Conheça o aventureiro escocês que lutou no Brasil e ajudou a consolidar a independência

Personagem controverso, Thomas Cochrane ficou conhecido como herói e saqueador

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Pietro Sant'Anna

Historiador pela USP, é autor de nove fascículos da Coleção Folha - A República Brasileira

[RESUMO] O escocês Thomas Cochrane parece um personagem de livro de aventuras: político tido como herói no Reino Unido por sua atuação nas Guerras Napoleônicas, foi expulso da Marinha e do Parlamento e preso após acusação de fraude na Bolsa de Valores de Londres. Após sair da cadeia, foi contratado para lutar pela independência do Chile e do Brasil, onde liderou batalhas que expulsaram portugueses do país, derrotaram rebeliões separatistas, como a Confederação do Equador, e asseguraram a adesão de todas as províncias ao recém-criado império.

Quis o destino que um dos pais da Marinha brasileira fosse um escocês.

O lorde Thomas Cochrane (1775-1860) é dessas figuras históricas que parecem saídas de um livro de aventuras. No início do século 19, era tido como herói nacional britânico, veterano das Guerras Napoleônicas, além de ser um político popular, de orientação reformista. Mesmo assim, acabou expulso da Marinha por se envolver em um escândalo de fraude na Bolsa de Valores em 1814.

Historiadores avaliam hoje que o provável culpado pelo golpe tenha sido seu tio Andrew, e que Cochrane, muito provavelmente, não participou do caso. De toda forma, à época foi condenado a um ano de prisão, perdeu sua patente de oficial e suas condecorações, bem como o mandato na Câmara dos Comuns. O fato de ser um inimigo declarado do establishment político e do alto almirantado certamente contribuiu para o rigor das punições.

Pintura de Thomas Cochrane, marquês do Maranhão, oficial naval e político britânico que desempenhou papel importante nas histórias militares de Reino Unido, Chile, Brasil e Grécia - Wikimedia Commons

Por isso, quando foi convidado em 1817 a se juntar como mercenário às tropas do libertador San Martín, organizando e liderando a recém-criada Marinha do Chile em sua guerra de independência, não pensou duas vezes: arruinado em seu país de origem, Cochrane buscou na América do Sul uma espécie de segunda chance.

Sua atuação foi decisiva para a libertação dos chilenos do jugo espanhol, especialmente na captura da cidade-fortaleza de Valdívia. Ele também ajudou a derrotar os colonizadores no então Vice-Reino do Peru, núcleo da resistência monarquista no continente e, portanto, parte inextricável da luta que se travava no Chile.

A consolidação da independência no Peru viria anos mais tarde, pelas mãos de outro libertador, Simón Bolívar, mas Cochrane ajudou a Expedição Libertadora de San Martín a ocupar Lima em 1821, além de impor bloqueios navais estratégicos e capturar a fragata Esmeralda, a maior que os espanhóis tinham no continente.

Cochrane criou laços sólidos com o Chile. Tornou-se cidadão do país e viveu alguns anos com a esposa e os filhos em uma propriedade em Quintero. Em Valparaíso, encontra-se uma estátua de bronze do almirante, comissionada pela própria população. Praças, avenidas, hotéis e até fragatas da Marinha chilena foram batizadas em sua homenagem. Tornou-se, em suma, um herói nacional.

Enquanto Cochrane descansava de sua missão no Chile, a situação no Brasil se acirrava. No célebre 7 de setembro de 1822, dom Pedro 1º declarou nossa independência política, mas ainda era necessário vencer a resistência portuguesa, que não aceitaria simplesmente perder seu território mais valioso, e, principalmente, assegurar a adesão de todas as províncias ao recém-criado Império do Brasil, mantendo a unidade territorial.

O país não contava com uma Marinha organizada —éramos, afinal, parte do Império Português, cujos militares deviam fidelidade à Coroa lusitana, não a dom Pedro. O esforço inicial de montagem de uma Marinha de guerra precisaria contar, portanto, com o apoio de mercenários estrangeiros.

José Bonifácio conhecia bem os feitos de Cochrane e recomendou veementemente seu nome ao imperador, que lhe enviou um convite em novembro de 1822. Cochrane aceitou a proposta e desembarcou no Rio em março de 1823, sendo nomeado primeiro-almirante.

