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Francisco Brito Cruz

Reforma eleitoral apressada erra o alvo e pode criar novos problemas

Pouco debatida, proposta na Câmara prevê revogar toda a legislação eleitoral e estabelecer novas regras

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Francisco Brito Cruz

Doutor em direito pela USP, é diretor do InternetLab e autor de “Novo Jogo, Velhas Regras - Democracia e Direito na Era da Nova Propaganda Política e das Fake News”

[RESUMO] O sistema eleitoral brasileiro precisa ser refundado, defende autor, especialmente para atualizar as regras da propaganda de candidatos e adequar as campanhas à esfera pública digital. No entanto, a megarreforma da legislação eleitoral prestes a ser votada na Câmara dos Deputados foi pouquíssimo discutida com a sociedade e não vai resolver os problemas estruturais que o país precisa enfrentar.

Existe uma proposta de megarreforma eleitoral em tramitação no Congresso Nacional, que está sendo pouquíssimo discutida com a sociedade. Além da possibilidade de aprovação do distritão para mudar a forma de eleição de parlamentares, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), está disposto a votar um código eleitoral inteiramente novo.

Com ele, há a pretensão de revogar todas as leis que compõem o sistema atual e substituí-las por um grande texto com cerca de 900 artigos, que circulava informalmente desde antes do início do recesso parlamentar. Como as leis sobre eleições devem ser aprovadas até um ano antes do pleito, essa proposta é de refundação de nossas regras do jogo em uma discussão de alguns meses. Deveríamos revisar nosso sistema eleitoral às vésperas da eleição mais tensa desde ao menos 1989?

Defendo que o sistema seja refundado, especialmente quando o assunto são regras de propaganda eleitoral, o coração das regras do jogo. Há um emaranhado de normas que guarda enormes disfunções e que temos que contornar no improviso há anos.

Entretanto, a atual megarreforma não propõe as discussões que importam e que de fato precisamos enfrentar como país e, mesmo se buscasse propor, dificilmente conseguiríamos amadurecer as boas soluções em um punhado de meses.

Uma parte de nosso sistema ainda é estipulada pelo arcaico Código Eleitoral de 1965, que veda a propaganda que contém “meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais”. Ou seja, a lei diz que a propaganda não pode fazer propaganda.

Mais que isso, o código traz conceitos de textura aberta, como quando veda “instigação à desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública”, o que pode ser claramente usado para perseguir oposições. Nesse tipo de quinquilharia conceitual, tenta-se sobretudo proteger a honra e a reputação de quem tem como trabalho ser criticado pelo que faz.

Uma outra parte do sistema cria dezenas de obrigações para propaganda eleitoral sem definir o que pode entrar ou não na própria definição de propaganda: prazos para sua realização, normas do que pode ser dito e quais gastos são permitidos para realizá-la.

Um labirinto de regras que só fazia sentido quando era óbvio o que era propaganda eleitoral nos meios de comunicação —afinal, propaganda era o que os candidatos mostravam em seu horário eleitoral na televisão e no rádio, o santinho entregue na porta de casa ou o comício na praça da cidade.

Se, em algum momento, pareceu que o uso da internet para as eleições seria domável (e algumas reformas tentaram dar conta disso), chegamos neste momento a uma sensação de extrema insegurança jurídica: ora sentimos que há uma terra sem lei, ora que a lei é arbitrária e que há censura. Isso acontece porque a discricionariedade impera quando há vagueza.

Uma refundação deve ser feita com tempo para contemplar discussões mais estruturais e afastar dogmas da sociedade da ditadura ou da sociedade da radiodifusão. Agora, nossa esfera pública é digital.

Hoje em dia, as campanhas são operações digitais em rede nas quais componentes espontâneos e profissionais, legítimos e ilegítimos podem se coordenar com ou sem um centro de comando. São times em que a torcida está jogando junto. Neste cenário, o que os candidatos incentivam ou propiciam é quase tão importante quanto suas ações diretas.

Precisamos discutir modelos sofisticados de responsabilização de candidatos (inclusive por comportamento que indiretamente incentive o “antijogo” de seus apoiadores) e estabelecer critérios que funcionem para definir o que é e o que não é espontâneo e coordenado, tutelando também a campanha feita de modo independente.

Para além de rediscutir modelos de responsabilidade de candidatos e apoiadores, o sistema precisa organizar a tutela da liberdade de expressão, do ódio e da desinformação. Uma reforma desse tamanho que não debata parâmetros mais claros do que é albergado pela liberdade de expressão dificilmente vai conferir maior previsibilidade aos casos que serão julgados. Não saber como casos que envolvem discursos políticos devem ser julgados é um dos maiores obstáculos à construção de uma cultura de liberdade de expressão no Brasil.

Ao mesmo tempo, tal refundação de nosso sistema não pode ignorar o tema da violência política, que é um método de cercear a participação política de grupos sub-representados e marginalizados a partir de ataques direcionados, como revelam pesquisas recentes como o MonitorA, do InternetLab e da revista Azmina.

A atualização do “sistema operacional” da democracia faz sentido se facilitar os mesmos silenciamentos e assimetrias que funcionaram para afugentar e cercear vozes que têm o direito de ser ouvidas? Hoje, parece claro que as dinâmicas do processo eleitoral atingem esses grupos de forma desproporcional.

Ao mesmo tempo, como evitar que mecanismos destinados a assegurar que todas e todos sejam capazes de participar do processo eleitoral venham a ser explorados para impedir a ampla e aberta discussão de propostas, plataformas e candidaturas? Devemos considerar ódio ou violência política se a ofensa for direcionada a homens ou brancos, por exemplo?

O uso intensivo de dados pessoais também precisa de discussão profundas, sem demagogia. Não adianta que se levante a bandeira do caso Cambridge Analytica e, simultaneamente, se articule uma liberação para disparos em massa no uso de informações de contatos de eleitores.

Isso porque muitos partidos e seus advogados ainda tratam a Lei Geral de Proteção de Dados como camisa de força, vendo-a de maneira reducionista. Boas regras de proteção de dados pessoais não são aquelas que proíbem operações legítimas, mas sim as que dão segurança e as diferenciam das abusivas.

Uma discussão apressada não vai resolver os problemas estruturais que temos e pode criar outros, especialmente por tratar ansiedades justas de maneira brusca.

Na versão que circula nos corredores do Parlamento, o novo Código Eleitoral regula o poder das plataformas de agir contra perfis de candidatos. A sugestão erra o alvo em dar vazão a uma demanda da classe política que não quer ser impedida de dizer o que deseja em detrimento de travar a sério o debate sobre moderação de conteúdo, transparência e garantias procedimentais a todos os usuários, o que seria de se esperar de uma reformulação do sistema.

Empresas de tecnologia têm que se adequar às regras democráticas, mas tais regras não deveriam sufocar a existência de espaços próprios e diversos, necessários para a plena expressão e acesso à informação. Quando se erra a mão em proibir remoções, engessar procedimentos ou padronizar regras para toda a internet, é isso que está em jogo.

Fazer essa reforma desse jeito não vai nos deixar em forma para 2022 e essa não deveria ser nossa única opção.

Um ano antes da campanha começar, deveríamos considerar usar o pouco tempo que temos para apertar os parafusos certos de um sistema imperfeito (mas previsível) e assim topar debater uma refundação mais profunda das regras do jogo, adequada para a esfera pública digital, para 2024 e os pleitos seguintes.

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