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Luiz Armando Bagolin

Mostra de Ed Ruscha faz MoMA rever sua própria história

Retrospectiva monumental em Nova York celebra trajetória de ícone da pop art

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"OOF" (1962), obra de Ed Ruscha, em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) até janeiro de 2024 The Museum of Modern Art/Reprodução

Luiz Armando Bagolin

Professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

[RESUMO] Um dos mais importantes nomes da chamada pop art, Ed Ruscha ficou célebre por sua produção em ampla variedade de mídias e pelo uso de sinais gráficos e palavras em suas imagens, obras que questionam com sarcasmo os limites da pintura. Retrospectiva no MoMA, templo do modernismo, lança luzes e cria irônico choque com uma obra que refuta teorizações e sentidos transcendentes.

A retrospectiva "Now Then", de Ed Ruscha, em cartaz no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), é uma exposição monumental, capaz de oferecer uma visão abrangente de sua carreira, desde suas primeiras incursões no mundo da arte até seus trabalhos mais recentes.

Nascido em 1937 em Omaha, no estado de Nebraska, Ruscha mudou-se para Los Angeles em 1956 e frequentou o Chouinard Art Institute, onde teve seu primeiro encontro com a obra de Jasper Johns, Raymond Hains, René Magritte e Kurt Schwitters, artistas notáveis pelo uso de objetos prontos como suporte ou ponto de partida para a produção de obras de arte.

 "Standard Station, Ten-Cent Western Being Torn in Half" (1964), obra de Ed Ruscha, em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) até janeiro de 2024
"Standard Station, Ten-Cent Western Being Torn in Half" (1964), obra de Ed Ruscha, em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) até janeiro de 2024 - Modern Art Museum of Fort Worth/Reprodução

Isso desencadeou uma mudança significativa em sua abordagem artística, levando-o a considerar de que forma poderia usar elementos gráficos e palavras para expor a dualidade da pintura como objeto e, ao mesmo tempo, ilusão.

Enquanto estudava em Los Angeles, seu pai morreu. Sua mãe decidiu que precisava expandir seus horizontes e, assim que Ruscha se formou em 1961, foi para a Europa com ela e o irmão. Eles viajaram por quatro meses, comprando um carro pequeno em Paris, com o qual percorreram países por todo continente.

Ruscha visitou museus, mas não se encantou pela arte dos séculos passados. Ao invés disso, após sua volta a Paris no final da viagem, passou algum tempo caminhando pelas ruas e pintando sinalizações locais, como aquelas que aparecem na entrada das estações de metrô.

Após voltar a Los Angeles, trabalhou para a Carson-Roberts Advertising Agency, projetando layouts. Em 1962, foi convidado a exibir seu trabalho como parte da mostra New Painting of Common Objects, no Pasadena Art Museum, com curadoria de Walter Hopps.

Esta exposição é frequentemente considerada a primeira em um museu na América a mostrar o que, mais tarde, seria chamado de pop art. Artista mais jovem do grupo, Ruscha exibiu seu trabalho ao lado de peças de Roy Lichtenstein, Jim Dine, Joe Goode, Wayne Thiebaud e Andy Warhol. No ano seguinte, Hopps convidou Ruscha para sua primeira individual em sua galeria comercial, a Ferus Gallery.

Morando na Califórnia, Ruscha viajava frequentemente pela Rota 66 para visitar sua família em Oklahoma. Sua imaginação era alimentada pela extensão quase interminável de asfalto salpicada por postos de gasolina.

Essas jornadas resultaram em seu primeiro livro de fotos, "Twentysix Gasoline Stations" (vinte e seis postos de gasolina, 1963), hoje considerado um clássico no gênero. Nos anos 1960 e 1970, Ruscha produziu um total de 16 livros de fotos sobre Los Angeles, que adotou como cidade-tema.

A partir daí, o artista se tornou conhecido pelo uso de palavras e frases em suas imagens, às vezes pintadas contra fundos realistas, evocando a paisagem norte-americana. Obras como "Pay Nothing Until April" (não pague nada até abril, de 2003), por exemplo, fazem referência à publicidade, enquanto colocam o texto em contraste com uma paisagem montanhosa coberta de neve no topo.

O uso de palavras e texto não era novo na arte do século 20, podendo ser rastreado até os pintores cubistas, como Georges Braque e Pablo Picasso, que adicionavam letras, pintadas e/ou coladas, em naturezas-mortas.

Brincar com a linguagem também foi central para os artistas dadaístas, que deixaram um legado importante com o uso radical e frequentemente humorístico das palavras. Essas experiências moldaram o imaginário de Ruscha, que se vale de onomatopeias, trocadilhos, aliterações e contrastes de significado em seus trabalhos.

Muitas de suas obras iniciais, como "Honk" (buzinada, 1962), retratam palavras únicas em um formato tipográfico. Uma atmosfera mais sombria, de algo desgastado pelo tempo, emerge na série posterior "The End "(o fim, 1991), que ilustra as palavras sobrepostas com imagens que lembram créditos de filmes.

As frases e palavras sugerem a linguagem e a gíria cotidianas dos Estados Unidos, chamando a atenção para uma experiência específica, ou lembrando os excessos da cultura de Hollywood.

Em "Pretty Eyes, Electric Bills" (olhos bonitos, contas de luz, 1976), por exemplo, a justaposição das frases dá a ver uma oposição de sentidos, como num "cadavre exquis" surrealista —a primeira rememora imagens românticas, enquanto a segunda faz referência a uma tarefa mundana.