Sua missão principal era expulsar os portugueses que resistiam na Bahia, liderados pelo general Madeira de Melo. Para tal, contratou mais de 500 mercenários britânicos, pois não confiava que todos os militares portugueses supostamente convertidos à causa de dom Pedro iriam de fato combater seus compatriotas, suspeita que acabaria se provando verdadeira. Cochrane e os oficiais de sua confiança tiveram que treinar os marinheiros novatos durante a própria viagem entre o Rio e Salvador.

Apesar de tudo, a missão foi um sucesso. Cochrane impôs um severo bloqueio à província e atacou alguns navios portugueses quando ainda estavam aportados. Por terra, as tropas brasileiras avançaram com a ajuda dos senhores de engenho do recôncavo.

Correu a notícia também de que uma gigantesca esquadra brasileira estaria a caminho —uma invenção de Cochrane, para abalar os lusitanos. Madeira de Melo se viu forçado a fugir, e a Bahia foi oficialmente incorporada ao império no dia 2 de julho de 1823, data até hoje comemorada pelos baianos como marco de sua independência.

Cochrane também ajudou a estabilizar politicamente o Piauí, o Ceará e o Pará, mas os episódios que mais marcaram sua reputação ocorreram no Maranhão. Sua missão ali era derrubar a Junta Governativa, que permanecia fiel a Portugal, e empossar um novo presidente de província (o que chamaríamos hoje de governador). A capital, São Luís, resistiu o quanto pôde, mas acabou cedendo ao bloqueio naval e à ameaça dos canhões.

Ocorre que, no processo de implantação do novo governo, Cochrane confiscou, como recompensa para os combatentes vencedores, vários navios e propriedades particulares, bem como o arsenal inteiro da Marinha local (incluindo 3.000 arroubas de pólvora), fundos da Alfândega e até escravos.

O episódio serviu para difundir sua fama de ganancioso, construída desde a época do golpe na Bolsa de Valores. O próprio San Martín o havia apelidado de "lorde metálico", dada sua aparente obsessão pelo "vil metal".

Cochrane, é claro, tinha outra explicação, exposta em sua autobiografia: o confisco de espólios de guerra era não apenas prática corriqueira na Marinha britânica, como também uma forma de garantir que ele receberia o pagamento por seus serviços conforme acertado em contrato.

A julgar pelo que dizem as biografias recentes, mais equilibradas —a melhor em português é certamente a de George Ermakoff, "Lorde Thomas Cochrane: um Guerreiro Escocês a Serviço da Independência do Brasil", publicada em 2021—, Cochrane diz a verdade, ao menos em parte.

No caso nacional, a Justiça também lhe deu razão, pois, em 1874, o Império Brasileiro precisou indenizar com juros os herdeiros de Cochrane, morto havia mais de uma década, em razão de soldos não pagos.

Em 1823, porém, seus contratantes não poderiam estar mais satisfeitos. Em meio ano, Cochrane havia expulsado toda a esquadra lusitana e assegurado a incorporação das províncias do Norte e Nordeste ao recém-criado Império Brasileiro. De volta ao Rio em novembro, recebeu de dom Pedro o título de marquês do Maranhão e a Ordem do Cruzeiro do Sul, mas sua contribuição para a história nacional ainda não havia terminado.

A nova Constituição foi promulgada em março de 1824, instituindo o Poder Moderador. A província de Pernambuco, de tradição republicana, rejeitava tamanha concentração de poder nas mãos do monarca e, estimulada por lideranças como Cipriano Barata e, principalmente, Frei Caneca, deu início à Confederação do Equador.

O plano era criar uma república separada do império, formada por Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará (Piauí e Pará também eram cogitados), organizada sobre princípios federativos.

Cochrane foi enviado em agosto para reprimir a confederação, dessa vez à frente de uma esquadra maior, contando com marinheiros mais preparados, além de centenas de mercenários. Chegando ao Recife, epicentro da revolta, estabeleceu um bloqueio naval e deu oito dias para que os navios estrangeiros (neutros) se retirassem do porto.

Também circulava um manifesto, atribuído ao escocês, informando que, caso a rebelião continuasse, a Marinha imperial bloquearia com pedras o canal de entrada da cidade.

