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Luiz Armando Bagolin

Representação do Taiti por Paul Gauguin ainda divide avaliação de sua obra

Parte da crítica vê em suas telas com mulheres nuas um exemplo de exploração colonial e sexual

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Pintura a óleo "Duas Mulheres Taitianas", de Paul Gauguin, de 1899

Luiz Armando Bagolin

Professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

[RESUMO] Obra do pintor francês Paul Gauguin, tema de exposição no Masp, ainda é alvo de controvérsias em razão do período em que o artista viveu no Taiti. Para parcela da crítica, seu estilo primitivista reflete fantasias preconceituosas que serviram de justificativa para a colonização e a exploração sexual. Novos estudos, por outro lado, além de reforçarem sua excelência artística, percebem em seu trabalho a defesa da resistência feminina e a crítica à dominação europeia.

Em uma carta enviada ao pintor dinamarquês Jens Ferdinand Willumsen em fins de 1890, Paul Gauguin tentou justificar a sua partida definitiva para a Polinésia, na Oceania, fazendo uma crítica à sociedade burguesa europeia, na qual fracassou como artista e homem de negócios.

"Eu quero esquecer as coisas ruins do passado e deixar que morram lá; desconhecido aqui, livre para pintar sem qualquer glória para os outros [...] Uma era terrível está sendo preparada na Europa para a próxima geração: o reino do ouro. Tudo está podre, tanto os homens quanto a arte. Precisamos nos despedaçar continuamente... Enquanto na Europa homens e mulheres satisfazem suas necessidades apenas após um trabalho incessante, enquanto lutam em convulsões de frio e fome, atormentados pela pobreza, os taitianos, ao contrário, como habitantes felizes do paraíso desconhecido da Oceania, são familiares apenas com a doçura da vida", escreveu.

Autorretrato (perto do Gólgota) de Paul Gauguin, 1896
Autorretrato de Paul Gauguin, em 1896 - Divulgação

Muito crítico da sociedade à qual pertencia, Gauguin (1848-1903) se mostraria demasiado complacente com a realidade que encontrou em solo estrangeiro. O que é descrito em seu texto como um "paraíso desconhecido" deve ser lido, na verdade, como anomia frente aos processos de espoliação e violências —no caso, promovidas pela colonização europeia do Taiti.

Em seu livro "Gauguins's Challenge" (2018), Norma Broude, uma das maiores estudiosas do artista na atualidade, nos lembra que em 1989 Abigail Solomon-Godeau havia já relativizado esse "discurso mítico", sustentando a valorização da história de Gauguin como uma narrativa baseada em fantasias construídas a partir de uma dupla conceituação operando simultaneamente: a do Taiti como um paraíso exótico habitado por mulheres jovens disponíveis e prestativas; e a de Gauguin como artista/herói que teve de viajar para fora para descobrir o que estava dentro, renunciando à civilização ocidental para buscar as origens primordiais da vida e seu próprio "selvagem interior".

Apontando os preconceitos coloniais nos quais tal pensamento se baseava, a autora desmascara "os elementos constituintes do primitivismo, especialmente a densa interligação de fantasias raciais e sexuais e de poder —ambos coloniais e patriarcais".

Essa história duradoura construída por e para homens ocidentais foi perpetuada na segunda metade do século 20 por exposições altamente aduladoras montadas regularmente em importantes museus em todo o mundo.

Essas exposições parecem ter contribuído para a realização das fantasias de inúmeros homens comuns de meia-idade que, como Gauguin, poderiam ter sonhado em abandonar os encargos de empregos burgueses e famílias para começar de novo e desfrutar dos prazeres físicos e da liberdade econômica que supostamente seriam encontrados nos Mares do Sul.

