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Rubens Figueiredo

"Demônios" de Púchkin assombram leitores há 200 anos

Leia tradução de Rubens Figueiredo para intrigante poema russo

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Rubens Figueiredo

Autor do romance ‘Passageiro do Fim do dia’ (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio são Paulo de Literatura e tradutor dos clássicos russos ‘guerra e Paz’ e ‘Anna Kariênina’, de tolstói, ‘Crime e Castigo’, de dostoiévski, e ‘Evguiêni oniéguin’, de Aleksandr Púchkin

[RESUMO] Escrito em 1830, em período de furor produtivo do russo Aleksandr Púchkin, o poema "Os Demônios" instiga leitores e estimula interpretações díspares —religiosas, biográficas, políticas, sentimentais, sanitárias— desde então. No texto a seguir, Rubens Figueiredo apresenta sua traduções do poema e comenta sua longevidade histórica.

O poema "Os Demônios" foi escrito em setembro de 1830, no episódio conhecido como "Outono de Bóldino". A expressão é célebre na cultura russa e merece uma explicação.

Bóldino é o nome da propriedade rural que Aleksandr Púchkin (1799-1837) recebera do pai de presente naquele ano, pois estava prestes a se casar e precisava pôr em ordem sua situação financeira. Ao chegar lá, no entanto, veio a notícia de que uma epidemia de cólera se alastrara por toda a região, e o poeta se viu obrigado a manter-se em quarentena em Bóldino por quase quatro meses.

Nesse período, escreveu uma quantidade impressionante de obras, desde poemas líricos, como "Os Demônios", até peças de teatro e contos, além dos capítulos finais do romance em versos "Evguiêni Oniéguin", sua obra mais importante, à qual dedicou quase dez anos. Por isso, a expressão "outono de Bóldino", para os russos, designa qualquer período de extraordinária produtividade intelectual e criativa.

Retrato do escritor russo Púchkin realizado em 1877 por Ivan Aivazóvski
Retrato do escritor russo Aleksandr Púchkin realizado em 1877 por Ivan Aivazóvski - Reprodução

A exemplo de outras obras de Púchkin, "Os Demônios" admite, e até estimula, interpretações díspares. Se "Evguiêni Oniéguin" é tido como um romance aberto, sem fim, um "livro livre", como o definiu o próprio autor, o poema "Os Demônios", ao longo do tempo, ou melhor, ao longo das aceleradas transformações históricas na Rússia, chamou para si, e hospedou confortavelmente, conteúdos que, em certos casos, nem poderiam estar lá, naquele mês de setembro de 1830.

Mas não importa, pois essa é justamente a chave da longevidade histórica da poesia de Púchkin. Envolvidos pelo poema, os leitores sentem-se instigados a perguntar: quem são os demônios?

Claro, eles podem ser os demônios propriamente ditos, numa leitura mística, em que a nota sobrenatural, ou moral, prevaleça. E assim foi e é lido por alguns. Embora Púchkin fosse ateu, ele vivia, afinal, em uma sociedade profundamente religiosa.

Outros preferiram ver nos demônios as sombras do duro reinado de Nicolau 1º, época marcada pela revolta dos decabristas (ou dezembristas), militares e intelectuais que, em dezembro de 1825, tentaram derrubar pelo menos o regime do trabalho servil. De fato, muitos amigos de Púchkin participaram da insurreição sufocada e pagaram caro por isso.

Outros leitores sugeriram ainda que os demônios representavam a nobreza russa, classe ociosa, exploradora, um penoso obstáculo na "estrada" do progresso nacional.

Em 1870, Dostoiévski transcreveu um trecho do poema na epígrafe do seu romance homônimo, ao lado de uma passagem mística do Evangelho, insinuando, sem nenhuma sutileza, que os demônios, além de representarem os seres de malignidade sobrenatural, andavam encarnados nos niilistas, a nova geração de revolucionários, herdeiros dos decabristas.

E houve ainda quem lesse o poema numa clave biográfica estrita e afirmasse que os demônios eram os familiares da futura esposa de Púchkin, que na época criavam intrincados empecilhos para o casamento.

Outros chegaram mesmo à conclusão de que os demônios eram a epidemia de cólera, que impedia Púchkin de viajar. Dessa forma, a questão perdura em aberto, destino para o qual "Os Demônios", afinal, foi concebido. Passando de mão em mão, o poema recebe da história muito mais do que aquilo que o tempo retira dele.

