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Ricardo Henriques

Como ir além da reforma e construir nova política para ensino médio

Garantir educação de qualidade demanda acuidade na projeção do futuro, pragmatismo e utopia transformadora

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Ricardo Henriques

Economista, é superintendente executivo do Instituto Unibanco

[RESUMO] A reforma do ensino médio, tema que divide educadores, precisa ser seja discutida e aprimorada com maior atenção. Segundo o economista, algumas ideias estão corretas, como a maior flexibilidade da grade curricular e o aprofundamento interdisciplinar, mas a tentativa recente de implementação falhou ao ignorar o contexto complexo da educação no Brasil. Cabe agora desenhar uma estratégia que contemple, entre outros pontos, os investimentos necessários para o aumento da carga horária geral da formação escolar, a valorização de professores e a infraestrutura adequada das escolas, com o objetivo de oferecer uma educação de qualidade para o país.

Rever ou revogar a reforma do ensino médio transformou-se na maior controvérsia entre educadores em 2023. Ao final do ano passado, o grupo de educação do governo de transição debateu o tema, com alguns membros favoráveis à revogação e outros à revisão, mantendo princípios-chave da reforma.

Não houve consenso, exceto em reconhecer sérios problemas e a necessidade de amplo diálogo para embasar um plano de ajustes. É isto que o MEC, acertadamente, está realizando via consulta pública.

Alunos na biclioteca Alcyr Porchat do colégio Liceu Pasteur, na Vila Mariana, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

A reforma possui elementos a serem preservados, mas também lacunas e inconsistências. Debatê-la e corrigir rumos é fundamental, mas podemos ir além e construir, a partir do MEC e em articulação com a sociedade e entes federados, uma nova política nacional para o ensino médio.

Essa nova proposta precisa atualizar diferentes dimensões das políticas educacionais, enfrentar desafios ainda não superados e se articular com outras ações setoriais para juventudes oferecendo, em prazo factível, educação de qualidade para todos —em linha com as profundas e aceleradas mudanças da sociedade e do mundo do trabalho.

O ensino médio passou a ser obrigatório somente em 2009 no Brasil, sendo requisito de acesso ao superior e de conclusão da educação básica. Qualquer legislação, portanto, deve lidar com essas duas funções.

E aqui está uma das limitações iniciais da reforma: ela não prevê mudança nos períodos introdutórios dos cursos superiores nem adaptações do Enem, apesar de criar itinerários formativos por áreas do conhecimento (quatro propedêuticas e uma técnico-profissionalizante) para escolha dos estudantes.

Indicadores de evasão e aprendizagem revelam que, apesar de avanços significativos em matrículas, o ensino médio brasileiro é ainda marcado por profundas desigualdades. Estamos muito atrasados na comparação com países desenvolvidos e mesmo com alguns vizinhos. Se mantivermos a taxa de crescimento de 2012 a 2019, levará 75 anos para alcançarmos os 90% de jovens de 17 anos matriculados no médio ou superior, patamar da OCDE antes da pandemia.

Diante desses e outros desafios, uma política nacional para o ensino médio deveria abordar alguns elementos-chave, dialogando também, mas não somente, com temas do debate sobre a reforma.

Em termos curriculares, a busca de maior flexibilidade, presente na reforma, deve ser preservada. Sistemas educacionais de alto desempenho no mundo se estruturam em torno de um conjunto de disciplinas obrigatórias e outro de optativas, elegíveis ou áreas multidisciplinares de aprofundamento.

Em geral, há três aspectos cruciais: definição estratégica e normativa sobre os conteúdos obrigatórios, quais e quantos são aqueles que podem ser escolhidos pelos alunos e forte imbricação entre ensino médio e técnico/profissional.

Esses aspectos devem ser preservados na reforma, mas não foram bem conceituados, têm sido mal estruturados e não temos feito os investimentos necessários para operacionalizá-los. Revogar ou revisar é menos importante do que assegurar que tudo isso seja feito —gradual e sequencialmente.

Nas dimensões curricular e pedagógica, precisaremos definir as disciplinas obrigatórias, considerando o passado (sem a amarra de 13 disciplinas obrigatórias) e o futuro —quais ensinamentos serão desenvolvidos em abordagens multidisciplinares, como educação cidadã, pensamento computacional ou pensamento crítico?

Nossos jovens do ensino médio não têm conseguido alcançar níveis adequados de proficiência em língua portuguesa e matemática, e tampouco logram desenvolver talentos exigidos pela sociedade: os soft skills ou habilidades socioemocionais.

E, claro, não podemos nos esquecer do desenvolvimento integral com preparo para o exercício pleno da cidadania. Uma política nacional para o ensino médio precisa aliar decisões da sociedade (disciplinas obrigatórias) às dos jovens (áreas de aprofundamento). É complexo e custoso, mas efetivo.

A atual desregulação absoluta na criação e oferta dos itinerários formativos precisa ser suplantada, pois resulta em mais desigualdade. Não podemos substituir a rigidez do modelo único (pré-reforma) por uma flexibilização igualmente precária. Um sinal positivo do debate atual é certo consenso na expansão da formação geral básica para pelo menos 2.100 ou 2.400 horas ao longo de três anos (hoje, há um teto de 1.800 na lei).

