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Argentina se divide entre o 'louco' Milei e peronista oportunista

Segundo turno da eleição presidencial, no dia 19, espelha turbulências do país

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Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Buenos Aires. É autora de 'O Ano da Cólera'

[RESUMO] Eleição presidencial argentina, no próximo dia 19, em meio a mais uma crise econômica, espelha o impasse do país nos 40 anos de sua redemocratização. De um lado, o ultraliberal Javier Milei, de comportamento instável e esotérico, dado a insultos e ataques de ira após a morte de seu cão, como conta biógrafo em entrevista. De outro, o ministro Sergio Massa, que comanda uma economia com inflação de três dígitos e levanta desconfiança no próprio meio peronista.

Antes que Javier Milei entrasse na vida política, dona Carmen (nome fictício, ela não quis se identificar) conta que, em certa ocasião, no elevador de seu edifício no bairro de classe média de Abasto, em Buenos Aires, puxou conversa com o economista, que era seu vizinho. Afinal, seriam dez andares de trajeto e ela queria evitar aqueles silêncios constrangedores comuns a essa situação.

Ela já o tinha visto na TV, falando de economia, e puxou papo: "O senhor dá aulas em alguma universidade?". Ele afirmou que sim, "eu leciono Adam Smith", com certo orgulho ao mencionar o mais importante teórico do liberalismo econômico.

Montagem com imagens do ministro Sergio Massa (à esq.), candidato peronista, e do ultraliberal Javier Milei, que se enfrentam no 2º turno da eleição argentina - AFP

Dona Carmen, para manter o papo ativo, então perguntou, "e [John Maynard] Keynes?". Ela e as demais pessoas no elevador contam que, neste momento, Milei teve um verdadeiro surto. Gritou com a mulher, dizendo que ela era comunista, que todos ali eram comunistas, e que Keynes era o responsável "pelo desastre em que se encontrava a Argentina".

Dona Carmen é apenas uma das vizinhas que acabaram pressionando Milei, ao longo dos anos, a sair do edifício. Algo no mínimo irônico, uma vez que o hoje finalista do segundo turno da eleição presidencial argentina, que ocorre no próximo dia 19, naquela época não parecia ser popular nem mesmo para vencer as eleições de síndico.

Os vizinhos mencionam sua falta de educação (e até de banho), o uso contínuo de palavrões, o cheiro que se sentia em todo o edifício por conta da presença dos cinco clones do mastim inglês que Milei até hoje idolatra, Conan, apesar de morto há 7 anos. O tamanho dos animais (chegam a pesar 100kg cada um) obrigou Milei a derrubar as paredes de seu apartamento e a jogar fora todos os móveis.

Mesmo assim, o ruído da convivência desses enormes animais, com suas brigas e brincadeiras, deixou os vizinhos intranquilos por muito tempo. Até que um dia o próprio Milei foi parar no hospital por cair em cima de um deles e ser atacado por outro.

Essa história, assim como várias outras que buscam entender o chamado "fenômeno Milei" a partir de traços de sua personalidade, estão no livro "El Loco: La Vida Desconocida de Javier Milei y su Irrupción en la Política Argentina" (ed. Planeta, importado), do jornalista argentino Juan Luis González.

O sucesso da obra, principalmente depois da vitória do candidato nas primárias de agosto, acabou gerando um imperdível podcast (para os que entendem espanhol), com roteiro do próprio González: "Sin Control - El Universo de Javier Milei".

"A história dos cachorros pode parecer uma piada, é um aspecto que interessa a todo mundo pelo lado anedótico. Mas creio que há outro nível de leitura. O impacto da morte de Conan e a aparição dos clones que ele encomendou nos EUA fizeram com que Milei passasse a ter uma visão mais esotérica do mundo."

E é também aí que começa, segundo o biógrafo, essa fase dele mais agressiva, mais hostil, distribuindo palavrões e insultos a todos. "Para mim, fica exposto alguém com um problema de saúde mental muito grave. Seria antiético expor isso de qualquer pessoa comum. Porém, se esta pessoa tem a possibilidade de se tornar presidente da República, então é um problema de todos os argentinos", diz González à Folha.

