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Lucchetti marcou terror brasileiro em livros, filmes e HQs

Pioneiro no gênero, autor, que morreu aos 94, deixou mais de 1.500 obras

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Marcelo Miranda

Jornalista, crítico e curador de cinema. Publicou textos em livros e antologias sobre terror e atualmente pesquisa a presença do gótico no cinema brasileiro. Foi produtor do podcast "Saco de Ossos”

[RESUMO] Rubens Francisco Lucchetti iniciou aos 12 anos uma trajetória até então sem precedentes na criação de terror no país. Primeiro escritor brasileiro assumidamente dedicado ao gênero, povoou com suas criaturas sobrenaturais e sua visão de mundo soturna mais de 1.500 livros e HQs, além de roteiros para filmes de Zé do Caixão e Ivan Cardoso. Morto aos 94 anos, foi redescoberto na última década, nas redes sociais, por novos fãs do horror, que o reverenciam como mestre.

Em um sábado de outubro de 1942, um rapaz de 12 anos corria empolgado pelas ruas do bairro da Lapa, em São Paulo. Segurava o jornal O Lapiano como se fosse o maior tesouro do planeta. Lá estava impresso o conto "A Única Testemunha".

A vontade do menino era parar todo mundo que encontrava na rua para dizer "olha isso aqui, essa história é minha, fui eu que escrevi!". Era a primeira vez que o jovem Rubens Francisco Lucchetti publicava um texto. A frase que iniciava o conto —e a trajetória vindoura ao longo dos 82 anos seguintes de vida e carreira— era: "Ouço, na noite fria, o dobrar do sino no campanário solitário".

O escritor e roteirista Rubens Francisco Lucchetti, pioneiro da ficção de terror no Brasil, em sua casa em Jardinópolis, interior de São Paulo, em 2012 - Edson Silva/Folhapress

Lucchetti morreu em 4 de abril deste ano, aos 94, em Ribeirão Preto (SP), após 15 dias internado para tratar uma pneumonia.

Uma enorme comunidade literária e cinéfila passou os últimos dias lamentando a morte dele, considerado uma lenda pela incansável trajetória de escrita e por ser o primeiro escritor brasileiro assumidamente dedicado ao gênero do horror.

O universo desenvolvido por Lucchetti em romances, contos, animações, histórias em quadrinhos e roteiros de cinema, rádio e TV era povoado por criaturas insólitas, castelos e casarões misteriosos, homens e mulheres perigosos, situações violentas, desdobramentos cheios de surpresas e um estilo de escrita direto e envolvente que o fizeram ser considerado "o papa da pulp fiction brasileira".

"O principal diferencial do Lucchetti é a maneira como sua escrita dialoga não apenas com correntes da literatura estigmatizadas como entretenimento descartável, mas também com outras linguagens artísticas, como os seriados de rádio, as HQs e o cinema de gênero", afirma o editor Cid Vale Ferreira, sócio da editora Sebo Clepsidra e profundo admirador, pesquisador e colecionador da obra de Lucchetti.

"Por toda a vida ele agiu como um embaixador autodidata de gêneros que muitas vezes tinham amplo espaço só em obras estrangeiras consumidas no Brasil, embora o país ainda desconfiasse da capacidade de seus artistas de criar algo dessa natureza", destaca Cid.

A tarefa de catalogar a obra de Lucchetti é hercúlea. Registros dão conta de que ele publicou 1.547 livros, cifra impressionante que imediatamente causaria alguma desconfiança sobre a qualidade, não fossem nuances importantes.

Boa parte dessa produção foi feita por encomenda de pequenas editoras e para a subsistência do autor. Isso incluiu livros sobre magia, receitas, interpretações de sonhos, horóscopos, manual sobre pílulas anticoncepcionais e guias de controle de pragas domésticas, entre outras peculiaridades. Ainda entram na conta livrinhos de bolso de todos os gêneros populares, de aventura a faroeste, de erotismo a cópias disfarçadas de clássicos literários de outros países.

Esses trabalhos eram assinados por pseudônimos, uns inventados por Lucchetti e outros pelos editores. Segundo ele próprio costumava dizer, apenas "uns 200 livros" foram de sua autoria plena, enquanto o resto era "baboseira deprimente e lixo editorial".

