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Samuel Feldberg

Relativismo ao repudiar ataque do Hamas desmoraliza ONU

Erros frequentes reforçam falta de credibilidade da entidade para mediar conflitos

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Samuel Feldberg

Doutor em ciência política pela USP, pesquisador do Centro Moshe Dayan da Universidade de Tel Aviv e diretor acadêmico da StandWithUs Brasil

[RESUMO] Autor questiona a eficácia da ONU na solução de conflitos globais a partir do que considera uma postura relativista da entidade para condenar os ataques do Hamas a Israel em outubro de 2023. O mecanismo de veto no Conselho de Segurança, intervenções limitadas e um histórico de falhas, afirma, minam a credibilidade da organização perante a comunidade internacional.

A ONU vem, desde o ataque terrorista do Hamas contra civis israelenses em 7 de outubro passado, relativizando o que foi o maior massacre contra uma comunidade judaica desde o Holocausto. A maioria dos pronunciamentos dos diversos organismos internacionais se preocupou muito mais em tentar encontrar uma justificativa para o ataque que para condená-lo.

O ato terrorista que vitimou mulheres e crianças —mortas, sequestradas, violentadas, decepadas— somente foi condenado pela organização ONU Mulheres sete semanas após a ofensiva. O comunicado menciona repetidamente Jerusalém Oriental e a Cisjordânia, como se esses crimes tivessem sido cometidos por israelenses e não por terroristas palestinos.

Sede da ONU em Nova York, nos EUA - Eduardo Munoz - 20.dez.23/Reuters

Mas esse tipo de reação, fortemente permeada de antissemitismo, já não surpreende os que acompanham conflitos ao redor do mundo, nos quais a ONU, entre outros órgãos, prefere ignorar aquilo que ocorre em praticamente todos os continentes enquanto se concentra em condenar Israel.

Palestinos têm sido mortos por seus correligionários nos mais diversos países do Oriente Médio sem que a ONU se manifeste a respeito. No começo de novembro, em Ardamata, no oeste de Darfur, homens de um campo de refugiados foram mortos por milícias em um ataque. Na Etiópia e no Iêmen, as atrocidades se repetem diariamente, mas a ONU só encontra tempo para condenar Israel, seja na Assembleia Geral, seja nas tentativas, vetadas pelos EUA, no Conselho de Segurança.

Organizações ligadas à ONU, como a UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente), perpetuaram a tragédia dessas pessoas ao serem coniventes com aqueles que, ao longo de mais de sete décadas, impediram uma solução, nutrindo a ideia de destruição de Israel. Instalações da UNRWA são usadas na Faixa de Gaza para armazenar arsenais do Hamas e suas atividades educacionais contribuem para criar novas gerações de jovens terroristas.

A ONU, criada nos estertores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tinha como missão primordial evitar que outro conflito daquelas proporções voltasse a ocorrer.

Em 1945, quando terminou a guerra, o mundo estava dividido entre os bons e os maus, tendo de um lado os aliados vitoriosos (União Soviética inclusa) e de outro, o eixo das nações que foram derrotadas. Mas a Carta das Nações Unidas se mostrou incapaz de proteger qualquer um de seus membros da ação violenta de atores mais poderosos (ou mais belicosos) do cenário internacional.

A combinação de alguns fatores contribuiria para o final do sonho acalentado pela criação da ONU de superar o trauma da extinta Liga das Nações. A inovação com o Conselho de Segurança iria sucumbir ao mecanismo de veto, vítima da polarização decorrente da Guerra Fria.

A premissa de que as grandes potências iriam se opor às ameaças à paz e à segurança coletiva e reagiriam em conjunto a intimidações foi logo descartada pelos interesses divergentes das duas superpotências. A ONU foi incapaz de atuar efetivamente, limitada pelo poder de veto dos EUA e da antiga URSS —era como se os principais balanceadores estivessem outra vez fora do jogo, se anulando mutuamente.

Sem qualquer intervenção da ONU, a URSS controlou com mão de ferro sua área de influência na Europa Oriental. Os EUA travaram uma longa guerra contra o Vietnã e retardaram sua unificação por mais de dez anos; desembarcaram tropas no Líbano em 1958 e impuseram uma quarentena a Cuba durante a crise dos mísseis.

Os soviéticos ocuparam o Afeganistão por uma década, ameaçando o equilíbrio no sul da Ásia, em uma ação que contribuiria para o desmembramento da URSS e que deixou consequências sentidas até os dias de hoje.