Além disso, os primeiros estudiosos de Gauguin foram predominantemente homens. Eles construíram e justificaram o mito do pintor francês a partir de seu próprio ponto de vista. Um exemplo particularmente grosseiro citado por Solomon-Godeau é o esforço do historiador da arte René Huyghe para naturalizar os relacionamentos sexuais de Gauguin com meninas muito jovens no Taiti, garantindo aos seus leitores "que a menina taitiana de 13 anos é equivalente à de 18 ou 20 anos na Europa". Ao retornar a Paris, seu negociante Ambroise Vollard descreveu o artista como um "príncipe oriental, com uma garota javanesa ao seu lado".

Na opinião de Solomon-Godeau, a arte de Gauguin era na verdade um "reprocessamento de signos já constituídos" que colapsam o feminino e o primitivo um no outro, constituída por uma série de "plágios" tanto visuais quanto verbais.

Entendendo a arte, às margens da assim chamada modernidade, como uma forma de questionamento da realidade circundante (para afirmá-la ou negá-la, como queiram), a autora não parece ter compreendido os componentes fortemente alegóricos (agentes nas artes desde o século 16) ainda presentes nas obras de Gauguin.

Isso, todavia, não implica redimi-lo do fato de que se comportou como um verdadeiro predador —aliás, a exemplo de muitos dos artistas viajantes europeus do século 19. Como Camille Pissarro, seu contemporâneo, memoravelmente colocou: "Gauguin está sempre invadindo o território de alguém; hoje em dia, ele está saqueando os selvagens da Oceania".

Em 1901, o pintor trocou o Taitipor Hiva-Oa, uma das Ilhas Marquesas, na Polinésia Francesa. Em uma carta dessa época, o pintor manifestou sua ansiedade por novos horizontes, assim como sua incessante insatisfação consigo mesmo: "[...] creio que nas Marquesas, com a facilidade com que se obtém os modelos, coisa cada vez mais difícil no Taiti, e com paisagens a se descobrir, ou seja, com elementos totalmente novos e mais selvagens, vou fazer coisas belas [...] o público está acostumado demasiado ao Taiti [...] Minhas telas da Bretanha se converteram em água de rosas por causa do Taiti; Taiti será água de colônia por causa das Marquesas".

No final do século 20, Paul Gauguin se tornou um artista que as historiadoras de arte feministas adoravam odiar. O primeiro tiro foi lançado em 1972, na análise de Linda Nochlin da pintura "Duas Mulheres Taitianas" (1899, National Gallery, Washington/EUA), que oferecem seus seios ao espectador junto com as bandejas de mangas maduras que seguram.

Nochlin justapõe essa pintura a uma fotografia de teor pornográfico de um modelo masculino nu posando com uma bandeja de bananas sob seus genitais, exortando o espectador, através da legenda, a "comprar minhas bananas". Usando a inversão sexual, uma arma poderosa da análise feminista inicial, a piada visual de Nochlin expôs as operações de gênero do olhar na "alta arte", e foi um alerta para suas colegas de atividade.

Em 1993, Karyn Esielonis ofereceu uma outra versão, algo redentora para o artista. Ela analisa o contexto histórico que moldou tanto o conceito de exótico quanto a recepção das imagens de Gauguin entre os críticos franceses no final do século 19.

Mesmo que esses críticos tivessem ideias muito diferentes sobre como as pinturas funcionavam na cultura francesa, eles as viram, argumenta ela, não como imagens escapistas de um paraíso exótico imaginário, mas como locais de lutas ideológica que estavam totalmente em contato com o Taiti e com a política da França da época.

Por outro lado, críticos como Camille Mauclair e Gaston Méry continuaram a ver e a tratar as pinturas do artista como parte do mesmo discurso exploratório que legitimava o colonialismo e suas políticas de assimilação, semelhante em espírito às exibições etnológicas apresentadas na Exposição Universal de Paris de 1889.

Mais recentemente, Norma Broude explorou a dívida de Gauguin com os escritos e a persona de sua avó, Flora Tristan (1803-1844) —socialista utópica e reformadora feminista que manteve um pensamento desafiador ao capitalismo e ao patriarcado—, que ele conheceu e com quem pareceu estar de pleno acordo, pois sempre a citava com orgulho e admiração.

