de uma cidade grande?”. Em outra capa: “Você roubaria?Deixamos a barraca na praça, com doces. Levaram tudo, até o dinheiro.” Na mesma edição, uma mesa redonda sobre violência, inclusive policial. Mais adiante: “Rock-fêmea. Quando é que a mulher vai assumir outra posição no rock que não a horizontal?”. Uma crítica ao machismo na música.

Até que virou uma publicação quase só de cultura, pegando a efervescência político-cultural da época, com uma diagramação e textos cada vez mais arrojados, influenciados pelas mãos e mente de HAF, o inquieto e criativo Hamilton Almeida Filho.

Um dos últimos números trouxe Caetano Veloso, fazendo careta na capa. A manchete: “Caretano” Uma entrevista para o HAF com o cantor baiano que acabava de voltar do exílio em Londres. “Quem é o Caretano?” Resposta: “O Caretano sou eu. Foi o Rogério Duarte que botou esse apelido em mim. Porque eu sou careta e pega bem com o nome”.

Além de Caetano, Gil, Mutantes, João Bosco, vários artistas de vanguarda naquele momento ficaram à vontade para participar da revista.

Não foi só O Bondinho que sofreu. Dácio Nitrini, como leitor e futuro jornalista, lembra: “O Grilo foi cercado e espremido pelas autoridades de plantão. Estava mortalmente baleado na edição número 48, que trazia na capa uma foto do cartunista já famoso Henfil sorrindo, atrás das grades, chamando a atenção dos leitores para sua última entrevista, em tom desacorçoado, antes de ir embora do país...”.

Em 1973, com quatro filhos, Narciso fazia jornada dupla como chefe de reportagem na rádio Jovem Pan e na TV Cultura. Começou a trabalhar na emissora do governo paulista a convite do diretor de jornalismo, Fernando Pacheco Jordão. Na equipe, Vladimir Herzog, Mylton Severiano, editor de texto, e os jornalistas Georges Bourdoukan e Palmério Dória.

Ao mesmo tempo, parte do pessoal da Realidade, liderada pelos mesmos Narciso, Sérgio de Souza e Eduardo Barreto, criou outra editora, a Espaço Tempo. Como Narciso estava com o nome sujo por causa da falência da Arte & Comunicação, Sérgio e Dácio Nitrini, que aos 22 anos se juntara a turma, assinaram a papelada.

JORNAL EX-

E aí começa a história do jornal EX-, um dos mais corajosos da imprensa brasileira, o único a cobrir a morte do jornalista Vladimir Herzog. E por que EX-? Porque eram uma ex-editora, ex-Grilo, ex-Bondinho, ex-Jonalivro, ex-Revista de Fotografia. Ideia do Serjão.

Em 2010, o Instituto Vladimir Herzog e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo fizeram uma reedição comemorativa do EX-, com depoimentos de quem participou. O projeto foi coordenado por Dácio Nitrini, Mylton Severiano e o fotógrafo e um dos fundadores do jornal, Amâncio Chiodi.

Dácio escreveu: o “EX- é como se fosse neto da revista O Bondinho e filho do gibi underground O Grilo. Sendo assim, é bisneto da mitológica Realidade, origem de um grupo formado por jornalistas brilhantes que provocaram saltos de qualidade editorial em vários veículos, inclusive rádio e TV.”

O EX- batia na ditadura por metáforas tão claras que mais direto era difícil. O primeiro número ficou pronto em novembro de 1973. Final do governo Médici. Na capa, Hitler, nu, tomando sol em uma praia tropical. A segunda edição seguiu a mesma linha, Henry Kissinger pelado, semideitado em um divã. Os expedientes satíricos avisavam que a distribuição era própria, com a expressão “garantida” e “Nenhum Direito Reservado”.

Myltainho esclarece: “A maneira sutil e bem-humorada de dizer tudo sem dizer nada a gente desenvolveria também nos textos, que falavam mais nas entrelinhas que nas linhas.”

Dácio explica que eles mesmos entregavam os jornais: “Eu, além de vendedor de espaço para publicidade, produtor gráfico e repórter, saía com Narciso, numa velha perua Caravan, colocando jornais para vender nas bancas da cidade”.

