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Adriana Nunes

Viver de dança no Brasil é semear flor no deserto

Bailarinos comemoram quando conseguem trabalho e recebem cachê que pague transporte até local do espetáculo, diz autora

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Adriana Nunes

Formada em letras pela USP e jornalismo pela PUC-SP, é bailarina, diretora da Antônima Cia de Dança e intérprete na Mais Companhia.

[RESUMO] Cenário para quem se dedica à dança no Brasil é bastante árido, comenta bailarina, que destaca entre os fatores a carência de editais, a falta de estratégias de governos e centros culturais para formação de público e o pouco espaço dado pela mídia. Apesar desses entraves, grupos e companhias seguem criando, movidos por paixão e teimosia.

Comecei no balé aos 4 anos e nunca mais parei de dançar. Estudei dança moderna e contemporânea e me especializei em improvisação. Dirijo uma companhia, atuo em outra, dou aulas, pesquiso, crio e penso em dança o tempo todo.

Como muitos outros bailarinos, nunca pude viver da minha arte. Atrizes e atores de teatro costumam reclamar quando suas peças ficam apenas quatro semanas em cartaz; bailarinas e bailarinos comemoram quando conseguem apresentar um trabalho e receber um cachê que pague o transporte até o local do espetáculo.

Bailarinos do Grupo Corpo em cena do espetáculo 'Primavera', que tem trilha sonora do Palavra Cantada - José Luiz Pederneiras/Divulgação

Se as coisas não estão fáceis para o povo do teatro, sobretudo depois do trator que o governo Bolsonaro passou sobre a cultura, tanto do ponto de vista material quanto simbólico, para a dança o cenário é ainda mais árido.

Faltam espaços que disponibilizem o tempo necessário para uma obra se estabelecer. Ainda assim, movidos por paixão ou teimosia, grupos, coletivos e companhias seguem criando e semeando flores no deserto.

Nos últimos meses, assisti a mais de dez apresentações, que vão do solo de Ricardo Aparecido no Teatro do Centro da Terra aos espetáculos "Fôlego" e "Motriz" apresentados pelo Balé da Cidade de São Paulo no Theatro Municipal, passando pela Clarin Cia de Dança no Sesc 24 de Maio; por Eduardo Fukushima e Bia Sano no Instituto Tomie Otake; pela Cia Fragmento de Dança no CRD; pelo Núcleo Cinematográfico de Dança no Quintal Galpão; por Rosa Antuña e pelo Núcleo Improvisação em Contato no Centro Cultural São Paulo (CCSP).

Quais desses artistas ou companhias você conhece? Cada trabalho segue um caminho muito próprio de composição, de pensamento sobre o movimento e de entendimento da dança, mas todos estão inseridos no mesmo contexto da dança contemporânea (e deixo a definição de dança contemporânea para outro texto).

Sobram diversidade e pesquisa. Em boa parte dos trabalhos a que assisto, a plateia está repleta de bailarinos —nós mesmos criamos e nós mesmos assistimos.

Com exceção das companhias consagradas, que têm em comum o acesso permanente e garantido a patrocínio público ou privado —como o Grupo Corpo, de Belo Horizonte; a Companhia de Dança Deborah Colker e a Lia Rodrigues Companhia de Dança, do Rio de Janeiro; e a São Paulo Companhia de Dança—, quase nenhum espetáculo consegue alcançar o público amplo que o teatro e a música alcançam, mesmo considerando artistas fora do mainstream.

É raro que pessoas procurem pela programação de dança no fim de semana. Alguns podem dizer que isso se deve ao caráter hermético de uma linguagem que não encontra lugar numa sociedade em que subjetividade e abstração estão cada vez mais escassas. Se isso é verdade, me parece ainda mais necessário que haja investimentos para possibilitar a difusão dessa linguagem.

O CRD (Centro de Referência da Dança) é hoje o principal local público de difusão da dança na cidade, mas o espaço incrível que ele ocupa, embaixo do viaduto do Chá, poderia ser muito mais bem aproveitado se houvesse destinação de recurso suficiente.

Falta estratégia para a formação de público por parte dos governos e dos espaços culturais. Os artistas não param de pesquisar, criar, propor e inscrever projeto atrás de projeto nos editais de cultura. O Fomento à Dança, principal edital da capital paulista, recebe mais de cem projetos por edição, dos quais no máximo 20 são contemplados.

Os outros 80 vão para a gaveta. Gaveta de onde, muitas vezes, não saem mais, seja porque os editais não dão devolutiva, e o artista fica sem saber o que precisa melhorar, seja porque a criação não para e novos projetos surgem na sequência.

Os problemas dos editais públicos são muitos. Só para começar, é preciso dizer que eles obrigam os artistas a um jogo desleal de competição em que companhias com mais de 20 anos de história disputam com grupos recém-formados o mesmo e parco quinhão de verba.

O projeto neoliberal em curso transforma a arte em empreendedorismo e exige que o artista cumpra uma série de funções extras para além da arte, que já é, em si mesma, o bem que criamos para a sociedade.

Falta entender que artista não é publicitário nem empresário. Os editais devem ser ampliados, mas não podem ser o único meio de financiamento de projetos. Programas como "Masculino e Feminino na Dança", "Semana de Dança" e "Solos, Duos e Trios", do CCSP, não existem mais; a programação de dança na Sala Paissandu da Galeria Olido, que já foi muito movimentada, está totalmente esvaziada.

A exceção é o mês de abril, em que se comemora o dia internacional da dança, no dia 29. Nesse mês, tanto o CCSP e a Galeria Olido quanto outros equipamentos públicos municipais intensificam os eventos com espetáculos, oficinas, debates e outras atividades importantes.Por que não pensar em estratégias de ampliação desse modelo para o ano todo?

Também perdemos do lado da iniciativa privada: o Teatro Alfa, que tinha uma programação regular de dança, e era o único espaço a trazer companhias como a Sankai Juku e a Nederlands Dans Theater, fechou. Em seu lugar será construído um clube para milionários. Falta continuidade.

À insuficiência dos editais e de outras políticas públicas, soma-se o espaço cada vez menor que a mídia tradicional destina à dança. As editorias de cultura se fundiram às de entretenimento, quando não foram definitivamente extintas, e o espaço para arte sem milhares de seguidores no Instagram é praticamente nulo.

Uma matéria sobre dança contemporânea pode disputar atenção com uma matéria sobre a separação da Shakira? Quem quer ler sobre dança contemporânea? Falta interesse ou faltam incentivo e divulgação?

Apesar de todas as carências, a dança se espalha como água —seja nos encontros de jovens dançarinos no Centro Cultural São Paulo e na Galeria Olido, seja nos passinhos dos bailes funk ou na persistência das companhias de dança sem patrocínio, seja no empenho de espaços independentes como o Teatro do Centro da Terra e o Jambu Galpão.

Embora estejamos nos afundando no mundo virtual, somos corpo, somos feitos para o movimento. Sobra potencial transformador.

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