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João Almino

Nélida Piñon trilhou caminho persistente e inovador, longe de modismos

Primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, escritora morreu aos 85

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João Almino

Escritor e diplomata. Autor de "Cidade Livre", "Entre Facas, Algodão" e "Homem de Papel"

[RESUMO] Nélida Piñon, que morreu aos 85 anos, no último dia 17, teve trajetória única na literatura brasileira, indiferente às correntes estéticas em voga. Dona de obra original e solitária, nada paroquial, soube criar síntese literária que abarca o Brasil e a América Latina, passando pelo barroco, realismo e pela experimentação de linguagem, mais contemporânea de autores hispânicos que de brasileiros de sua geração.

Um ponto que me parece fundamental para compreender a importância da obra literária de Nélida Piñon, que morreu no último dia 17, foi sua coragem em seguir, de forma persistente e inovadora em relação a si mesma, seu próprio caminho, indiferente às correntes estéticas em voga.

A primeira razão a explicar este caminho é que, em diálogo com o melhor das tradições literárias do Brasil e da América Latina, Nélida Piñon inscreveu sua obra numa vertente ibero-americana e nada paroquial.

A escritora carioca Nélida Piñon em sua casa no Rio, em 1997 - Dadá Cardoso/Folhapress

Possivelmente o fez em função da viagem às suas raízes ibéricas, fruto do seu esforço de compreensão de sua autobiografia coletiva. Sua literatura tem uma força telúrica que vem da Galícia, e a história espanhola a que pertence confunde-se com a dos celtas, visigodos e fenícios, entre outros povos.

Perguntou-lhe Clarice Lispector, numa das entrevistas que publicou em "De Corpo Inteiro", que influências reconhecia em seu trabalho. "Antes repito como São Paulo," respondeu: "Dos gregos e dos romanos, dos antigos e dos modernos, estou em dívida com todos".

Talvez por isso se sinta confortável nas tradições do barroco e do realismo, passando pelo romance psicológico, embora sempre imprimindo um acento próprio em sua obra que a aproxima da literatura hispano-americana.

Se considerarmos a história, feita de disjunções, de nossas literaturas, brasileira e latino-americana, desconheço outros autores dos quais poderíamos dizer o mesmo: que sua síntese literária abarca o Brasil e a América Latina.

Talvez indiretamente, Nélida Piñon, que começou a publicar em 1961, tenha recebido o legado dos dois maiores autores brasileiros que antecederam sua geração: João Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Sem dúvida indiretamente, pois suas incursões metafísicas, em romances como "A Casa da Paixão" (1972) e "Tebas do Meu Coração" (1974), não foram acompanhadas das inovações linguísticas do autor de "Sagarana" (1946).

O contraste com Clarice Lispector é igualmente evidente, mesmo quando a obra de Nélida Piñon é introspectiva e compartilha com a autora de "A Paixão Segundo G.H" (1965) "o drama da linguagem", para usar a expressão cunhada por Benedito Nunes.

Ela foi mais contemporânea de Vargas Llosa, Borges, Mutis, Rulfo, Cortázar e Paz do que dos escritores brasileiros dos anos 1970. No Brasil, no âmbito de sua própria geração, produziu uma obra original e solitária.

Sem cair na armadilha de explorar os temas ditados –contrario sensu– pelo aparato de censura, não se omitiu. As torturas e os assassinatos políticos ocupam a atenção do Dr. Tobias, protagonista de "A República dos Sonhos" (1984), e em "A Doce Canção de Caetana" (1987) o consumismo excessivo de produtos e ilusões dos anos 1970 mascaram a realidade atroz da ditadura.

A segunda razão a explicar seu percurso reside no fato de que sua paixão pela criação literária a levou a nunca desistir da imaginação e a insistir na experiência pessoal com a linguagem. Este procedimento continuou vigente mesmo quando o barroco, o surrealismo e a experimentação das suas primeiras obras de ficção deram lugar à narrativa límpida e linear e quando abordou o documento, usando a história como matéria-prima.

Na apresentação de um de seus livros, reproduzida em 1979 no número 48 da Revista de Cultura Brasileña, seu amigo Mario Vargas Llosa refere-se a uma "operação subversiva" que a autora realiza contra a ilusão de realismo do romance. Desse irrealismo inusitado, ela passou a um realismo que incorpora as dimensões do sonho, do mito e do sistema simbólico dos personagens, o que era preciso para sua desejada compreensão da cultura e da história de forma ampla e profunda.

