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Fabio Giambiagi

Como o Milei 2.0 poderá se comportar na Presidência

Distorções de preços na economia, inflação, câmbio e Congresso são enormes desafios

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[RESUMO] Candidato com discurso radical contra o sistema político, Milei já mudou um pouco ao se associar a Mauricio Macri e Patricia Bullrich, adotando alguma moderação. Sem base no Congresso, em um país com uma economia profundamente desajustada, preços subsidiados, inflação nas alturas e câmbio caótico, o caminho para a governabilidade mostra-se muito complicado mesmo para a versão 2.0 do eleito.

A Argentina mexeu com grandes emoções na política brasileira nos últimos meses. Por um lado, pela associação natural entre o "fenômeno Milei" e o nosso bolsonarismo. Por outro, pelos vínculos históricos entre o PT e o peronismo. Decantadas as primeiras emoções, caindo as fichas, chega o momento de analisar quais são as perspectivas para o país vizinho.

Javier Milei celebra vitória na eleição presidencial argentina, em Buenos Aires - Xinhua/Luciano González Torres

Qual Milei?

Para que o leitor tenha em mente o filme em curso, é preciso retornar às origens. Javier Milei é, não resta dúvida, um case psicanalítico. Rapaz durante anos abusado fisicamente pelo pai, ridicularizado na escola, onde recebeu o apelido de "el loco", tornou-se um dos tantos casos de crianças infelizes mundo afora.

Muitos anos depois, já adulto e economista participante de debates econômicos travados nos YouTubes da vida, ele criou um personagem fantástico do ponto de vista da audiência: um sujeito com jeito jovem e ar de roqueiro maluco que, em vez de falar as chatices que nós economistas costumamos falar, sobre coisas desagradáveis e de um jeito entediante, ia aos programas de TV xingar meio mundo, aos gritos e numa linguagem que qualquer um poderia entender.

O resultado foi que programas normalmente estacionados em um ou dois pontos de audiência disparavam rapidamente para cinco ou seis. A web está repleta desses episódios e não há como vê-los sem chegar à conclusão de que a persona em questão tem algum grau de desequilíbrio emocional. O fato é que esse personagem de "western spaghetti" tomou a decisão de ingressar na arena e, praticamente sozinho, destruiu um sistema político com décadas de história.

Ele vinha se firmando nesse papel, que lhe garantiu um piso de enorme peso nas PASO —as primárias do curioso sistema político argentino que, na prática, é como uma disputa eleitoral em três turnos—, mas claramente enfrentava obstáculos para dar o "pulo do gato" e conquistar os almejados 50% mais um dos votos no segundo turno.

Até então, Milei via-se cercado pelos incondicionais, uma fauna exótica composta por economistas arqui-ortodoxos (diante dos quais, brincando, costumo dizer que nosso conhecido Paulo Guedes parece um social-democrata sueco), artistas amalucados, youtubers ávidos por aparecer e um Exército de Brancaleone animado, que garantia muita diversão, mas escassas chances de governabilidade. Era, digamos, o "Milei 1.0".

Quando, no dia seguinte ao primeiro turno, após repetir o desempenho das primárias, mas ficar atrás do adversário peronista Sergio Massa, o ex-presidente Mauricio Macri toma a iniciativa de ir ao encontro dele, levando a terceira colocada, Patricia Bullrich, a tiracolo, numa espécie de "golpe de Estado", surge então o "Milei 2.0".

De quem se trata? De uma voz com traços de certa moderação comportamental, que se desdiz das atrocidades ditas acerca da sua antiga adversária e agora parceira Bullrich, que se desfaz em mesuras para um Macri a quem nos seus tempos de popstar da TV chamara das piores coisas e que deixa no freezer ideias mais radicais, como a dolarização da economia.

Embora o que foi acertado no que a imprensa denominou de "Pacto de Acassuso" (pelo endereço do Macri, onde se deu o conclave Macri-Bullrich-Milei, com o detalhe de que quem convocava era o primeiro) seja motivo de controvérsia, um lado (Milei) saiu dizendo que o apoio fora incondicional, e o outro (Macri-Bullrich), que havia coisas que eles apoiariam em eventual governo Milei, e outras não.

A interpretação acerca da verdade é uma questão de narrativa...

