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Gustavo Zeitel

Eucanaã Ferraz mostra, em 'Raio', que a poesia está no centro de tudo

Autor carioca promove um diálogo permanente com a música e as artes plásticas, experimentando também a poesia em prosa

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Gustavo Zeitel
Gustavo Zeitel

Repórter da Ilustrada, é formado em jornalismo pela PUC-Rio

[RESUMO] Um dos principais poetas brasileiros contemporâneos, Eucanaã Ferraz confirma a diversidade de seu projeto literário em seu novo livro, "Raio", que se distingue pela experimentação com as formas poéticas e pelo diálogo com a música, a arquitetura e as artes plásticas, compondo a ideia de que a poesia está no centro de todas as coisas.

A poesia de Eucanaã Ferraz pode estar em parte alguma. Por vezes, sua literatura depreende-se da realidade e inaugura mundos, poema a poema. Sua imaginação se alicerça no trabalho com a musicalidade e a plasticidade, elementos constitutivos das composições, que espelham um criador insaciável. Aos 62 anos, ele quer sempre mais: quer acumular as melodias, as mais cantáveis, as cores, as mais fortes, as palavras, sempre belas.

Um dos principais poetas de língua portuguesa da atualidade, Ferraz reúne, agora, essa riqueza fausta em seu mais novo livro, "Raio", que se distingue pela experimentação com as formas poéticas. Como na aurora do modernismo, o autor alonga os versos até encontrar os poemas em prosa. Ou, então, os versos amalgamam as frases, estabelecendo uma tensão entre os dois gêneros literários.

O poeta Eucanaã Ferraz, que lança o livro "Raio" (2023)
O poeta Eucanaã Ferraz, que lança o livro "Raio" (2023) - Alexandre Sant'anna/Divulgação

"Ninguém sabe que hotel é o hotel onde estou. Ninguém sabe a rua onde fica nem o país. Desliguei as frases fui embora deixei em branco o nome os documentos a hora. Ninguém sabe onde fica o quarto onde respiro sozinho isento dos radares", diz "Hóspede".

Nesse poema em prosa, o eu lírico adota uma postura incomum à produção contemporânea. No tempo presente, a vida cotidiana costuma ser a matéria-prima do poeta. Mas, em "Hóspede", o eu lírico recusa a realidade imediata e assume o poder de fundar mundos. Num país desconhecido por todos, cabe a ele determinar o funcionamento de uma linguagem. E é assim que o poeta hospeda a sua criatividade.

Essa fabulação, tão presente na obra do autor, que também escreveu para crianças, tem na prosa um destino conhecido, porque nela reside a ficção e seus personagens. Em "Sonho Americano", Jenny entra na cozinha e dá de cara com um urso. Já Bill morre, em silêncio, durante uma nevasca. A fabulação do autor de "Desassombro", de 2001, e "Cinemateca", de 2008, se revela, porém, irrestrita, aparecendo também nos versos da "Canção do Cavaleiro".

"Mandei selar meu cavalo/ feito de sombra e de vento/ exato para o deserto —/ se lá houvesse uma estrada/ que fosse dar no poema. [...] Mandei selar meu cavalo/ de barro de pau e corda/ frágil pequeno ridículo —esperançoso que um verso por ele se enternecesse/ Em branco e papel —mais nada— mandei selar meu cavalo/ na medida do silêncio/ com que esperar pelo tempo./ Meu cavalo não existe."

Em primeiro lugar, os substantivos que orbitam o poema —"cavalo" e "deserto", "sombra" e "vento"— não existem em lugar algum senão nele mesmo. A criação, portanto, não é uma correspondência da realidade imediata. O poema nasce e morre na mente do autor.

Com ecos trovadorescos, a forma canção se apresenta em estribilhos, na repetição do verso "mandei selar meu cavalo". Como em outros poemas de "Raio", os travessões explicativos provocam rupturas na realidade fabular —"esperançoso que um verso por ele se enternecesse"—, lembrando a natureza metalinguística do poema.

Tido como cavaleiro, o poeta e o seu trabalho são tratados com fina ironia pelo eu lírico. Todavia, o último verso —"meu cavalo não existe"— representa uma quebra no ritmo da canção, imprimindo gravidade às estrofes anteriores. De todo modo, a experimentação da poesia narrativa se dá, efetivamente, no poema "A Besta".

Ao modo de João Cabral de Melo Neto, o autor conta a história de um rapaz que, tendo perdido seu cavalo, monta no corpo da própria mãe para ir a um baile. Como vingança, a mãe amaldiçoa o filho, dizendo "hás de rodar pelo mundo/ sem ninguém por amizade/ deserto será teu pasto/ onde só vingue a catástrofe/ tudo em volta será peso/ mesmo o sol será de chumbo [...]".

A imagem de um sol de chumbo atordoa, pois representa a mãe quimérica, amorosa e castradora. Nascido em Paracambi, na Baixada Fluminense, Ferraz sempre olhou com devoção para a própria mãe. Seu amor desmedido lhe conferiu uma sensibilidade feminina. Ele gosta de moda e de artes plásticas e até pensou em ser arquiteto.

