Filme perdido de Zé do Caixão encontrado no lixo ressuscita horror visceral do cineasta

Finalizada após a morte do diretor, obra chega agora aos festivais de cinema

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Marcelo Miranda

Jornalista, crítico e curador de cinema. Publicou textos nas antologias “O Melhor do Terror dos Anos 80” e “O Melhor do Terror dos Anos 90” (Skript Editora) e é integrante dos podcasts “Saco de Ossos” e “Hora do Espanto”, dedicados à ficção de horror

[resumo] Engavetado em 1980 e dado como perdido por quase 30 anos, filme inédito de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, foi resgatado do lixo, restaurado e chega agora a festivais de cinema. A obra macabra marca um retorno ao horror visceral da fase mais consagrada do cineasta morto em 2020 e poderia ter dado novo impulso a sua carreira em um momento de crise criativa e de financiamento.

"Vocêêêê... acreditaaa... no sobrenatural? Ou é dessas pessoas que procuram brincar e desafiar... o desconhecidooo!!?"

As palavras de Zé do Caixão nas cenas iniciais de "A Praga" retomam a postura provocativa do personagem criado por José Mojica Marins na década de 1960. Morto em fevereiro de 2020, aos 83 anos, o ator e cineasta não pôde assistir à estreia de um de seus trabalhos que, inacabado por décadas, ganhou sobrevida graças ao culto em torno de sua obra.

A versão definitiva de "A Praga", com 50 minutos de duração, teve até o momento uma única exibição pública: em outubro do ano passado, passou no 54º Festival de Cinema de Sitges, na Espanha. Poderá ser visto novamente em abril, na 42ª edição do Fantasporto International Film Festival, em Portugal. Não há ainda data definida de estreia no Brasil.

Eugenio Puppo e Zé do Caixão em gravações de "A Praga", em 2007
O produtor Eugenio Puppo (à esq.) e Zé do Caixão em gravações de "A Praga", em 2007 - Reprodução

A Folha teve acesso prévio ao média-metragem e constatou o quanto o filme resgata o tipo de impacto que só Mojica conseguia transmitir.

"A Praga" seria originalmente lançado em 1980, mas foi engavetado por falta de recursos para finalização. O projeto então entrou em um limbo que parecia irreversível. As latas de negativo em película Super-8 com as filmagens ficaram perdidas até 2007, quando o produtor Eugenio Puppo, preparando uma retrospectiva da obra de Mojica, encontrou o material dentro de um saco de lixo, no emaranhado guardado no escritório do cineasta no bairro de Santa Cecília, em São Paulo.

Puppo, que só se refere a Mojica como "mestre", decidiu restaurar o filme e concluir esse que poderia ter sido, em 1980, um novo impulso a um artista "intuitivo e visceral, primitivo e sofisticado, sempre contraditório, mas nunca arbitrário", como escreveu Carlos Reichenbach (1945-2012) após assistir a uma primeira versão de "A Praga" no escritório do produtor, naquele mesmo 2007.

"Dentre os vários trabalhos que o mestre dizia não ter conseguido concluir, ele sempre fazia referências ao ‘A Praga’", relembra Puppo, que tentou, por diversas vezes, emplacar a finalização em editais públicos, sem sucesso. Resolveu, então, concluir o projeto com recursos próprios.

Como os negativos não continham som, Puppo contratou a escritora e comunicadora Lakshmi Lobato, pessoa com deficiência auditiva, para fazer a leitura labial das cenas de diálogos. Munido da transcrição, ele coordenou um cuidadoso processo de dublagem, que contou com a veterana Débora Muniz, que já tinha atuado em filmes de Mojica, interpretando a voz da atriz Silvia Gless; Eucir de Souza, dublando o ator Felipe von Rhime; e, para a voz da bruxa interpretada por Wanda Kosmo, foi convocada Luah Guimarãez, fundadora do grupo teatral Mundana Companhia.