A biografia mostra certa empatia por Milei ao reforçar que ele sofreu muito em sua história. Desde o bullying na escola, a dificuldade de fazer amigos e nunca ter tido uma namorada nessa época.

Até hoje se conhecem apenas duas que surgiram com ele em público A primeira, Daniela Mori, uma cantora, que durou pouco. E a atual, Fátima Florez, artista e comediante, famosa por fazer imitações justo de quem? De Cristina Kirchner, a maior rival de Milei.

Para González, a morte de Conan transtornou Milei. Nessa ocasião, ele pediu que sua irmã, Karina, fizesse um curso de "mediunidade trans-espécie" (sim, isso existe) para conversar com o espírito do cão e trazer recados e orientações para sua vida política, que recém-começava. "Aí creio que virou uma chave em sua cabeça e em sua personalidade", diz González.

É fato, quem acompanha Milei há anos na TV argentina o tem como um velho conhecido. Um sujeito sério quando fala em temas econômicos, mas bem-humorado com seus covers de cantores folclóricos, de Mick Jagger e outros, ou como debatedor em rodas sobre sexo. A ira, os insultos, a gritaria, os ataques pessoais e aos políticos vieram depois da morte do cão.

"A morte do cachorro abriu Milei para uma coisa mais esotérica. A partir daí, quando passou a admitir que era possível conversar com Conan, começou a crer que também falava com Murray Rothbard [economista e historiador libertário da escola austríaca], um de seus gurus intelectuais, ou mesmo com o próprio Adam Smith", diz o biógrafo.

Por isso, González atenta para a seriedade com que se deveriam tratar as anedotas de Milei —por exemplo, quando ele disse há poucas semanas estar "ouvindo vozes", em entrevista em estúdio de TV praticamente vazio.

"Eu tenho dúvidas sobre se essa figura tem capacidade hoje em dia de distinguir realidade de ficção. E isso me preocupa mais do que as medidas políticas que são suas bandeiras [como a dolarização e o fechamento do Banco Central]." Afinal, ainda que polêmicas, elas devem passar por ritos e protocolos institucionais, como votações pelo Congresso, antes de serem aprovadas. E Milei terá apenas a terceira bancada no parlamento.

Em defesa de Milei, González entrevistou o primeiro empresário a dar-lhe espaço, Eduardo Eurnekian, dono do Aeropuertos Argentinos, que administra os principais aeroportos do país.

Milei foi seu assessor, e Eurnekian, também dono do canal América, patrocinou a entrada dele no mundo da "farandula" televisiva —esse universo que mistura entretenimento e política e que domina o "prime time" argentino, com programas de nomes sugestivos, como "Intratables", "Animales Sueltos", "Polémica en el Bar" e outros.

Num deles, Milei contou que era instrutor de sexo tântrico e que as mulheres o chamavam de "vaca má" (se faz falta a explicação, alguém que não ejacula).

Eurnekian, um dos homens mais ricos do país, considera Milei um "economista muito inteligente, que passava o tempo todo com livros sob o braço, educado, ainda que algo impulsivo". Disse desconhecer, porém, o Milei dos insultos que viria depois.

Entre tantos que disparou nos últimos meses, disse que Horacio Rodríguez Larreta, chefe de governo da Cidade de Buenos Aires, era um "rato" que ele venceria "até" numa cadeira de rodas, que o ex-presidente Mauricio Macri era "um ladrão imbecil", que a ex-ministra de Segurança Patricia Bullrich era "uma assassina" [ela militou na Juventude Peronista na juventude, que tinha vínculos com a guerrilha dos montoneros]. Não foram poupados líderes de organizações de direitos humanos, grandes empresários e políticos tradicionais, a quem junta no mesmo rótulo, o da "casta".