Contudo, pouco se discutiu quais disciplinas e áreas de aprofundamento serão mantidas e em quais proporções da carga horária. Qualquer decisão de revisão nesse sentido requer diálogo franco com todos os atores e atenção às condições infraestruturais das escolas, às capacidades estatais das redes estaduais e aos contratos de trabalho dos profissionais da educação.

Avançamos em garantir o ensino técnico, de cunho vocacional e profissionalizante, na oferta do ensino médio regular (3.000 horas totais em três anos). Mas será possível integrá-lo de forma plena numa carga de 600 ou 800 horas? Para todos os cursos? É provável que não.

Se assim for, melhor prever variações nessa integração do que adotar um modelo único que fragilize o técnico integrado ao médio, distanciando as escolas de ensino médio regulares daquelas de tempo integral ou daquelas de educação profissional e tecnológica. Se não atentarmos a isso, o risco de uma oferta precarizada é real.

A expansão do ensino integral contribui decisivamente para resolver esse problema, mas, mesmo em formato de cinco horas diárias, é necessário pensar em alternativas.

A exemplo do que precisa acontecer com o ensino superior, são essenciais o diálogo e a parceria com entidades de formação profissionalizante pós-médio (institutos federais e estaduais, sistema S etc.), de modo que a experiência no médio seja mais um incentivo para que o jovem continue sua formação, ampliando as chances de ingresso mais qualificado no mercado de trabalho ou mesmo no ensino superior.

Seja qual for o caminho, precisaremos desenvolver e implementar estratégias massivas de apoio e formação dos docentes visando prepará-los a lecionar as disciplinas obrigatórias e as oferecidas nas áreas de aprofundamento.

Uma política dessa natureza se distinguiria da concepção e prática da atual reforma, que mal conceituou seus itinerários formativos e não ofereceu as condições para que fossem implementados: infraestrutura, materiais didáticos, formação docente, instrumental pedagógico etc.

Essas condições precisam ser criadas a partir de um plano de implementação que atinja gradualmente todas as regiões, iniciando por estados, municípios, escolas e estudantes mais vulneráveis.

Outra dimensão crucial é a avaliação. Se no passado estivemos na fronteira das melhores práticas internacionais, há mais de uma década estagnamos. O Enem ainda não está adaptado à BNCC (Base Nacional Comum Curricular), sua matriz está defasada, assim como seu método de aplicação. Precisamos mudar, mas isso não significa fragmentá-lo em provas para o currículo geral e o optativo.

Basta cobrir a formação geral, como ocorre em quase todos os sistemas educativos de alto desempenho com esse tipo de exame. Urge também rediscutir as demais avaliações da educação básica, disseminando práticas de integração entre avaliações formativas e somativas, incorporando a identificação de habilidades sofisticadas, além de aquilatar competências socioemocionais críticas, como já faz o Pisa, da OCDE.

Essa agenda requer investimentos relevantes, pois depende de remuneração atrativa aos docentes, escolas com infraestrutura adequada, apoio à colaboração e ao desenvolvimento profissional constante, além de envolvimento de estudantes e educadores. Temos também, porém, de enfrentar a recorrente ineficiência nos sistemas de ensino e aumentar significativamente a efetividade da gestão pública.

A agenda solicita trabalhar estrategicamente com o Fundeb; implementar mecanismos de assistência estudantil no médio (bolsas permanência); conectividade que atenda as escolas em todo seu espaço com banda larga; incentivar parcerias entre escolas de maior e menor desempenho para disseminar boas práticas; reduzir desperdícios; realizar investimentos em assistência técnica do MEC e das redes estaduais, focalizadas nas escolas mais vulneráveis; desenvolver um monitoramento que corrija rotas com prontidão etc.

E isso em um cenário de crescimento acentuado da oferta da grade de tempo integral que garanta uma transição justa com a manutenção de escolas de 3.000 horas (5 horas dia), escolas noturnas e a a Educação de Jovens e Adultos.

Por fim, a equidade —de gênero, étnico-racial, socioeconômica, por condição de deficiência e por localização das escolas— deve ser vetor central. Tratar os desiguais como iguais é inconstitucional, injusto, anacrônico e improdutivo. Altas expectativas para todos estudantes —e não só para alguns— é vital para a transformação educacional que nos leve à fronteira da sociedade do conhecimento.

Conceber essa proposta tendo a equidade como elemento estruturador e assegurar que sua implementação mantenha essa característica resultará em uma política exitosa, justa e com ganhos para todos, não só para os mais vulneráveis.

O desafio é criar condições para um ensino público de elevada qualidade, com altas expectativas para todos, que alie excelência e equidade como base do projeto educacional.

Uma nota final: precisaremos de tempo para chegar com essas estratégias e recursos a todas as escolas e todos os estudantes. O sentido de urgência não se confunde com improviso e falta de prioridade.

Ao contrário, requer sobriedade, planejamento, monitoramento e disposição contínua a reconhecer falhas e corrigir rotas. Garantir educação de qualidade para todos solicita acuidade na projeção do futuro, aliando pragmatismo, responsabilidade com a coisa pública e utopia transformadora.

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