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Dirce Waltrick do Amarante

Única tradutora de 'Ulisses' no Brasil é ignorada em centenário do livro

Versão de Bernardina da Silveira Pinheiro não teve reedição neste ano e parece ser tradicionalmente subestimada

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] Estudiosa da obra de James Joyce, Bernardina da Silveira Pinheiro é a única mulher na América Latina que já traduziu 'Ulisses', o revolucionário romance do escritor irlandês. Publicada em 2005, sua versão, contudo, é frequentemente menosprezada em relação às duas outras traduções brasileiras, assinadas por Antônio Houaiss e Caetano Galindo. No centenário do livro, é hora de revalorizar o trabalho de Bernardina e demais tradutoras de Joyce, comenta autora deste texto, também tradudora.

Todos os anos, desde 1924, celebra-se no dia 16 de junho o Bloomsday, uma festa literária em homenagem a Leopold Bloom, protagonista do romance "Ulisses" (1922), do escritor irlandês James Joyce, que perambula pelas ruas de Dublin nesse mesmo dia do ano de 1904.

Neste ano o Bloomsday é especial; afinal, a publicação integral do romance, sob o comando da editora norte-americana Sylvia Beach e com a ajuda financeira da mecenas do escritor, Harriet Weaver, fez cem anos no dia 2 de fevereiro. Duas mulheres foram fundamentais para dar a Joycea visibilidade e o destaque que ele merecia ainda em vida.

Bernardina da Silveira Pinheiro (1922-2021)
A tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro (1922-2021) - Arquivo pessoal

Em língua portuguesa, "Ulisses" conta até agora com cinco traduções, três no Brasil e duas em Portugal. No segundo semestre deste ano, a Ateliê Editorial publicará uma quarta versão do romance por aqui; trata-se de uma tradução coletiva assinada por 18 tradutores (um para cada episódio), sob o comando de Henrique Xavier.

Para marcar o Bloomsday do centenário, a editora Civilização Brasileira reeditou "Ulisses" na célebre tradução de Antônio Houaiss, o primeiro a trazer o livro para o português, em 1966. A editora Companhia das Letras também investiu em uma nova edição do romance na tradução de Caetano Galindo, o terceiro a verter a odisseia joyciana no Brasil, em 2012.

Entre Houaiss e Galindo, há, vale destacar, a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, publicada em 2005, pela editora Objetiva. Bernardina é a única mulher tradutora de "Ulisses" na América Latina; aliás, as tradutoras de Joyce não são muitas e geralmente passam despercebidas, talvez porque Joyce seja considerado um autor difícil e, portanto, "inacessível" às mulheres, que deveriam traduzir "Doçuras do Pecado", em uma referência a uma novelinha açucarada que Leopold Bloom compra para a sua mulher, Marion (Molly) Bloom, no romance.

O fato é que, no centenário de "Ulisses", a tradução de Bernardina não foi convidada para a festa. O que justificaria esse apagamento? Poderiam ser lançadas algumas hipóteses: a Companhia da Letras e a Objetiva fazem parte de um mesmo conglomerado de editoras, e possivelmente tenham achado mais interessante apostar apenas em uma das traduções para não dividir o mercado.

Aliás, a tradução de Bernardina acabou indo para a editora Nova Fronteira, que promete uma reedição da obra.

Outra suposição, com algumas evidências, é a de que a tradução da Bernardina tenha sido subestimada, apesar de ser a única que, no mesmo volume, traga paratextos. Bernardina não só assina a apresentação e as notas sobre a obra, como também muniu os leitores com o famoso paralelo entre a "Odisseia", de Homero, e o romance joyciano.

Estudiosa de Joyce, Bernardina, antes de se aventurar na tradução da obra-prima do irlandês, já havia traduzido "Um Retrato do Artista quando Jovem" (Siciliano, 1992). Sua trajetória joyciana é invejável, potencializada quando conheceu Richard Ellmann, o aclamado biógrafo do escritor irlandês, em 1985, de quem se tornou amiga.

Quando falo que há indícios de que a tradução de Bernardina tenha sido subestimada, penso, por exemplo, na ausência de prêmios a seu trabalho, como o Jabuti. Cabe lembrar que Houaiss também não ganhou o Jabuti, uma vez que na época de seu "Ulisses’ não existia a categoria tradução.