Logo na terceira capa, em janeiro de 1974, chega a polícia. Sérgio e Narciso decidiram fazer uma fotocharge de Richard Nixon, o presidente americano, envolvido no escândalo Watergate de espionagem ao Partido Democrata, olhando para o horizonte como se fosse estadista, vestindo uniforme de presidiário.

A capa era bastante incômoda para o governo brasileiro que ciceroneava a mulher do presidente dos Estados Unidos, Pat Nixon, que estava no Brasil para a posse de Ernesto Geisel. Narciso e Sérgio foram parar na rua Xavier de Toledo, sede da Polícia Federal. Acabaram enquadrados na famigerada Lei de Segurança Nacional, que voltou à moda no governo Bolsonaro. Foram autuados “por atentar contra chefe de Estado de país amigo por palavras, atos ou atitudes”.

Não está claro por quanto tempo os dois ficaram detidos, se um dia ou dois. Logo depois, Narciso foi preso por uma dupla de agentes da Oban, Operação Bandeirante, aparentemente por outra razão.
Minha mãe, Ethel Volfzon Kosminsky, telefonou para o advogado amigo de Serjão e Narciso, Marco Túlio Bottino, também coordenador jurídico de todas as editoras fundadas e a serem fundadas pelos dois. Entrou em contato com a importante professora de sociologia da USP Maria Isaura Pereira de Queiroz. A professora ofereceu ajuda: “O que posso fazer?”

Ethel acreditava que, se a prisão saísse no jornal, Narciso ficaria protegido. Naquele tempo, porém, as notícias de detenções não eram publicadas, por temor da censura. As reportagens de O Estado de S. Paulo eram substituídas por versos de Camões, e as do Jornal da Tarde, por receitas culinárias, por exemplo.

A professora apresentou-lhe um dos irmãos Mesquita (Ethel não se recorda mais qual), que perguntou se Narciso estava metido em algum grupo político. “Não.” Ela contou o que tinha ouvido de meu pai. “Havia um jornalista chamado Claudio Marques que brigava e denunciava qualquer jornalista que lhe parecesse suspeito. Assim ele tinha denunciado o Narciso e Georges Bourdoukan por causa de uma matéria sobre a Guerra do Vietnã.” Bourdoukan também foi preso.

Minha mãe pediu ao Mesquita que publicasse no jornal a prisão de Narciso. E assim foi feito no mesmo dia, no Jornal da Tarde. “Pela primeira vez a notícia de uma prisão era publicada”, disse-me.

Cláudio Marques tinha uma coluna no extinto jornal Shopping News e um programa de TV. Chamava a Redação da Cultura de “Vietcultura”. Grunhia pérolas como: “Viram o noticiário de ontem na TV Cultura? Falando do esquerdista vietnamita Ho Chi Min?”. Essa mesma campanha vai ajudar a matar Vladimir Herzog alguns meses depois.

Bourdoukan, contudo, acredita que o motivo da prisão dos dois foi outro. Dividia a chefia de reportagem com Narciso, cada um fazia um horário na Cultura. “Fui preso pela Operação Bandeirante, do DOI-CODI, um ano antes do Vladimir Herzog. Tinha uma epidemia de meningite. Mandei fazer a matéria. Horas antes do programa ir ao ar, me liga o governador Laudo Natel: ‘Não faça isso, você vai provocar pânico’. Precisava alertar a população. No mesmo dia, Narciso e eu fomos presos.”

Na tentativa de sensibilizar a milicada, Ethel pegou os filhos, inclusive minha irmã mais nova, ainda no colo, e correu alguns quartéis de São Paulo atrás do meu pai. No início não tinha certeza de onde ele estava.

Da Oban, pouco mais de uma semana depois, Narciso foi para o Deops, Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo. Lá, depois de alguns dias, Ethel pôde vê-lo. “Ele veio muito quieto, sem cordões nos sapatos. Nos abraçamos.” Alguns dias depois, Marco Tulio telefonou e disse que iriam soltá-lo. E assim foi. “Narciso chegou calado e nunca quis falar do que viu e ouviu enquanto esteve na Oban e no Deops, e muito menos contar se chegou a ser torturado.”