Em outros casos a organização nem cogitou intervir. O Iraque e a Turquia reprimiram violentamente suas minorias curdas, o Khmer Vermelho exterminou cerca de 2 milhões de cidadãos cambojanos em ações consideradas pela comunidade internacional como questões internas.

Ao findar a Guerra Fria, pela primeira vez em décadas, uma ação militar foi organizada sob a égide da ONU, para punir o Iraque por sua agressão ao Kuait. Mas no final prevaleceram os interesses da maior potência envolvida, e a necessidade de garantir a sobrevivência de um regime que pudesse equilibrar a ameaça iraniana levou a coalizão a manter Saddam Hussein no poder, permitindo a brutal repressão das minorias iraquianas, que acreditaram no fim de seu governo.

Durante a década seguinte, o mundo acompanhou o desmembramento da antiga Iugoslávia e a prática de limpeza étnica por sérvios. Inclusive no caso do massacre de Srebrenica, na Bósnia, em julho de 1995, no qual mais de 7.000 muçulmanos foram mortos, apesar de protegidos, teoricamente, por um batalhão de capacetes azuis das Nações Unidas, que optaram por se manter à parte e garantir a sua própria segurança.

Em Ruanda, mais de 800 mil membros da etnia tutsi foram assassinados em 1994, sem que a ONU ou qualquer órgão se engajasse para impedir mais essa tragédia. E, quando uma disputa entre senhores da guerra na Somália, com a conivência das Nações Unidas, finalmente levou a uma intervenção norte-americana, a lição que restou do trágico envolvimento humanitário foi que, sem a iniciativa e a liderança dos EUA, outros membros da ONU se absteriam de promover qualquer tipo de intervenção.

Mas o mundo mudou em setembro de 2001. Os ataques terroristas contra o World Trade Center e o Pentágono levaram à promulgação da nova Doutrina de Segurança Nacional dos Estados Unidos e à adoção do conceito de preempção para nortear futuras ações. A luta contra o terrorismo da Al Qaeda começou com a conivência das principais potências (e a aprovação de duas resoluções do Conselho de Segurança), algumas delas certamente interessadas em legitimar suas próprias ações.

Assim, a Rússia, apesar de suas restrições à presença de tropas dos EUA na Ásia Central, obteve a compreensão dos americanos para suas ações na Tchetchênia e também a China pôde lidar com seus rebeldes uigures nas províncias ocidentais sem sofrer qualquer retaliação.

A ONU, por sua vez, se manteve à margem das grandes ações contra o terror. A resolução 1.566, de outubro de 2004, se limita a "conclamar os países-membros a se engajar na luta contra o terrorismo, respeitando as leis vigentes e os direitos humanos e toma, como única decisão, a criação de um grupo de trabalho para avaliar possíveis ações contra elementos envolvidos em ações terroristas".

Quando da decisão dos EUA de invadir o Iraque em 2003, a recusa do Conselho de Segurança em apoiar a operação e a consequente formação de uma coalizão militar esvaziou, por um lado, a legitimidade da ação norte-americana. Por outro, minou ainda mais a posição de uma organização já marcada pela fadiga, falta de credibilidade e fragilidade orçamentária.

É certo que o apoio da ONU teria facilitado a ação dos Estados Unidos, especialmente após a constatação de que, apesar da rápida vitória militar, a ocupação seria longa e sangrenta. Mas a recusa do Conselho de Segurança se deveu muito mais a interesses conflitantes da Rússia e da França que a uma percepção da legitimidade do regime de Saddam Hussein.

Nas colinas de Golã, no Líbano, no Chipre, no Haiti, no Sudão e em inúmeros países da África, os capacetes azuis separam tropas nacionais (do mesmo modo que costumavam fazer durante a Guerra Fria) e facções étnicas rivais se tornaram característica marcante dos principais confrontos desde os anos 1990.

As questões humanitárias tomaram conta do cenário internacional. No Congo e em Darfur, por exemplo, os massacres continuaram sem uma ação efetiva para evitá-los e a ONU, cujas forças precisam ser arregimentadas caso a caso para tal, não possui a capacidade de fazê-lo.

Contudo, nas palavras do segundo secretário-geral da ONU, Dag Hammarskjöld (1905-1961), "a Organização das Nações Unidas não foi criada para levar a humanidade ao céu, mas para salvá-la do inferno."

Por ora, está longe de fazê-lo.

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