Em 2006, Bernardina ficou em terceiro lugar na mesma premiação, atrás das traduções assinadas por Mamede Jarouche ("Livro das Mil e uma Noites"), primeiro colocado, e Alípio Correia de Franca Neto ("A Balada do Velho Marinheiro", de Samuel Taylor Coleridge), segundo lugar.

Em 2013, a tradução de Galindo venceu não só o Jabuti (deixando para trás Jarouche, com a tradução do quarto volume do "Livro das Mil e Uma Noites"), como também obteve outras premiações em território nacional.

No Brasil, há inúmeros textos sobre "Ulisses" que nem sequer mencionam a tradução de Bernardina, e há estudiosos de Joyce (pasmem!) que, ainda hoje, não sabem ao certo o nome da tradutora.

De outra parte, não raras vezes, quando a sua tradução é analisada, ela parece vir balizada pelas traduções de Houaiss e Galindo, como se essas outras versões servissem de régua para todas as outras, ou para a de Bernardina, mais especificamente.

A propósito, um lugar-comum a respeito da tradução de Bernardina é que ela quis aproximar o leitor de "Ulisses" valendo-se de coloquialidade e "facilitando" a obra. Ocorre que quando Houaiss traduziu o livro, nos anos 1960, a linguagem era outra, o vocabulário era outro e ainda engatinhávamos em termos de estudos joycianos no Brasil.

A tradução de Bernardina vem numa outra época, em que os estudos sobre Joyce por aqui e as traduções do autor em português brasileiro já haviam proliferado. A língua portuguesa também era outra, sem contar que se "descobriu" que em "Ulisses" Joyce não era tão empolado quanto se pensava, não em todos os capítulos nem em todos os momentos.

Galindo já parte de outro contexto, com estrada pavimentada, mas não menos pedregosa e escorregadia.

Temos, portanto, três "Ulisses", três pontos de vista sobre o romance, três leituras, pois antes de traduzir é preciso ler e interpretar, e uma obra como a de Joyce é porosa, é obra aberta, para usar um termo de Umberto Eco, que permite múltiplas leituras; não é à toa que ela ainda é lida e relida com interesse até hoje.

Em janeiro deste ano, houve a inauguração do Espaço James Joyce na sede da Escola Letra Freudiana, sociedade psicanalítica do Rio de Janeiro, que agora abriga 269 livros sobre o escritor irlandês que pertenciam a Bernardina Pinheiro.

No centenário de "Ulisses" e de Bernardina (nascida também em 1922, morreu no ano passado, aos 99 anos|) a tradutora e pesquisadora parece atuar como Babette, personagem de "A Festa de Babette" (1987), filme dinamarquês vencedor do Oscar de produção internacional, dirigido por Gabriel Axel, e baseado no conto de Karen Blixen.

Ou seja, Bernardina preparou o banquete para os outros degustarem e saiu de cena. Sua tradução não foi reeditada nem festejada, mas ela talvez não viesse a se preocupar em sentar à mesa com os convivas neste centenário. Em uma entrevista concedida a Vitor Alevato do Amaral, em 2019, Bernardina afirmou que sua tradução de "’Ulisses’ foi bem recebida e teve correta atenção dos meios de comunicação".

Diria que Babette teve um importante papel, mas lá nos idos de 1871, quando se passa a história do filme. No centenário de "Ulisses", nós, tradutoras de Joyce —Patrícia Galvão (Pagu), Luci Collin, Aurora Bernardini, Denise Bottmann, Fedra Rodríguez, Daiana Oliveira, Andréa Buch Bohrer e eu mesma— queremos sentar à mesa, como nos convidou Judy Chicago, que em "The Dinner Party" (o baquete) pôs a mesa para mulheres que se destacaram ao longo da história.

Cana do filme dinamarquês "A Festa de Babette", do diretor Gabriel Axel - Divulgação

Penso que nós, as tradutoras de hoje, queremos nos sentar ao lado, obviamente, dos tradutores de Joyce no Brasil, como, por exemplo, Antônio Houaiss, Donaldo Schüler, Alípio Correia de Franca Neto, José Roberto O’Shea, Vitor Alevato do Amaral, Caetano Galindo, Tomaz Tadeu, Henrique Xavier, Piero Eyben.

O feminismo não é um movimento de exclusão, mas de inclusão, ou, como Joyce diria em seu "Finnegans Wake", Here Comes Everybody (Há Convergência de Espaço, ou Aqui Todos Cabem).

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