Milei adora a irmã Karina, a quem chama de "o chefe", no masculino mesmo. Ela dirige sua estratégia de campanha e sempre aparece a seu lado, protegendo-o do excesso de "carinho" de seus fãs.

Karina também é a pessoa que faz a ponte entre Milei e seus "progenitores", como o candidato se refere aos pais, com quem não se relaciona há mais de oito anos, "porque não compartilho com eles valores filosóficos e ideológicos".

Karina conseguiu, nos últimos tempos, aproximar a mãe de alguns eventos, como um dos debates eleitorais, em que ela esteve presente. Com o pai, é um pouco mais difícil.

"Milei sofreu muito com ele", conta González. "Era um homem simples, condutor de ônibus, que trabalhava muito e tem seu mérito porque conseguiu virar o dono de uma frota inteira de veículos ao longo da vida. Mas quem conviveu com ele fala de um homem duro, que tratava os negócios de modo rígido. E esse comportamento foi transferido para dentro de casa também."

O próprio Milei conta em entrevistas que, nas vésperas de exames no colégio Copello, no bairro de classe média de Villa Devoto, onde cresceu, seu pai fazia "terror psicológico": dizia que o garoto era "um lixo", para desestabilizá-lo. E que depois, mais tarde, já estudando economia na Universidade de Belgrano, o pai deixava de pagar algumas mensalidades, quando estava perto do fim do ano, para que o filho perdesse as provas finais.

Algum paralelo aqui pode ser feito entre Macri e Milei. O ex-presidente também passou maus pedaços com o pai, ainda que longe de agressões físicas ou privações, especialmente de dinheiro.

No entanto, Franco Macri colocou o filho à provação desde cedo, mandando-o comandar empresas do grupo familiar sem nenhum preparo, ir a reuniões sobre temas que desconhecia, humilhando-o em público e tentando até seduzir namoradas do filho.

"Eu deixei crescer o bigode para ver se os demais me respeitavam, para fugir do assédio do meu pai", dizia Macri, que acabou perdoando-o em seus últimos anos. Macri pai foi à posse de Macri filho.

A Argentina de hoje é muito distinta da Argentina do início do processo de redemocratização, quatro décadas atrás. Para muitos jovens, 2023 é um ano muito marcante. Quem nasceu em 2007, ou seja, no ano da primeira eleição de Cristina Kirchner, votará pela primeira vez.

Não terá vivido a crise de 2001 —a do corralito, das 39 mortes em protestos de rua e do presidente, Fernando de la Rúa, que fugiu de helicóptero da Casa Rosada—, não conheceu a hiperinflação dos anos 1980, os extravagantes e corruptos anos Menem, que terminaram na pior crise da história recente argentina. E o que se dirá das ditaduras do século 20 ou da ascensão de Juan Domingo Perón?

No que diz respeito aos jovens, por um lado há os que têm bronca, que estão cansados do peronismo, da casta, de "tudo o que está aí", de não ver futuro profissional. São a base eleitoral de Milei: pobres, periféricos, entre 16 [idade mínima para votar] e 29 anos.

Por outro lado, estão os jovens que se mantiveram fieis às ideias do presidente Néstor Kirchner (1950-2010), o homem que tirou o país do buraco depois da crise de 2001, reduziu a pobreza (que era maior que a de hoje, mais de 50%) e, agarrado ao "boom das commodities", levou a Argentina a crescer até 9% ao ano.

Esses jovens, que praticamente só conheceram o kirchnerismo na vida e não romperam com ele, seguem dando apoio e força ao peronista Sergio Massa, ministro da Economia argentino e adversário de Milei na eleição. Eles compõem o La Cámpora, que começou como organização estudantil e hoje controla estatais. E respeitam Cristina, atual vice-presidente, quem chamam de "La Jefa".

"Há um descompasso hoje entre o que os argentinos jovens e de meia-idade pensam e a história que vivemos, que vai sendo apagada da memória", diz à Folha o historiador argentino Federico Finchelstein, da New School for Social Research e autor de "Do Fascismo ao Populismo na História" (ed. Almedina, 2019).