Cid Vale comenta: "A quantidade de encomendas com prazos insalubres, que redundavam em obras escritas às pressas, também exigia a preservação de seu nome, o que pulverizava esforços, de modo que boa parte desse material simplesmente não lhe agregava nada".

A importância histórica de Lucchetti não tem precedentes no Brasil. Ainda que antes dele tenha havido no país outras coletâneas de histórias de suspense e terror, como "Noite na Taverna" (1855), de Álvares de Azevedo, e "A Casa do Pavor" (1922), de Moacyr Deabreu, foi "Noite Diabólica" (1963), de Lucchetti, que se notabilizou como a primeira antologia intencionalmente pensada para ser um livro de histórias de assombro em um período em que o gênero já era sistematizado.

Capa da edição original de "Noite Diabólica" (1963), primeiro livro de Rubens Francisco Lucchetti, com desenho de Jayme Cortez
Capa da edição original de "Noite Diabólica" (1963), primeiro livro de Rubens Francisco Lucchetti, com desenho de Jayme Cortez - Reprodução

"Reconhece-se, em ‘Noite Diabólica’, a intencionalidade do arrepio, articulada por meio de contos breves que ora se inserem na manufatura do gótico, com todos os marcadores que dizem respeito a ele, ora reverberam textos de ficcionistas cardeais do gênero, como Edgar Allan Poe, Bram Stoker e H. P. Lovecraft", afirma o escritor e pesquisador Oscar Nestarez, que editou um dos últimos contos publicados por Lucchetti em vida, "A Casa", na coletânea "Mundos Paralelos: Horror" (ed. Globo, 2023).

"Embora se critique, nos livros de Lucchetti, a ausência de conexões com o espaço, com os contextos social e cultural e com o imaginário brasileiros, é inegável a contribuição para o que se estabeleceu como o sistema literário do horror nacional. Nos últimos anos, sua obra passou a ser consumida e respeitada por leitores, ficcionistas e editores de novas gerações."

Para o cineasta Carlos Adriano, que em 2002 fez o curta-metragem "O Papa da Pulp: R. F. Lucchetti, Faces e Disfarces", a vasta obra do paulista nascido em Santa Rita do Passa Quatro ocupa "uma espécie de subconsciente do imaginário popular brasileiro, dadas as dimensões de sua atuação plural".

O jornalista Daniel Solyszko, que prepara um livro sobre a vida e o trabalho do autor, reforça que "a única maneira de compreender e gostar de Lucchetti é através da chave do fantástico e do irreal".

"Ele assimilava diversas influências, a maioria estrangeiras, para depois traduzi-las de maneira particular. Seus livros se passam nos clubes noturnos de Berlim, nas ruas de Havana pré-revolução, em castelos e florestas sombrias no interior da Inglaterra, mesmo ele nunca tendo saído do Brasil", conta Solyszko.

Lucchetti, homem tímido e recluso, pouco afeito a holofotes, definia a si mesmo como "um ficcionista". Considerava-se inventor de novas realidades através da imaginação irrestrita e das possibilidades do fantástico.

"Minhas primeiras leituras foram histórias policiais, mas quando li ‘O Coração Denunciador’ e ‘O Gato Preto’, de Edgar Allan Poe, fiquei tão impressionado que não consegui mais imaginar nenhuma história que não envolvesse o fantástico e o sobrenatural", disse, em entrevista ao filho, Marco Aurélio, publicada na coletânea "No Reino do Terror de R. F. Lucchetti" (Opera Graphica, 2001). "Só me sinto bem quando estou escrevendo histórias nas quais procuro explorar o folclore do horror."

Grande fã dos filmes de monstros do estúdio Universal realizados nos anos 1930, Lucchetti acabou ele mesmo se aproximando de um ícone brasileiro do gênero em 1966, quando conheceu o cineasta José Mojica Marins. Dois anos antes, Mojica lançara "À Meia-noite Levarei sua Alma", no qual interpretava o coveiro Zé do Caixão.