Convidando as feministas a considerar as maneiras pelas quais Gauguin pode ter ameaçado o pensamento patriarcal, Broude chamou a atenção para aspectos, até então obscurecidos por críticas anteriores, de sua identidade como reformador social e defensor dos direitos das mulheres.

Ela interpreta a predominância de mulheres na obra de Gauguin de uma forma nova, não como uma estratégia para explorar sexualmente o mundo polinésio, mas como uma preocupação com formas alternativas de organização social que privilegiavam o papel feminino no mito e na cultura pré-colonial.

A atenção dada por ele à sobrevivência ou ao desaparecimento dessas formas mais antigas de organização social no presente colonial é aqui conectada com o papel de mulheres fortes em sua própria estrutura familiar e com a fascinação da era vitoriana por formas antropológicas de matriarcado e de descendência matrilinear em sociedades antigas e primitivas.

Ou seja, Gauguin poderia ser reabilitado como um pintor esclarecido, ciente do papel crítico que sua pintura teria na apresentação das formas de dominação que os europeus perpetraram ao longo de séculos contra aqueles povos, em especial contra as mulheres, assim como a resiliência delas frente à essa dominação.

O afã de resgatar a obra de Gauguin de um possível cancelamento por conta de sua história pessoal —e, em particular, de seu comportamento machista com mulheres e meninas— encontra obviamente respaldo do mercado de arte, para o qual a obra do pintor ainda é um ativo fundamental: a pintura "Maternidade (II)" (coleção Paul Allen), de 1899, foi leiloada recentemente por US$ 106 milhões, um recorde para obras do pintor.

Para o mercado, o trabalho de Gauguin deve também ser lembrado em termos de sua contribuição artística e estética para as artes que vieram depois, assim como o de Van Gogh ou Cézanne. Gauguin foi um artista altamente influente, que desenvolveu uma abordagem única para a representação visual, incorporando em sua obra elementos de várias tradições artísticas e culturais.

Sua exploração da cor, da forma e dos símbolos levou a um estilo que impactou diretamente muitos artistas modernos, a exemplo de Pablo Picasso e Henri Matisse, entre outros.

É preciso ainda observar que o artista foi um excelente pintor, com conhecimento verdadeiro e disciplinado do ofício, e não apenas na pintura, como também no desenho, na gravura, na cerâmica e na escultura. Em todos esses campos, Gauguin revelou uma maestria que faria (ou pelo menos deveria fazer) corar muitos dos artistas de hoje que lutam por pautas identitárias usando esses mesmos meios.

Entretanto, devemos ser críticos em relação à forma como a arte de Gauguin foi apresentada e interpretada no passado pela história oficial. O mito do "selvagem nobre" e da "terra virgem" do Taiti, que o próprio Gauguin ajudou a criar, serviu para justificar a colonização, a exploração e o rapto sexual.

Segundo a pesquisadora June Hargrove: "Ele se encontrou na situação paradoxal de advogar sentimentos ferozmente anticoloniais, ao mesmo tempo em que era um colonizador de fato. Por mais que possa ter se identificado com a população nativa no final de sua vida, ele era, irreversivelmente, um outro colonizador em sua terra".

Por um bom tempo ainda, seguiremos com a dicotomia entre eleger a arte, apesar do artista, salvaguardando o direito de as novas gerações terem o esclarecimento sobre as práticas nocivas ou indecorosas (de acordo com valores de nosso tempo) de indivíduos de outras épocas.

Aparentemente cônscio de como seria julgado no futuro, Gauguin escreveu quase ao final de sua vida: "Ninguém é bom; ninguém é mau; todo mundo é os dois; da mesma maneira e de maneiras diferentes... Você arrasta seu duplo junto com você e, no entanto, os dois conseguem se dar bem".

Isso, de fato, não é de grande ajuda para a sua aprovação nos tempos que correm, porque comprova que, para ele, o ato de pintar ou criar sempre foi indissociável de sua vida e de suas escolhas.

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