O trio foi dirigido por Puppo durante a dublagem, que incluiu movimentações corporais similares às do elenco do filme para atingir o máximo de dramaticidade de cada fala. Parte desse processo está registrado no curta-metragem "A Última Praga de Mojica".

A primeira versão de "A Praga", sonorizada e remontada, foi exibida para alguns espectadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília em 2007, na retrospectiva de Mojica realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, mas Puppo quis afinar mais a obra.

Quase 15 anos depois —e, infelizmente, na ausência de Mojica—, o produtor agora entrega a melhor versão possível de "A Praga", com nova correção de cores, imagem em alta definição, remasterização sonora, trilha musical e mais nitidez nos efeitos especiais desenvolvidos por Kapel Furman especialmente para a retomada do filme.

A clareza desses efeitos, aliás, permite ao espectador ver em mais detalhes o momento em que a ferida grotesca formada na barriga de um personagem literalmente devora um corpo humano inteiro.

A saga em torno de "A Praga" é uma das mais fascinantes na incrível trajetória de José Mojica Marins. Começa na segunda metade dos anos 1960, quando, embalado pelo sucesso do coveiro psicopata Zé do Caixão em "À Meia-noite Levarei Sua Alma" (1964) e "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (1967), Mojica foi convidado pela TV Bandeirantes para apresentar um programa semanal de histórias macabras chamado "Além, Muito Além do Além".

Cada episódio era escrito por Rubens Francisco Lucchetti, contratado por Mojica para desenvolver ideias a partir de pontos de partida bem simples. "Normalmente, ele me dava uma única frase, e, então, eu tinha que criar toda a história", relembra Lucchetti à Folha.

Aos 92 anos e plenamente ativo em Jardinópolis (a 330 km de São Paulo), Lucchetti conta que "A Praga" surgiu da solicitação de Mojica de que ele escrevesse o roteiro sobre um homem amaldiçoado por uma bruxa.

Exibido na TV em algum momento entre 1967 e 1968, o episódio 13 de "Além, Muito Além do Além" contava as desventuras de Juvenal, rapaz que, ao provocar a ira de uma velha senhora, recebe a "praga" do título: "Suas carnes se abrirão em cancro, cairão em pedaços e arderão como brasas!". As fitas com os episódios do programa foram posteriormente reaproveitadas pela emissora para gravar outros materiais. Como consequência, todo "Além, Muito Além do Além" se perdeu.

Em março de 1969, Mojica e Lucchetti publicaram uma adaptação em quadrinhos de "A Praga", desenhada por Nico Rosso na edição número 2 da revista O Estranho Mundo de Zé do Caixão, pela editora Prelúdio. Uma década depois, Mojica voltou outra vez à história, dessa vez para levá-la ao cinema.

O momento era de dificuldades para o cineasta. "Mojica entrou na década de 1970 muito prejudicado pela censura a ‘Ritual dos Sádicos’ (1969) e fez uma sequência de filmes que, embora tornassem a filmografia dele bastante prolífica, eram progressivamente piores e mais precários, desinteressantes e até indignos do cineasta que era —com exceção de ‘Exorcismo Negro’ (1974), que ele fez com mais conforto por ser encomenda do produtor Anibal Massaini", descreve o crítico e pesquisador Carlos Primati, um dos maiores conhecedores da "mojicografia".

Crounel Marins, filho de Mojica, está creditado como assistente de produção em "A Praga". Aos 18 anos na época, trabalhou como faz-tudo no set do pai. Ele se lembra de que, de fato, era um período financeiramente delicado para o cineasta, em razão de projetos que não conseguia emplacar devido à fama de maldito capitaneada pela censura.

"A Praga" era, em certa medida, a aposta de Mojica em filmar um projeto pessoal de maneira rápida e barata. "Ele sempre gostou muito daquele episódio da série de TV e achava que seria fácil de fazer para o cinema, pois exigia poucos recursos e poucos efeitos especiais", diz Crounel.