Para o leitor brasileiro atual, é proveitoso ressaltar que o verso do poema segue um padrão métrico inspirado nas baladas ou canções populares russas (o chamado tetrâmetro trocaico, ou seja, um verso de quatro pés, formados de uma sílaba longa e uma breve).

A intenção musical subjacente aos versos se manifesta na presença marcante do ritmo e das repetições de palavras, expressões e fonemas. O esforço de incorporar elementos da matriz popular russa ao curso geral da literatura contemporânea, predominantemente europeia, denota a importância da constituição de uma literatura nacional moderna naquela fase da história russa.

Por último, dois pontos do poema precisam ser esclarecidos. Por motivo de segurança e de tradição, os trenós e as carruagens, nas estradas, costumavam trazer presas perto da boleia uma sineta tilintante —um dos personagens com voz ativa em "Os Demônios".

Além disso, na terceira estrofe, surge a palavra "versta", antiga unidade de medida russa, equivalente a 1,067 km. A expressão "marco de verstas" se refere ao fato de que, à margem das estradas, havia pequenos postes para assinalar cada versta percorrida.

Ao mencionar a rapidez com que esses marcos surgem e desaparecem, o verso quer aludir à velocidade do trenó. Esta imagem de Púchkin é célebre e fez fortuna a partir da estrofe 35 do sétimo capítulo do romance em versos "Evguiêni Oniéguin": "Nossos automedontes são ágeis, / Nossas troicas, firmes, incansáveis. / Os marcos das verstas, para os passageiros, / Parecem uma cerca, de tão ligeiros.".

Aqui, a velocidade da carruagem faz com que a distância de uma versta se torne equivalente ao intervalo de dois mourões de uma cerca. O sentido de fundo da imagem reside na relatividade do ponto de vista do observador em face do mundo objetivo.

Lição que nos traz de volta à hospitalidade do poema "Os Demônios" para acolher interpretações diversas, frutos da mera variedade de pontos de vista, mas também da diferença entre o que fica e o que passa: o que conseguem ver os olhos de quem viaja no trenó e o que veem os olhos do demônio, que "brilham na bruma".

Os Demônios (1830)
de Aleksandr Púchkin

Nuvens voam, nuvens rolam;
Invisível Lua ao léu,
Luz que sobre a neve evola;
Turva noite, turvo céu.
Rodo, rodo, em campo aberto,
E a sineta, tim-tim-tim
Medo, medo: em rumo incerto,
Num vale estranho e sem fim!

"Vai, cocheiro, mais depressa!…"
"Não posso, não enxergo nada,
E os cavalos já tropeçam,
A nevasca encobre a estrada;
Não se veem sinais nem rastros.
Perdidos! Pobres de nós!
Mãos de um demônio nefasto
Tomam as rédeas do trenó.

Lá está ele, louca imagem!
Zomba de mim, faz caretas;
Leva um cavalo selvagem
Rumo ao abismo, o capeta!
Ou, como um marco de verstas,
Surge à minha frente e passa;
Ou, como um fogo, essa besta
Brilha e some na fumaça."

Nuvens voam, nuvens rolam;
Invisível Lua ao léu,
Luz que sobre a neve evola;
Turva noite, turvo céu.
Súbito, a sineta cala:
Param os cavalos cansados.
"Que é? Um lobo, uma vala?
O que os deixou assustados?"

Uiva a neve, o vento chora;
Bufam os cavalos, espumam;
Lá está ele! Longe, agora,
Seus olhos brilham na bruma.
De novo os cavalos voam,
E a sineta, tim-tim-tim
Vejo: almas se amontoam
Pelos vales num festim.

Bando infindo, bando horrendo,
Na turva luz do luar,
Como folhas em novembro,
Giram os demônios no ar…
São tantos! Para onde vão,
Cantando assim, os demônios?
Sepultar um deus pagão?
Dar a bruxa em matrimônio?

Nuvens voam, nuvens rolam;
Invisível Lua ao léu,
Luz que sobre a neve evola;
Turva noite, turvo céu.
Os demônios ganham altura,
Enxames, em turbilhão,
Seus ganidos de amargura
Rasgam fundo o coração…

Tradução de Rubens Figueiredo

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