A contradição intrínseca

Lá na Argentina, como no Brasil, o centro foi dinamitado. A famosa terceira via que tantos procuraram aqui entre 2019 e 2022, como equidistância entre o bolsonarismo e o petismo, também foi buscada, sem sucesso, na tentativa de escapar dos extremos do kirchnerismo e do macrismo.

Surgiu, curiosamente, uma terceira onda, vitoriosa, mas pelo lado da direita. Todas as tentativas de políticos de centro de se imiscuírem entre aquelas duas grandes forças políticas fracassaram. Foram tentativas que revelaram um pequeno defeito: não tinham voto.

Não obstante, nesse aquário dos "nem nem", há vários políticos com pouco voto, mas muita respeitabilidade, afeitos à arte da negociação. Como o poder sempre atrai com seu mel sedutor, não seria difícil a Milei fisgar três ou quatro personagens habituados às negociações políticas que pudessem facilitar o seu trânsito junto ao Congresso, na difícil tarefa de conseguir passar uma agenda legislativa árdua, contando com apenas 38 deputados numa casa de 257.

O resultado desse périplo, para passar de um outsider que se apresentava como a antipolítica (o único que não teria o "culo sucio" para "destruir a casta política") a um presidente que terá que governar justamente com a casta, seria uma pequena guinada estratégica de 180 graus.

Resta ver como isso poderá ser recebido pelos seus "constituencies" originais. Seria algo assim como começar cantando "quem gritar pega ladrão..." em 2018 e dois anos depois se aliar àquelas mesmas forças políticas anteriormente tão execradas. Há antecedentes...

A imprensa brasileira, nos gráficos posteriores às eleições, tem enfatizado os números que mostram a composição da Câmara com o peronismo com 108 votos e a oposição atual de Juntos por el Cambio (que elegera Macri em 2015) com 98 votos. Somados com os 38 de Milei, chegariam a 136, o que seria suficiente para uma maioria na Câmara de Deputados.

Há dois detalhes fundamentais, porém. O primeiro é que o Juntos por el Cambio está fragmentado em pelo menos cinco grupos, e por ora a maioria desses 98 votos são contra Milei. Estima-se que o grupo de Macri tenha apenas 35 dos votos, o que, somado aos 38 de Milei e a 12 deputados de partidos provinciais que poderiam facilmente aderir a eles, chegaria no máximo a 85, com o que Milei, em matéria de governabilidade, como se diz em Buenos Aires, "no llega ni a la esquina".

O segundo detalhe é que no Senado o quadro é ainda mais hostil ao futuro oficialismo, porque o peronismo se encontra muito próximo da maioria absoluta.

Diante disso, Milei tem três opções. A primeira é seguir o que ele disse na campanha que faria, ou seja, em caso de derrota legislativa, convocar o povo para fazer passeatas para apoiá-lo, algo que exalaria odores de verdadeiro "chavismo", o que não parece uma estratégia recomendável.

A segunda é tentar governar por decreto, algo que imagino, como leigo em questões jurídicas, que encontraria sérias limitações práticas no dia a dia.

A terceira é convocar alguns hábeis negociadores, gente velha conhecida da política, para fazer o papel de "dobradiça" no relacionamento entre o Executivo e o Congresso. Há bons candidatos para essa função, a começar pelo quarto colocado nas eleições, o governador de Córdoba, o "Gringo" Schiaretti, mas restam dúvidas se seriam chamados a desempenhar esse papel ou não.

A outra grande escolha: quem vai dar as cartas na Economia?

Da mesma forma que definir quem vai auxiliá-lo para dar governabilidade será a chave para entender os contornos do novo governo, igualmente importante é saber quem será o ministro da Economia. Isso não apenas pela importância do cargo em si, mas também porque poderá dar sinais acerca do que esperar nos próximos meses.

Milei, durante a campanha, se cercou de uma turma de "dolarizadores", sobre os quais nunca ficou claro, até um mês atrás, em caso de vitória, quem seria o seu ministro. Já a "turma do Macri" chega com dois ou três candidatos a tiracolo, todos eles já testados na administração pública, prudentes e racionais, sem qualquer traço de fanatismo ideológico, e nenhum deles, ao que se saiba, simpáticos à tese da dolarização. Seriam, provavelmente, propensos a algum arranjo macroeconômico mais tradicional.

Será crucial, portanto, conhecer o nome do ministro, porque isso definirá se a dolarização é um projeto para ser a) implementado a curto prazo; b) executado como uma sequência de passos sem que se saiba muito bem os detalhes, o destino nem o timing do processo; ou c) adiado para um futuro distante e incerto, sem compromisso, ao ritmo de "quizás, quizás, quizás"...