Preferiu, no entanto, seguir a sua vocação primeira, a de ser um criador, um poeta, na acepção da palavra grega. A vibração de cores e de sons dos poemas de "Raio" se prolonga até a personalidade do autor. Para Ferraz, todas as palavras são superlativas. Trabalhando intensivamente, o poeta inventa moda: dá aulas na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), publica antologias, ensaios, livros infantis e organiza exposições.

Sobretudo, Ferraz atua como um divulgador da poesia moderna brasileira. Não por acaso, seu projeto literário ecoa as obras de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Vinicius de Moraes. Em 2012, ele venceu o prêmio Oceanos com "Sentimental" e, nove anos depois, ganhou o prêmio Oeiras por "Retratos com Erro".

Na capital carioca, vive rodeado pela amizade de poetas do papel e da canção, como Antonio Cicero e Adriana Calcanhotto. Esse dândi contemporâneo não cessa de escrever poemas para seu grande amor, como em "Graça Você", presente em "Raio": "Vestir o seu vestido nas orelhas como se todas as belezas me coubessem. [...] Amar nos deu bem mais do que pedimos. Fazer das suas meias os meus brincos e nunca mais ser eu".

O poeta Eucanaã Ferraz e a cantora e compositora Adriana Calcanhotto, durante as gravações do programa 'Poesia em Movimento' - Divulgação

Em "Raio", a fabulação convive com as características da lírica moderna, em especial a relação do poeta e a cidade. Citemos, pois, as duas incursões do autor a São Paulo. De início, a informação biográfica de que Ferraz é carioca lhe confere um olhar estrangeiro e espantado diante do "Copan".

"Sonhei assim: Copan sem mais —vazio/ de gentes de desejos e do tempo/ com seu destino inteiro retornado/ ao corte exato do que foi projeto/ aos termos claros de sua matemática/ às linhas rigorosas do esqueleto. Princípio e fim de seu próprio delírio/ cismei o Copan assim: Copan Copan/ perfeitamente inútil como um círculo/ traçado em aço à roda de si mesmo/ (o rosto em onda que nunca se quebra/ é o mar e o mar dobrando-se no espelho)."

Aqui, o autor se filia novamente a uma temática cabralina, o interesse pela arquitetura, com seu rigor formal, de cortes exatos e ângulos curvos. O eu lírico opera um processo de subtração da paisagem até encontrar a estrutura do prédio. O supérfluo — "gentes de desejos e do tempo" — não cabe no poema. A subtração significa a busca pelo projeto do edifício e, em um segundo momento, pelo edifício em construção.

Ao eu lírico, interessa acompanhar o prédio se fazendo, o que se traduz no emprego do gerúndio no verso "é o mar e o mar dobrando-se no espelho". A imagem do mar, a superfície envidraçada do Copan, cria uma antítese se considerada a realidade circundante à edificação: São Paulo de asfalto, pedra e concreto armado. Já eufonicamente, impressiona a repetição "Copan Copan". Primeiro, porque sintetiza o desejo pela subtração. Depois, porque o acento na sílaba tônica "pan" soa como a quilha de um barco batendo nesse mar, o vidro do Copan.

Na segunda incursão a São Paulo, o eu lírico elege o humor como resolução da poesia em "Uma Volta". "Vão levar os seus cordões. É a gangue da correntinha. Vão levar os seus colares. É a gangue da correntinha. Vão levar os seus pudores. Vão levar os seus relógios os seus pulsos e as suas pílulas. Vão levar as suas medalhas e condecorações. É a gangue da correntinha. Vão levar tudo que passe por cá na praça da Sé."

De imediato, imagina-se o poeta no centro de São Paulo, região em que jovens, pilotando suas bicicletas, roubam os pertences dos pedestres desavisados. A descrição da cena ironiza o estado de insegurança do local, fazendo graça com a tragédia. O trabalho rítmico empreendido pelo autor alicerça a comicidade do poema. Os pontos finais abreviam as frases e recriam, sonoramente, as batidas do funk.

Do mesmo modo, o diminutivo em "correntinha" denota outro aceno à música que brota das periferias. Já a exclusão da vírgula entre os substantivos —"os seus relógios os seus pulsos e as suas pílulas"— cria um efeito de acumulação material. Afinal, a gangue da correntinha não perdoa, nem mesmo o pulso de sua vítima.

Para transitar entre a poesia e a prosa, Ferraz emprega um amplo espectro de procedimentos formais que suplanta a diversidade de temas de seu projeto literário. Em "Raio", o poeta alcança um de seus ideais: o permanente diálogo com a música, a arquitetura e as artes plásticas ocorre a partir do domínio da arte poética. Em seu novo livro, Ferraz mostra que toda a arte mora no poema e que a poesia está no centro de tudo.

Raio

  • Preço R$ 69,90 (96 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria Eucanaã Ferraz
  • Editora Companhia das Letras
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