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Renato Pereira

Lula é o único capaz de disputar com Bolsonaro os desiludidos com o sistema

Negacionismo virou arma de insubordinação contra elite e deve moldar eleição de 2022

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Renato Pereira

Antropólogo e estrategista político

[RESUMO] Fake news, negacionismo e teorias da conspiração empoderam os não instruídos, que não conseguem obter as credenciais do saber especializado. Essa inversão de papéis é revolucionária, sustenta autor, e Lula é o político mais habilitado a oferecer em 2022 uma alternativa à multidão de eleitores cansada de se sentir humilhada.

O carro deslizava pela BR-116 quando Gilberto, motoboy de Governador Valadares fazendo bico como motorista, me perguntou animado: "Mas e aí, quem está por trás dessa epidemia?".

E, sem esperar qualquer resposta, emendou: "O Bill Gates. Ele inventou esse vírus para faturar com as vacinas e deixar todo o mundo na mão dele".

Gilberto tinha uma versão alternativa para a teoria do “vírus chinês”. Você provavelmente já soube de alguém que desconfia da vacina, ouviu falar de terraplanismo e talvez tenha se chocado com a imagem de um grandalhão de cara pintada ornada de chifres liderando a invasão ao Congresso americano.

Teorias conspiratórias, negacionismo e fake news conquistaram o debate público e motivam reações indignadas de quem se imagina educado, habitante de um planeta onde a produção de saber válido vem da academia e em que a ciência tem a palavra final.

Mas o que elas têm em comum e por que sinalizam que as próximas eleições presidenciais serão definidas em seus termos? A polarização política incorpora ideias e valores fora de época por oportunismo ou elas são a reação lógica a preconceitos sutis? Existe espaço para uma terceira via razoável no Brasil?

Há algo notável em uma paisagem carregada de símbolos estranhos e não é a sua falsidade. A novidade incômoda está a um palmo do nosso nariz, mas não a vemos. Quando o Gilberto me fala do Bill Gates, interessa menos se ele está errado e mais como ele se sente ao dizer isso. Gilberto sabe de algo que eu não sei, como bem notou Yuval Harari ao tratar das teorias conspiratórias.

Isso, contudo, ainda não é o principal. Ele sabe de algo que eu não sei, quando, até outro dia, era eu que sabia das coisas. Eu fui à universidade, ele não. Agora ele me provoca para tirar um sarro da minha ignorância e ressaltar a sua esperteza. Gilberto andava por baixo na sociedade do conhecimento. Agora anda por cima.

Essa inversão de papéis é revolucionária.

Conflitos políticos se manifestam de forma variada ao longo do tempo. Habitualmente pensamos em categorias ideológicas de esquerda e direita para reconhecê-los. Mesmo que temas mais recentes como raça, gênero e drogas embaralhem as filiações políticas, o debate ainda soa familiar. Podemos ter pontos de vista opostos sobre esses assuntos, mas falamos a mesma linguagem ao discuti-los.

Quando, porém, o tema-chave do discurso político passa a ser o que é verdade e o que é mentira, lidamos com algo inédito. Já não reconhecemos mais uns aos outros. Nem sequer temos certeza de em que mundo vivemos.

Bruno Latour investiga com precisão essa sensação de perplexidade, mas aqui o que interessa é apontar a importância crescente da oposição entre a elite instruída e os não instruídos e como a expansão de fake news, teorias da conspiração e atitudes negacionistas empodera esses últimos, aqueles a quem, com ironia, Jessé de Souza chama de ralé.

A realidade em que nos reconhecemos é definida por teorias científicas, inovações tecnológicas e mudança constante. Nela, o saber especializado conquistou espaço e se tornou exclusivo. Frequentar os melhores cursos e obter as mais difíceis credenciais é um passaporte caro e raro. Abre as portas para a existência cosmopolita da elite. Chegar lá, mesmo para quem nasce nos Estados Unidos ou na União Europeia, é uma epopeia improvável. Cada vez mais improvável.