Ruscha propõe propositadamente esta descontinuidade. Segundo ele: "'Pretty Eyes, Electric Bills' é minha maneira de separar dois assuntos que estão no extremo oposto do mundo um do outro. Isso de alguma forma se torna a razão pela qual quero fazer uma obra de arte a partir desse desacordo". Interessa ao artista também a forma sonora das palavras, algo impossível de ser imitado pela pintura, mas que pode comparecer diante dela graças à participação do espectador/leitor/ouvinte.

Em obras como "OOF" (ahh, 1962-63), que apresenta a exclamação em letras amarelas em um fundo azul, é quase impossível olhar para a pintura sem verbalizar o visual.

Ruscha parece perseguir um intento semelhante ao dos artistas modernos, fazendo da pintura um campo de discussão sobre os limites da linguagem. Muito deste interesse também tem relação com Jack Kerouac e seu livro "On The Road" (1957) e o estilo de escrita ininterrupta, em fluxos que se confundem com o próprio ato de pensar ou de sonhar.

"Existem coisas que estou constantemente observando e sinto que deveriam ser elevadas a um status maior, quase a um status filosófico ou religioso. É por isso que tirar coisas do contexto é uma ferramenta útil para um artista", avaliou Ruscha.

Tirar coisas de seus contextos originários, vale lembrar, foi uma das mais importantes estratégias da arte do início do século 20, mas não, evidentemente, com vistas a sacralizá-las ou a elevá-las a "status maior".

Os ready-mades de Marcel Duchamp, um dos artistas referenciais para Ruscha, remetiam a ações para as quais a indiferença visual dos objetos escolhidos se somava à mais completa ausência de bom ou mau gosto.

Duchamp buscava uma "arte anestésica", algo que não pudesse ser pautado pelo "deleite estético". Uma obra como "Tu'm" (1918), por exemplo, guarda analogias com os slogans-paisagens de Ruscha. A tela, comprida, foi encomendada pela artista, colecionadora e educadora Katherine Dreier para ser pendurada sobre uma estante em sua biblioteca.

Trata-se da última pintura de Marcel Duchamp em tela e resume ou sintetiza todas as suas preocupações artísticas anteriores. Vários objetos são representados de modo ilusionista, como uma mão pintada com um dedo apontado no centro inferior, enquanto objetos reais são contrapontos a esses elementos de trompe-oeil: uma escova de garrafa, um parafuso e alfinetes de segurança.

Duchamp resume diferentes maneiras pelas quais uma obra de arte pode sugerir a realidade: como sombra, imitação ou objeto real. O título, "Tu'm", empresta um tom sarcástico à obra, pois as palavras são abreviações do francês tu m'emmerdes (você me incomoda) ou tu m'ennuies (você me entedia), e parecem expressar sua atitude de desdém em relação à pintura no momento em que a abandonava ou a questionava.

Duchamp, entretanto, preferiu encomendar a obra a um pintor de placas profissional, ao invés de ele mesmo pintá-la. Para o artista, cobrir uma tela com camada de cor não era criar uma expressão transcendente de sua essência; era apenas se envolver em outro tipo de ilusionismo, um que fazia os materiais da pintura, os corpos dos moedores, os fabricantes de tinta e os pintores comerciais desaparecerem. Trata-se, aqui, de uma alusão à pintura como um jogo de aparências que põe em movimento outros tantos jogos de aparência (o do mercado de arte, da afetação de artistas, marchands etc.).

Obra do artista Marcel Duchamp, que está na Gallery of Lost Art, organizada pela Tate - Divulgação

Duchamp enfatizou também, de modo irônico, o próprio lugar onde a obra foi instalada, a biblioteca de uma educadora de arte, como a perguntar: "Arte pode ser ensinada? A história da arte também não seria uma ilusão?". Há uma fotografia de 1941 da tela, já devidamente instalada, na qual se vê uma luminária no teto, bem próxima à pintura. Uma vez acesa, ela projetaria as sombras dos objetos fixados no quadro, confundindo-as com as sombras projetadas e pintadas em sua superfície.

É esse jogo de ilusões —de demarcar as aparências do real com signos urbanos que fazem parte do imaginário americano, elevados pelo capitalismo a quase entidades— que interessa a Ruscha, que os repete em contextos sempre diferentes, com fundos e paisagens pintados de modo cinematográfico, pois foi o cinema o melhor meio a traduzir estes ambientes de leste a oeste do país.

No entanto, a repetição dessas frases, imagens e sombras não os encarece como coisas especiais ou transcendentes; apenas os reafirmam como signos vazios deixados para trás, como os restos da modernidade ou do que a partir dela foi produzido. E o artista encara esses resíduos com afeto e certo saudosismo.

É igualmente irônico que "Now Then" ocupe agora o MoMA, considerado o templo do modernismo, instituição que encampa um projeto positivista em torno da arte abstrata, geométrica ou não geométrica, tendo-a como o ponto de chegada natural de todas as vanguardas desde o final do século 19. Lembremos que esse foi o principal intento de Alfred Barr, seu primeiro diretor, exposto no livro "Cubism and Abstract Art" (1936).

Está claro, contudo, que Ruscha faz algo completamente oposto. O artista, aliás, avesso a classificações de qualquer espécie, já declarou que só não gostaria de ser chamado de pintor cubista ou expressionista abstrato.

A segunda parte do título desta grande exposição, "Now Then" (agora/então, depois), remete à sonoridade do Tu'm duchampiano que tem no latim "tum" (então; quer seja isso ou aquilo) um eco a contribuir com a resposta sarcástica e seca, a única possível, a quem quer que venha a interpretar essas pinturas com grandes ou graves teorias. Estas frases e palavras, agora, são apenas arte, nada mais.

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