"O fato de ninguém se importar com o fato de que a vice de Milei é uma negacionista da ditadura [Victoria Villarroel], que visitava [o ditador] Videla na prisão e hoje pede anistia a genocidas, é um sinal terrível de degradação da democracia argentina."

Para ele, o retrocesso está em toda a agenda de Milei. "Ele diz que é a favor do casamento de pessoas de mesmo sexo, porque afinal é um contrato entre duas partes e isso condiz com o ultraliberalismo. Até aí, OK. Mas isso não significa que ele perceba que há uma transformação social acontecendo no mundo, com relação a gênero, identidade, temas com os quais terá de lidar", afirma.

Finchelstein diz estar muito preocupado, porque Massa está longe de ser um Joe Biden quando derrotou Trump. "Não é a mesma coisa, é um político com interesses, com processos contra ele, que não sabemos para que lado vai bandear desta vez e que já deu mostras de não ser competente. A decisão é muito difícil", conclui.

A atual crise econômica do país enrosca o raciocínio dos que tentam entender como é possível que o candidato governista, Sergio Massa, o ministro de uma economia que tem uma inflação de três dígitos, possa ser finalista da disputa pela Presidência.

A explicação é simples: medo. O medo da população mais simples, principalmente a residente nas periferias de Buenos Aires [onde estão 40% dos eleitores do país], de perder os subsídios e as ajudas do Estado.

Poucos dias antes da votação do primeiro turno, a campanha de Sergio Massa encheu as estações de metrô, trem e ônibus com tabelas de preços, mostrando a diferença que teria a tarifa dos serviços sem subsídio (o que Milei promete cortar logo de cara). Segundo essas projeções, os preços aumentariam até 10 vezes.

"O argentino comum não quer perder isso. Os bandejões populares que as organizações sindicais peronistas mantêm são uma estrutura que envolve milhões e protege de verdade a quem não tem nada. Milei não tem essa capilaridade, essa conexão com o pobre, nós acabamos entrando em seu discurso como uma cifra, um número de alguma explicação teórica dele", diz Miguel Colomi, assessor de comunicação de uma entidade de economia popular.

E quem está aprimorando essa propaganda "do medo" são os marqueteiros brasileiros. Uma equipe de mais de 20 deles, como Otavio Antunes, Chico Kertész e outros, vem trabalhando para associar que a chegada de Milei ao poder seria uma vitória da extrema-direita e uma perda de direitos sociais e trabalhistas.

Massa, porém, não levanta simpatias nem no próprio peronismo, com quem passou a vida entre o amor e o ódio. Tampouco os eleitores peronistas de longa data estão felizes em votar nele, devido a seu conhecido oportunismo.

Houve uma época em que era o protegido de Cristina, quando ocupou a chefia de gabinete dela na Presidência. Depois se afastaram, ele criou a Frente Renovadora, uma coalizão dentro do peronismo.

Nas eleições de 2015, quando foi candidato e ficou em terceiro lugar, atrás do então opositor Macri e do governista Daniel Scioli, Massa me disse, em evento do jornal Perfil: "Vou apoiar aquele que derrote o kirchnerismo". E, de fato, foi o fiel da balança, levando seus eleitores a votar em Macri, ainda que sem apoio formal.

Em 2019, lançou-se candidato. Perguntei qual era sua prioridade. "Tudo o que precisamos agora é tirar Macri", respondeu. Algumas semanas depois, desistiu da candidatura e apoiou o atual presidente Alberto Fernández, voltando a se aproximar do kirchnerismo.

É este homem, que muitas vezes desagradou os peronistas e chegou a ser acusado de traidor, que carrega a esperança de salvar o peronismo.

Massa e Milei se enfrentam na noite deste domingo (12), no último debate antes da eleição. No Brasil, o encontro pode ser acompanhado após às 21h pelo sinal do Youtube da TV Pública.

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