Então, essa era fascinante de transformações tecnológicas passou a ser governada por uma nata intelectual que se afasta. E, para piorar as coisas, ela não apenas fala difícil, mas em geral acredita que chegou lá por esforço próprio e que justiça é, coincidentemente, sinônimo de mérito. Se eu cheguei lá, é porque me esforcei e consegui. Logo, se você não conseguiu é problema seu.

A arrogância meritocrática, investigada por Michael Sandel, é a expressão dessa contradição dominante. Levou muito tempo para que reconhecêssemos haver discriminação racial no Brasil, mas quanto tempo ainda levará para notarmos o preconceito do mérito?

A ideia de que é natural as melhores posições serem ocupadas por doutores nada tem de natural, e a promessa de que se você tentar consegue não por acaso se multiplica em livros de autoajuda e nas palavras de líderes políticos moderados. Não passa de fake news. É praticamente impossível conseguir chegar lá e quem o faz tende a manter o clube seleto.

Não sei quanto a você, mas eu prefiro viver uma existência em que tenho a sensação de saber das coisas e de ter as rédeas da vida. O Gilberto claramente também. Porém, até outro dia, o que ele podia fazer além de abaixar a cabeça e ouvir o que eu tinha a dizer? É difícil ser relevante sem ter as credenciais do saber ou talento para influenciador digital.

Tendemos a ignorar uma paisagem na qual as universidades despontam como irritantes símbolos de privilégio e empresas de comunicação como templos da manipulação, mas essa é a paisagem do mundo. Não daquele em que você vive, provavelmente, mas o mundo invertido onde tudo se encaixa para o Gilberto e para boa parte daqueles que apoiam Jair Bolsonaro, Donald Trump e Marine Le Pen.

O que é verdade em um é mentira no outro. O que é justo em um é injusto no outro. O que é democracia em um é tirania no outro. O ato de desacreditar o que é apresentado como fato objetivo pela elite do saber é uma insubmissão que transforma figurantes em protagonistas.

Não digo que essa perspectiva é exclusiva de pessoas de baixa ou média instrução —é compartilhada por cidadãos com diploma universitário em profissões ilustres. A qualquer um que se sinta deslocado pelos usos e costumes reinantes, o mundo invertido oferece abrigo. Mas entre os bem-diplomados só uma ruidosa minoria pediu asilo.

Há quem argumente que tudo isso é produto da hiperconexão das redes sociais. Um dos maiores impactos das novas plataformas de comunicação seria estimular a reverberação de notícias falsas, argumentos conspiratórios e facilitar a articulação de grupos radicais. Não há dúvida, mas temos aí uma relação de causalidade ou uma correlação? As plataformas digitais não inventaram o fosso entre doutores e ralé. Ele é real, não virtual.

Se elas servem a alguma forma de insurreição, servem também ao poder estabelecido. Shoshana Zuboff demonstra como ferramentas de busca, redes sociais e aplicativos gratuitos chegam a dimensões da intimidade humana nunca antes atingidas. Conhecer desejos e preferências pessoais em detalhe permite condicionar nosso comportamento e torná-lo previsível a anunciantes e governos.

A tendência a considerar o negacionismo um subproduto das redes sociais ou a reduzi-lo a uma coleção exótica de absurdos deixa escapar o fundamental. Ele articula uma visão alternativa, mas coerente, traz para a arena política multidões esquecidas, empodera quem não tinha voz e é um atalho para quem jamais teve caminho. Nas bordas de dois mundos que parecem invertidos e incapazes de se entender, acontece o conflito que define o nosso tempo.

Reconhecer a relevância dessa contradição é chave para se mover em um terreno conflagrado por temas como usar ou não máscara, fazer lockdown, adotar o chamado tratamento precoce ou acreditar no aquecimento global e na curvatura da Terra. Na raiz da luta entre símbolos está a distância entre a elite educada acostumada a dar as cartas do jogo e a massa de quem se espera só desejar participar dele. Quem cria as condições para a insurreição bárbara é a própria civilização do saber.