Narciso e Bordoukan perderam os empregos na Cultura. Alguns colegas tinham medo de lhes dar trabalho. Várias pessoas partiam para o exílio. O Turco não queria deixar a luta, mas era preciso sair um pouco de São Paulo. Serjão e Zé Hamilton partiram para Ribeirão Preto para fazer um jornal diário.
Então, Ruy Fernando Barboza, outro amigo da Realidade, convida Narciso e Georges Bourdoukan para montar um jornal no Paraná. O ex-governador do estado Paulo Pimentel, proprietário de um grande conglomerado de comunicação, queria fundar um diário com sede fora do eixo Rio-São Paulo. Prometia liberdade e independência total.

E lá foram a Londrina Ruy, Narciso, HAF, Myltainho, o jovem José Trajano, que se juntara ao grupo, e outros. Até Vladimir Herzog pensou em passar um período na cidade. “Ele veio, ficou na minha casa, mas logo mudou de ideia e voltou para São Paulo”, lembra Bourdoukan.

Ficaram um ano com as famílias, preparando a publicação para um grande lançamento. Em 1975, chegou o dia. Durou um mês. Depois de uma dúzia de edições, logo veio a intervenção. Uma árvore histórica da cidade fora cortada e Narciso fez a manchete de primeira página: “Assassino!”.

O autor do crime, amigo do dono, pediu mudanças nas matérias. A equipe incomodou mais depois dos repórteres descobrirem que indústrias fortes da região estavam poluindo o lago Igapó, que servia ao lazer dos londrinenses.

Narciso reclamou da independência prometida, como lembra Myltainho. “Narciso de dedo em riste chamou Pimental de mentiroso no meio da Redação. O ex-governador respondeu: ‘Repete se for homem!’. O Turco não se intimidou: ‘Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso!’. O empresário foi pra cima. O pessoal teve que segurar... ‘Tá demitido’!”

A turma toda assinou uma carta conjunta de demissão e apoio, parte voltou para São Paulo. Narciso ainda ficou com Ruy mais um pouco para criar outro jornal, o Viver, um semanal de serviços de distribuição gratuita. Ao Portal dos Jornalistas, Ruy disse que a concorrência local era extremamente desleal. “Éramos acusados até de financiar o movimento estudantil, e perseguidos pela polícia politica, sem qualquer motivo. Não resistimos.”

Vlado

De volta à São Paulo, Narciso, HAF e Myltainho, que não haviam se desligado totalmente do EX-, retomam a Redação. Divergem de Marcos Faerman, ex-repórter especial brilhante do Jornal da Tarde, que passou a tocar a publicação enquanto estavam fora. Faerman imprimira uma linha editorial mais literária e cultural, com enfoque na América Latina.

Com os três no leme, o último EX- é o histórico 16, da morte do Vlado. A reportagem foi escrita a seis mãos, disse Myltainho. “Narciso Kalili foi o pauteiro e orientador; HAF, repórter e chefe de reportagem; eu, responsável pelo texto final —resultado do trabalho de todos do EX- e de colegas que, corajosamente, nos procuraram pondo-se à disposição.”

O trio espalhou repórteres pelos cantos para apurar, investigar. A fotógrafa Elvira Alegre conta em depoimento na reedição comemorativa do jornal. “Nunca é uma tarefa fácil fotografar enterro, e naquela situação era até muito arriscado, mas fui fazendo meu trabalho, apesar do clima de tensão que é visível nas fotos. Acabei tirando as fotografias mais importantes da minha carreira e que estão entre as imagens mais significativas da nossa história recente.”

Era período de muito medo e uma comissão de jornalistas foi pedir para que a reportagem não fosse publicada. Temiam que a ditadura endurecesse ainda mais. Palmério Dória lembra o que falou Mylton Severiano no dia: “Diziam que, se pediam que não publicássemos, era para nos proteger. Já nós achávamos que proteger seria publicar”.

Ainda, Palmério: “O magnífico repórter Ricardo Kotscho, que estava no grupo de jornalistas que visitou o EX- naquela noite, me disse: ‘Vocês ampliaram os nossos limites’”.

Segundo Mylton Severiano, meu pai ficou escutando os pedidos da comissão de colegas por algum tempo, mas depois, já sem paciência, afirmou, de maneira seca e dura, que iriam publicar e pediu que se retirassem.