No dia 27 de agosto, Cochrane bombardeou o Recife. O ataque foi simbólico, pois não pretendia destruir a capital, mas deixar clara a superioridade de armas da Marinha imperial e forçar uma rendição. Em algumas semanas, e com batalhas menores no Ceará e na Bahia, a confederação caiu.

Cochrane voltou então para o Maranhão. O presidente de província, empossado no ano anterior, agia como um tirano, perseguindo indiscriminadamente seus inimigos políticos, reais ou imaginários. Para evitar uma revolta popular, ele foi destituído do cargo e mandado para o Rio de Janeiro.

Cochrane aproveitou a oportunidade para confiscar para si mesmo, à força, o equivalente a um quarto de todos os bens capturados na guerra do ano anterior, uma fortuna de 106 mil contos de réis que ele considerava sua por direito.

Essa foi a última ação notável do almirante escocês no Brasil —e também a mais polêmica. Cochrane passou para o imaginário popular como um saqueador. No Maranhão, foi associado ao sanguinário general Pierre Labatut e, por extensão, ao monstro Labatut, criação do folclore regional inspirada na crueldade notória do militar francês. O maranhense José Sarney classificou Cochrane certa vez como um corsário, e Laurentino Gomes, em seu best-seller "1822", assinala a fama de herói maldito do escocês.

Após deixar o Brasil, Cochrane ainda participaria até 1828 da Guerra de Independência da Grécia. Só então retornou ao Reino Unido, onde se dedicou a escrever o relato de suas proezas militares e uma autobiografia.

Morreu em 1860, de certa forma redimido: fora reintegrado às Forças Armadas, recuperou seus títulos honoríficos e alcançou a segunda patente mais alta da Marinha (almirante da esquadra vermelha). Está sepultado na abadia de Westminster, ao lado de figuras ilustres como Isaac Newton, Charles Darwin e o (também) almirante Robert Blake.

Cochrane teve, sem dúvida, uma trajetória notável. O que mais impressiona é saber que todos os acontecimentos aqui narrados representaram, por assim dizer, apenas o segundo tempo de sua vida, ou, dito de outra forma, um bem-sucedido recomeço. O auge de sua carreira militar ocorreu, na verdade, durante as chamadas guerras revolucionárias (desencadeadas pela Revolução Francesa) e, principalmente, as Guerras Napoleônicas.

Naquele período, Cochrane participou de batalhas decisivas ao longo de todo o Mediterrâneo, garantindo a integridade do território britânico e dando apoio aos nacionalistas espanhóis, que lutavam para expulsar os invasores franceses. No processo, amealhou também uma fortuna apresando navios inimigos.

Graças à sua ousadia, foi apelidado pelo adversários de "lobo do mar". Seus feitos durante as Guerras Napoleônicas inspiraram até personagens fictícios —o mais conhecido é o capitão Jack Aubrey, criado pelo escritor Patrick O’Brian e interpretado por Russel Crowe no filme "Mestre dos Mares" (2003). Uma vida que, de fato, se assemelha a uma novela de aventuras.

O que a trajetória de Cochrane pode ensinar a nós, brasileiros? Em primeiro lugar, ela contraria o mito da nação pacífica. É verdade que o Brasil não precisou de uma guerra longa e sangrenta para assegurar sua independência, especialmente se comparado aos países da América Espanhola, mas tampouco o projeto político vitorioso, aquele de dom Pedro e Bonifácio, foi implementado sem resistência.

Homens como Cochrane venceram pelas armas esses outros Brasis possíveis que, no entanto, continuaram existindo como correntes subterrâneas, prontas a ressurgirem em novos levantes e movimentos, ou, até hoje, como aspectos mais ou menos encovados da nossa diversidade cultural.

Por fim, o fato de que figuras como Cochrane e, principalmente, as redes de eventos que as cercam continuem majoritariamente desconhecidas —sobretudo no contexto deste bicentenário da Independência que, ao que tudo indica, passará quase em branco—, é sintomático de um país que insiste em desvalorizar sua própria história.

Texto integra série Perfis da Independência

Esse texto é a terceira publicação da série Perfis da Independência, que destaca nomes relevantes —muito conhecidos ou não— do período da emancipação do Brasil em relação a Portugal. O texto sobre a imperatriz Leopoldina deu início à série em fevereiro deste ano, seguido pelo artigo sobre Hipólito da Costa.

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