A influência marcante de pontos de vista religiosos no discurso político, particularmente aqueles do evangelho da prosperidade, pode então ser mais bem compreendida. A revanche de Deus, como bem definiu Gilles Kepel, se alimenta do desconforto crescente de pessoas que se sentiam irrelevantes.

No plano religioso, elas recebem a recompensa maior: mérito. Passam a valer alguma coisa, e contestar verdades laicas há muito estabelecidas torna-se uma missão que glorifica a Deus. A arrogância de quem extrai sua autoridade da ciência ou da religião é perfeitamente simétrica.

Thomas Piketty encontrou no crescente domínio das agremiações de centro-esquerda por quadros acadêmicos a razão de sua perda de representatividade. É de fato intrigante como, em meio a uma mobilização popular, mal conseguem ouvi-la. Ou pior: parecem estar em campo oposto.

Trump bate os democratas mudando o voto de trabalhadores fabris, deixando com Hillary 70% dos votos de pessoas com ensino superior. Biden só vira o jogo, e por pouco, por insistir em recuperar precisamente esses eleitores, com quem tinha uma longa relação. Na França dos coletes amarelos, é Marine Le Pen quem dialoga com o movimento.

No Brasil, desde a retomada das eleições diretas, o voto se organiza seguindo linhas de formação escolar. O segundo turno de disputas majoritárias opõe candidatos com fortalezas no topo ou na base da pirâmide educativa que cultivam agendas típicas de uma ou de outra. Esse critério explica melhor nossos resultados eleitorais do que a velha divisão entre esquerda e direita.

A descrença na democracia e a crise da representatividade política estão provavelmente relacionadas ao fato de que, em um país com 93% de não diplomados, só 8% dos governadores, 15% dos prefeitos das capitais e 19% do Congresso Nacional sejam compostos de não formados. Há quem acredite, no entanto, que essa é apenas a ordem natural das coisas.

Caminhoneiros, policiais e suboficiais das Forças Armadas formam a tropa de choque de um governo majoritariamente aprovado entre as camadas sem ensino superior —após ter vencido a eleição com apoio expressivo dos diplomados, vidrados no seu antipetismo total. A causa bolsonarista é visceralmente antielitista e converteu boa parte daqueles que se sentiam humilhados, deslocados ou invisíveis. Ela não só ameça a democracia, ameaça a ordem meritocrática.

É uma diferença e tanto, deixada de lado na obra de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, “Como as Democracias Morrem”, em que forças populistas são analisadas em processo de tomada do poder, sem que a tensão entre privilegiados e excluídos do saber credenciado seja notada.

Veja bem: não se trata de corroer as bases da democracia para substituí-la por um regime autoritário, como querem os autores. Trata-se de desafiar os fundamentos de uma hierarquia —da razão— sobre a qual repousa a ideia de democracia.

Essa é a essência do bolsonarismo e o que o distingue geneticamente do regime militar: a ditadura manteve intacta a arquitetura do saber. Valorizava a ciência tanto quanto seus inimigos, falava a língua comum. O bolsonarismo não.

É improvável que o capitão de uma causa em tal sintonia com o espírito de nosso tempo fique fora do segundo turno em 2022, e não parece plausível que algum personagem de fala rebuscada, um político esclarecido, lhe faça sombra.

Lula é o nome capaz de disputar a multidão de eleitores encantada pelo negacionismo e cansada de humilhação. É curioso que o único presidente brasileiro a não cursar uma universidade —um não doutor, portanto— seja a figura mais habilitada a proteger a elite educada dos ataques bolsonaristas e de oferecer uma alternativa à lógica do mundo invertido. Por sua origem, saber pragmático e linguagem, Lula, como Bolsonaro, parece um brasileiro como outro qualquer e não uma criatura privilegiada.

Essa é a credencial que conta na terra dos não credenciados.

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