A escolha por filmar em película Super-8, segundo contava Mojica, se deveu à promessa de algum técnico da Boca do Lixo, o centro de produção de cinema em São Paulo naquela época, de ampliar de graça o material para 35mm, o formato padrão para cinema. Contudo, a tal ampliação não aconteceu.

A frustração de não conseguir terminar o filme foi outro golpe na tentativa de Mojica de emplacar novos sucessos no cinema e dificultou mais suas condições. "Meu pai ia a pé do Brás, onde a gente morava, até o centro, pois não tinha dinheiro para o ônibus. Ele guardava para comprar cigarro", relembra Crounel.

Se finalizado quando previsto, "A Praga" seria a retomada do Mojica primordial, voltando ao horror que o consagrara principalmente entre camadas mais populares de espectadores, que lotavam as salas para ver suas empreitadas. O filme tem elementos típicos do cineasta, como as relações entre fé e ceticismo, razão e loucura, recalque e violência.

O enredo, um conto simples, de moral bem-estabelecida, retrata personagens do cotidiano urbano ordinário às voltas com fenômenos inexplicáveis que podem ou não ser fruto de alucinações.

"O que mais me encanta no cinema do Mojica —e que impede os filmes de perderem a capacidade de fascinar e emocionar— é a maneira com que ele lida com a loucura, através de delírios, de demência, paranoia, pesadelos", aponta Carlos Primati. "Ele não depende do choque, da violência e do horror explícito. Embora tudo isso esteja nos filmes, é a tensão entre os personagens que vai criando essas situações, até elas explodirem."

"A Praga" tem a propensão de Mojica por pequenas histórias de "castigos", algo bastante comum na produção de horror na Boca do Lixo paulistana dos anos 1970. "A formação do Mojica vinha, entre outros, de filmes com Boris Karloff, principalmente os clássicos de terror dos EUA. Esses filmes americanos sempre foram muito moralistas, pois trabalhavam dentro de um conjunto de regras de Hollywood que forçava essa prática. Eu acredito que o Mojica herdou essa noção do cinema de horror em que o vilão sempre era punido no final", comenta Primati.

Nas filmagens para concluir "A Praga" em 2007, Eugenio Puppo coordenou gravações em estúdio com um idoso Mojica, aos 70 anos, voltando a incorporar Zé do Caixão como o narrador da história.

O cineasta vinha da popularidade do "Cine Trash", na mesma Band de "Além, Muito Além do Além", e buscava recuperar, no cinema, o imaginário de seu personagem eterno. Visto hoje, "A Praga" é, ao mesmo tempo, póstumo e retroativo em relação à última aparição de Zé do Caixão no cinema, já que Mojica interpretou o coveiro em 2008 no derradeiro "Encarnação do Demônio".

É importante compreender que o Zé do Caixão de "A Praga" é um tanto diferente do personagem visto na trilogia formada por "À Meia-noite Levarei Sua Alma", "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" e "Encarnação do Demônio", que narra a saga do coveiro obcecado em gerar o filho perfeito.

O Zé de "A Praga" é um anfitrião que convida o espectador a compartilhar seus pesadelos, tal como se viu pela primeira vez em "O Estranho Mundo de Zé do Caixão" (1968), estreia nos cinemas da parceria de Mojica com o escritor Rubens Lucchetti e grande sucesso na época.

Na montagem de "A Praga", Puppo manteve o estilo abrupto e disruptivo do cinema de Mojica; fez a mixagem de som evitando "atualizar" o filme para padrões tecnicamente sofisticados. "Esse cuidado era importante para não deixar que um filme feito nos anos 1980 se perdesse através da história. Não queríamos modernizá-lo e sim manter a autenticidade, como se o tivéssemos encontrado naqueles rolinhos da forma como está agora", diz Puppo. "Quisemos transmitir a veracidade de ser um filme do mestre."

A confirmação de que tinha dado certo veio ainda em 2007, quando Puppo mostrou "A Praga" para Carlos Reichenbach. Durante a projeção, o produtor escutava o vozeirão do diretor de "Falsa Loura" (2007): "Isso aqui é um autêntico Mojica!".

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