Ex- 16 saiu com uma pancada na ditadura e a denúncia do assassinato de Vladimir Herzog. Uma ironia em cima do hino da proclamação da República: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”.
Cinquenta mil exemplares vendidos. O dinheiro, somado à gorda indenização que Paulo Patarra recebeu quando deixou a Editora Abril, foi injetado em um EX-17. A polícia, contudo, apreendeu toda a produção e impediu que qualquer outra saísse. Era o fim.

José Trajano também escreveu para a edição comemorativa do jornal. “No EX-, fui soldado raso. Mas o pouco que convivi foi o bastante para me tornar um sujeito mais consciente, mais ético, mais cético, mais humano. Foi a universidade que jamais frequentei. Dali em diante, podia bater no peito e gritar ‘agora, sim, sou um jornalista de verdade’. Devo isso aos inesquecíveis mestres Narciso, Paulinho Patarra e HAF, e toda a cambada.”

Revista Repórter

Em 1978, a turma tentou remontar a revista Realidade. Paulo Patarra vendeu a ideia para Domingo Alzugaray, da Editora Três. Só durou um número, mas a realização do projeto foi brilhante como sempre. O nome era o que ele sempre quis.

No lugar de Realidade, imposto por Roberto Civita, Patarra queria Repórter. Surgiu a Repórter 3. A edição única tem reportagens impressionantes de Caco Barcellos, Lourenço Diaféria, Gabriel Romero, Fernando Morais, José Trajano.

Narciso fez a matéria de capa e mais uma de suas obras-primas, uma das maiores. Ele organizou, com a ajuda da colega Inês Godinho e de estudantes do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco da USP, um julgamento do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos líderes do Esquadrão da Morte. Caco participou da simulação como repórter, fazendo algumas entrevistas.

Estampava a manchete: “Narciso Kalili leva o Esquadrão da Morte ao banco dos réus.” Ao lado da foto de um jovem negro: “Fleury condenado pelo assassinato deste homem.”

O texto é cinematográfico. “Soa a sineta. Na sala completamente lotada, apagam-se as vozes. Tem a palavra o juiz, dr. Hamilton Dragomiroff Franco, presidente do Tribunal do Júri.”

Em uma entrevista, Myltainho disse que a pressão para o fim da Repóter Três partiu do general Golbery em pessoa. “Também, pudera, a capa do número 1 era matéria do Narciso, que montou um júri com estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, ‘julgou e condenou’.”

Antes de partir para a televisão de vez, Narciso ainda criou e dirigiu uma revista de receitas e reportagens do Pão de Açúcar, chamada Doçura. Chamou colaboradores, como Aloysio Biondi, para escrever de economia doméstica. A revista fez muito sucesso durante cerca de um ano, até que Narciso mandou Carlos Azevedo, que voltara da clandestinidade havia alguns anos, para Minas Gerais.

À época, início da década de 1980, uma série de mulheres estavam sendo assassinadas por seus maridos. Azevedo voltou com uma bela reportagem. Na capa, a manchete: “Os Maridos Assassinos de Minas”. Abílio Diniz recebeu uma reclamação do marido-assassino, personagem principal da matéria, e demitiu toda a equipe.

Depois de atuar como diretor do Fantástico em São Paulo, de 1982 a 1984, Narciso foi dirigir a Abril Vídeo, uma experiência de TV da editora. Criou um Fantástico de esquerda, o Olho Mágico, e outros programas.

Deu espaço para o pessoal jovem do Olhar Eletrônico, formado por gente como Marcelo Tas e o futuro diretor de cinema Fernando Meirelles, ainda nos seus vinte e poucos anos.

Por uma reportagem sobre o ex-presidente Jânio Quadros, acabou processado. Era a primeira eleição depois da ditadura, 1985. Jânio disputava a Prefeitura de São Paulo com Fernando Henrique Cardoso.

Quem conta mais essa história do amigo é Mylton Severiano. “Durante a campanha, nós pusemos no ar uma cena em que Jânio, depois de visitar correligionários na Vila Maria, seu maior reduto eleitoral, desce as escadas de um sobrado completamente bêbado, tropeçando nas pernas e amparado por aspones. Como música de fundo, pusemos “Marvada Pinga”, com Inesita Barroso. Jânio processou Narciso; alegou que sofria de “labirintite”, por isso estava trôpego naquele dia. Perdeu.”