É, portanto, uma história milenar a que alimenta o lirismo épico de parte de sua obra, bem como sua interpretação do Brasil e da Península Ibérica. A respeito de seu primeiro romance, "Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo" (1961), ela mesma disse em 1982, numa entrevista a Edla van Steen, que "é um texto onde eu buscava a fábula do imaginário ou a fábula da linguagem".

Também contribuiu para seu caminho independente o fato de ser mulher em um país onde a literatura era tradicionalmente dominada por homens. Não será demais relembrar o que seus obituários repetem: foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras.

Ela soube trazer para a literatura do nosso continente a sua experiência familiar e sua sensibilidade feminina, sem transformar a primeira numa biografia individual e sem reduzir a segunda a uma bandeira política. A esse respeito, perguntou-lhe Clarice Lispector, na entrevista que publicou em "De Corpo Inteiro": "Você distingue poeta de poetisa, literatura feminina de literatura masculina?"

Ao que Nélida respondeu, imagino que com seu sorriso franco, luminoso e quase constante e sua habitual agilidade verbal: "Essas divisões clássicas estão ao serviço da sociedade masculina, responsável pelo ato de nomear a produção 'feminina'...", para depois acrescentar que era "naturalmente feminista" e que "o feminismo é consequência da minha condição de mulher". Ser "naturalmente feminista" foi fruto de sua consistência e honestidade como escritora.

Em 1995, na qualidade de professor de literatura brasileira da Universidade de Stanford, fui convidado pela Feira Internacional do Livro de Guadalajara para pronunciar palavras de homenagem à primeira mulher a ganhar o prestigioso Prêmio Juan Rulfo.

Repito aqui algo do que disse na ocasião sobre seu livro já clássico, "A República dos Sonhos". Ao narrar a saga de uma família de imigrantes galegos, de 1913 a 1980, este romance homenageia uma Galícia medieval e oferece uma dupla visão da América.

A América dos sonhos e da busca da liberdade é também a da desilusão de que fala a personagem Breta: a América "que se vinga dos sonhadores, aplicando urtigas venenosas, dessas que incham as pernas e o esôfago, até que explodam".

"No fundo, 'A República dos Sonhos'", disse Nélida em entrevista ao crítico espanhol Antonio Maura em julho de 1995, "é a república dos fracassos". A perspectiva deste romance permite que se veja o Brasil de fora, inserido na tradição da cultura do imigrante e seja realçado o caráter múltiplo da nacionalidade brasileira.

Não por acaso, ao mencionar "A República dos Sonhos", dou um salto à frente para comentar rapidamente seu romance mais recente, escrito quando já estava quase cega e havia quebrado um braço: "Um Dia Chegarei a Sagres" (2020). Quis o destino que ela tenha morrido em Lisboa, após o lançamento em Portugal deste romance que completa a geografia ibérica de sua obra.

O personagem central, o narrador Mateus, nasceu próximo à Galícia. Seu avô, Vicente, incrédulo e rico em experiência, que criou o neto abandonado pela mãe, também traz ecos de "A República dos Sonhos".

Através dele, Mateus e o leitor se impregnam de conhecimentos da história e da geografia de Portugal. O livro pode ser lido, assim, como um hino de amor a Portugal. A viagem que faz o narrador em direção a Sagres equivale, como ele diz, a sua viagem em torno da Terra.

A história de um homem simples, do campo, é grandiosa como a própria história portuguesa, quanto mais não seja porque a pontuam o Infante dom Henrique e Camões, que são, como indica o narrador, a pátria portuguesa.

O fim da vida está presente já na primeira parte do romance, quando Mateus, ainda criança, assiste à morte do jumento Jesus. É intensa a descrição da morte de seu avô Vicente e, nas últimas páginas do livro, é emblemático o suicídio de outro personagem, chamado Africano, ao se jogar ao mar juntamente com o cão de nome Infante.

Se em "A República dos Sonhos" é clara a autobiografia coletiva, aqui, ao escrever um romance em primeira pessoa com um narrador masculino convincente, Nélida está na contramão da chamada autoficção e não faz uso de outro lugar de fala a não ser o da própria ficção. Fiel, portanto, a seu caminho próprio, longe de modismos.

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