Antes da bonança vem a tempestade

Dependendo do mês e da intensidade de uso de ar condicionado, minha conta de luz mensal é da ordem de R$ 300 a R$ 400. Se eu morasse na Argentina, no rico bairro de Palermo, com o mesmo consumo, em 2023 teria pago uma conta mensal equivalente a R$ 30 a R$ 40.

Isso dá uma ideia da distorção dos preços relativos na Argentina (atenção, leitor: eu não inventei os números: eles correspondem à verdade dos fatos). Essa teia infernal de subsídios, alguns justificados e outros absurdos, está por trás do déficit público argentino há mais de 15 anos.

Macri tentou colocar um ponto final nisso no seu governo de 2016-2019 —e essa é uma das explicações para o seu fracasso. Sabemos por nossa experiência própria no Brasil que promover um "tarifaço" é sempre impopular.

Imagine o leitor, então, o que significa ter de ajustar preços relativos quando a tarifa cobre apenas 10% do valor justo. Mesmo que ela dobre —o que, convenhamos, estatisticamente é brutal—, haverá muitos feridos e, no fim do dia, o subsídio ainda será de 80 % do preço "correto".

Macri fez isso aos poucos no seu governo. O resultado foi que, no terceiro ano, seus aliados políticos disseram para ele "agora chega", e ele enfrentou uma barreira à ação na sua própria coalizão.

Não há como acertar a economia argentina sem ordenar primeiramente os preços relativos. Hoje, eles são absurdos.

Há um programa de "precios cuidados" de artigos de primeira necessidade com preços tabelados; há tarifas incrivelmente defasadas; e há uma taxa de câmbio oficial que corresponde a apenas um terço da taxa de câmbio do dólar paralelo (o spread entre o paralelo e o oficial, que no Brasil é em torno de 5%, é de 200% na Argentina atual, que tem uma miríade de taxas).

É impossível reorganizar a economia sem acertar previamente essa, com perdão pelo francês, "zona". Ao mesmo tempo, não é preciso ser economista para saber que, se o câmbio é desvalorizado, os preços dos produtos de primeira necessidade são descongelados e as tarifas são aumentadas, a inflação... sobe! O que, quando se parte, na saída, de uma inflação da ordem de 10% ao mês, é um problema sério. Em outras palavras, vem mais inflação pela frente.

O tempo

Carlos Menem entrou para a história como o pai político da convertibilidade, mas vale lembrar que esta foi adotada em abril de 1991, mais de um ano e meio depois de ele ter assumido.

Até então, acumulou muitos tropeços, que soube eludir pela sua habilidade política, pela força do peronismo e por ter criado as condições que pavimentaram o sucesso do plano posterior. Milei não terá essa habilidade, não tem o peronismo por trás e há dúvidas acerca de quanto tempo terá para executar um bom plano.

O tempo será chave. Dado que 2023 já está no fim e que a curtíssimo prazo é impossível estabilizar "de cara" a economia argentina, ele terá o primeiro semestre de 2024 para executar um duplo movimento de um delicado "alicate" econômico, por um lado corrigindo preços relativos e por outro executando um plano de ajuste fiscal provavelmente duríssimo.

A partir disso, entrará no horizonte uma data fundamental: outubro de 2025. É ali que ocorrerão as eleições de meio termo, vitais na dinâmica política argentina e que definirão as condições de governabilidade na segunda metade do mandato e as chances de reeleição.

Por isso, o período de nove meses entre o terceiro trimestre de 2024 e o primeiro de 2025 será aquele em que o governo terá uma janela para colocar de pé o componente monetário que complemente o ajuste fiscal, seja ele a dolarização, uma "convertibilidade 2.0", algum arranjo bimonetário ou um plano que lembre vagamente os planos heterodoxos do Brasil dos anos 1980 e 1990, algo, talvez, minimamente assemelhado ao Plano Real.

Aqui, em 1994 tivemos sucesso com um Pelé no comando (FHC), um craque da finesse política como Pedro Malan na regência, um verdadeiro dream team de economistas e a dupla PSDB-PFL na retaguarda.

A ver o que acontecerá na Argentina, com Milei na Casa Rosada, sabe-se lá quem no ministério, com uma equipe que hoje é uma incógnita e apenas 38 deputados em 257. "Buena suerte."

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