Em 1987, Narciso era o chefe do amigo Caco Barcellos quando este descobriu e denunciou a Vala de Perus, mais de mil ossadas que a ditadura escondeu no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. O lugar serviu de depósito de vítimas da Polícia Militar, dos grupos de extermínio, dos centros de tortura e até de mortos do surto de meningite que a ditadura tentou esconder nos anos 1970 e Narciso e Bourdoukan denunciaram.

“Bom, eu fiquei impressionado, é claro, e falei com o meu chefe de reportagem [no Globo Repórter], que era o Narciso Kalili. Expliquei para ele que estava fazendo uma pesquisa para o meu livro sobre as ações da Rota [Rota 66, publicado em 1992] e contei sobre essa descoberta. O Narciso tinha alma de repórter, sangue de repórter. ‘Vai atrás. O que você precisa?’’’’ Esse depoimento de Caco foi dado ao jornalista e escritor Camillo Vannuchi.

Narciso trabalhou em outras emissoras de TV e rádio e participou de outras publicações e projetos editoriais. Colaborou por diversas vezes para o jornal Unidade, onde teve uma coluna, e participou ativamente do sindicato, diretamente ou apoiando seus amigos, como Fernando Pacheco Jordão, Audálio Dantas, José Hamilton Ribeiro, Antônio Carlos Fon e Gabriel Romero.

São muitas histórias, greves, assembleias e manifestações, até demais, para quem morreu tão cedo.

Liberdade

No depoimento a Vlamir Pimentel, ele definiu o que é liberdade de imprensa. “É defender o direito da maioria. Quando algum jornalismo, como o de O Estado de S. Paulo, por exemplo, defende a liberdade de imprensa, não está defendendo a liberdade de comunicação, de saber das amplas maiorias, das amplas camadas, das amplas massas do povo brasileiro. O que estão defendendo é a liberdade do grupo deles, Estado de S. Paulo, grupo econômico, conjunto de pessoas que têm ideias semelhantes do capitalismo liberal, de exercitarem os seus pontos de vista em detrimento inclusive da maioria. Só para citar um caso recente: eles fizeram uma pregação permanente contra o respeito que parte da polícia de São Paulo estava exercitando na defesa dos direitos humanos dos presos, dos criminosos e dos marginais; pregando a volta sistemática do Esquadrão da Morte, isto é, o extermínio que estava sendo praticado pelo cabo Bruno, na Zona Sul. O cabo Bruno foi o maior matador da Zona Sul. Então a democracia em favor do Júlio de Mesquita Filho não é a democracia do povo brasileiro. A liberdade de imprensa para o Júlio de Mesquita não é liberdade de imprensa para o povo de São Paulo. Então, liberdade de imprensa na TV Globo é uma coisa, liberdade de imprensa no jornal O Globo é outra coisa, para a Abril Vídeo, outra.”

Em uma reportagem comemorativa dos 25 anos da Realidade, publicada na extinta revista da Goodyear, em 1991, a repórter Célia Chaim escreveu que aquele grupo de jornalistas, então na faixa dos 50 anos, continuava falando do jornalismo como um sacerdócio.

“Fui ficando velho, mas não me corrigi”, disse Narciso. “Me considero um jornalista fora de moda.” E definiu Célia: “A moda do tempo de Kalili tem a simplicidade dos versos de Carlos Drummond de Andrade, que a Realidade publicou mais de uma vez: nenhuma reportagem pode passar para o papel sem emoção”.

Do lado dos mais fracos

O corpo de Narciso Kalili foi velado no auditório Vladimir Herzog, na sede do sindicato. Entre as muitas coroas de flores e faixas, uma dizia: “Qual é a manchete, Narciso?”. Ele era um ótimo ‘manchetista’. Uma vez, disseram-me que, quando Lula foi solto da prisão na época da ditadura, fez a manchete “Ele voltou”.

Muito querido pela categoria, a carreata que seguia da rua Rego Freitas, 530, até o cemitério israelita, começava no início da Consolação e se estendia até a avenida Dr. Arnaldo.

O último texto de nosso guerreiro, ele escreveu para a apresentação do livro de Caco Barcellos, “Rota 66”, pouco antes de morrer. É quase autobiográfico. “Caco Barcellos é um jornalista que tem lado. Aliás, lado que ele, desde o começo da carreira, no Rio Grande do Sul, nunca escondeu. Um lado que continua o mesmo —o dos mais fracos, o das vítimas.”

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