Em 1967, fez a sequência, "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver". Em seguida, ao contratar Lucchetti como roteirista oficial, Mojica desenvolveu "O Estranho Mundo de Zé do Caixão" (1968) e consagrou seu personagem como um mestre de cerimônias macabro, perfil que reverberou por décadas adiante no imaginário popular, inclusive no saudoso "Cine Trash", da rede Bandeirantes, que exibia filmes de horror à tarde na TV aberta dos anos 1990.

"Lucchetti elogiava Mojica por ele ter conseguido, com Zé do Caixão, criar um personagem legitimamente brasileiro dentro da tradição do horror. Quando ele vai trabalhar com o Mojica, tenta apresentar uma nova leitura do coveiro, organizando um repertório que até então era mais caótico", diz a pesquisadora Laura Cánepa, especializada em cinema de horror brasileiro.

Em apenas dois anos, Lucchetti escreveu 25 roteiros para Mojica, dos quais 12 foram transformados em filmes até meados dos anos 1980. Também roteirizou episódios de duas séries de televisão e diversas histórias em quadrinhos com a presença do Zé do Caixão, estas em parceria com o desenhista ítalo-brasileiro Nico Rosso.

A parceria, contudo, não terminou muito bem. No fim da década de 1960, Lucchetti rompeu o contrato. "Mojica não soube aproveitar a oportunidade que teve com Lucchetti, que era um cocriador que o admirava", acredita Cánepa.

"Ele fazia escolhas sem consultá-lo, mudava de ideia sobre os trabalhos, vendia roteiros, trocava de emissora ou de editora, sem avisar. Lucchetti ficava a reboque da personalidade muito fulgurante e desorganizada do Mojica, que podia ter tido mais estabilidade na própria carreira se tivesse aproveitado melhor a proximidade com o roteirista."

Os desencontros não impediram que Lucchetti assinasse alguns dos trabalhos mais celebrados de Mojica, entre eles "Ritual dos Sádicos" (1969), "Finis Hominis" (1971), "Exorcismo Negro" (1974) e "Inferno Carnal" (1976).

E nem que posteriormente o escritor desenvolvesse quatro filmes para outro cineasta, Ivan Cardoso, entre eles "O Segredo da Múmia" (1982), pelo qual ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Gramado.

Por outro lado, as experiências deixaram marcas de ressentimento no autor. "Nenhum desses filmes me agradou. Se eu voltasse ao passado com a cabeça que tenho hoje, roteiro para cinema eu não faria", disse Lucchetti, em 2019, em entrevista a este repórter no podcast "Saco de Ossos".

Após as desilusões com o cinema e dificuldades de se manter financeiramente como escritor, Lucchetti pensou em aposentar a máquina de escrever. Mas, no começo dos anos 2010, morando em Jardinópolis (região próxima de Ribeirão Preto), foi procurado pela modesta Editorial Corvo com a proposta de um selo com seu nome (Coleção R. F. Lucchetti) e total liberdade criativa.

Em 2014, teve início a publicação de vasto material de ficção e não ficção de Lucchetti, entre inéditos e resgates revisados de romances, contos, crônicas, memórias, anotações e quadrinhos de sua autoria, com edição de seu filho. O próprio Lucchetti vendia os livros por um perfil no Facebook, ambiente no qual manteve contato com centenas de admiradores e que lhe permitiu ser redescoberto por uma nova geração. "Eu renasci", dizia ele.

O cineasta Carlos Adriano relembra a importância desse resgate para que Lucchetti se mantivesse tão ativo na última década. "Ele reconhecia que só agora estava conseguindo publicar sua obra como queria. As mutilações de seu trabalho no passado, seja em livros e revistas, seja em filmes, pode ser lida como alegoria da importância, do reconhecimento e do legado em um país periférico que não cuida bem de sua memória", diz Adriano.

O editor Cid Vale concorda. "O esforço atual de construir uma memória de sua produção angariou-lhe reconhecimento como um patrimônio vivo de nossa cultura, mesmo que em certos aspectos sua verve tenda a aclimatar estéticas de origem estrangeira." Com a morte de Lucchetti, o filho, Marco Aurélio, deve continuar a editar e vender a obra do pai, já que material não há de faltar por bastante tempo.

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