ESG bem-feito evitaria escândalo da Americanas, dizem especialistas

Rombo contábil de R$ 20 bilhões, seja por erro ou fraude, tem raiz em falhas de governança corporativa

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São Paulo

A explicação para o escândalo de R$ 20 bilhões da Americanas ainda é incerta. Se as inconsistências no balanço são fruto de erro ou fraude caberá às autoridades que investigam o caso responder. Mas, independentemente da causa, especialistas dizem que uma política ESG bem-feita teria evitado o problema.

A sigla que virou febre no meio empresarial é a abreviação em inglês para ambiental, social e governança corporativa. No caso da varejista, este último pilar é o que está na raiz do rombo revelado na última semana.

Governança é a maneira como uma empresa organiza sua estrutura de tomada de decisões e dá transparência aos processos administrativos. Companhias com esse pilar bem desenvolvido são aquelas que cuidam da lisura de suas atividades, garantindo a independência do conselho de administração e investindo em mecanismos de prestação de contas.

Unidade das Lojas Americanas em Brasília - Ueslei Marcelino/Reuters

Considerando os parâmetros adotados pelo mercado, a Americanas tem uma boa avaliação sobre sua governança corporativa —pelo menos em teoria.

A varejista integra índices que são referência na Bolsa, como o Novo Mercado —que reúne empresas com "um padrão de governança corporativa altamente diferenciado", segundo a B3— e o ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial), dedicado a companhias com boas práticas ESG.

Contudo, mesmo participando da elite das boas práticas, a Americanas admitiu na última quarta-feira (11) uma inconsistência contábil bilionária em seus resultados, chocando clientes, instituições financeiras e agentes do mercado pelo tamanho da cifra.

A título de comparação, R$ 20 bilhões é o dobro do orçamento que o Ministério da Cultura terá em 2023.

O rombo foi revelado pelo então CEO Sérgio Rial ao pedir demissão apenas dez dias após assumir o cargo. Segundo ele, operações de "risco sacado", quando uma empresa contrata um banco para antecipar recebíveis a fornecedores, foram registradas incorretamente durante anos.

Em vez de serem consideradas dívidas com instituições financeiras, elas entravam como despesas com fornecedores, o que não comprometia o resultado da empresa.

Para Gui Athia, consultor internacional, o episódio pode ser considerado um caso de "governance washing".

A exemplo do greenwashing —quando uma companhia diz fazer mais pelo meio ambiente do que realmente faz— o termo se refere a um falso comprometimento com boas práticas de governança corporativa.

"Me parece estranho que uma empresa deste porte, com auditores do porte que tinha, não perceber isso com controles muito simples de governança", afirma.

Procurada, a Americanas não respondeu aos pedidos da reportagem até a publicação deste texto.

Segundo Athia, a crise pode ter um efeito cascata grande, e poderia ter sido evitada com aspectos de governança, o que envolve não só a Americanas, mas órgãos reguladores, empresas de auditoria e fundos de investimento.

"Como acreditar nas instituições envolvidas? As pessoas têm que acreditar em alguma coisa. Não podem colocar dinheiro embaixo do colchão ou deixar de trabalhar porque imaginam que a empresa tem um balanço que não está sendo transparente."

Marcos Rodrigues, sócio da BR Rating, agência brasileira de classificação de risco ESG, diz que o escândalo contábil indica claramente um "erro gravíssimo" de gestão.

"Não dá para levianamente fazer nenhuma acusação de que foi uma prática deliberada. Mas, independentemente disso, nenhuma instância da governança corporativa ter pego mostra que isso não estava sendo feito da melhor maneira", afirma.

Na visão dele, o conselho fiscal da Americanas, assim como o conselho de administração, diretoria e firma de auditoria têm responsabilidade no episódio.

"Estranha um número maior que o patrimônio líquido da empresa ficar tanto tempo sem ter muita transparência, que é um pilar da governança corporativa."

Rodrigues questiona a permanência da varejista nos índices do mercado financeiro, e acha oportuno que a própria Bolsa reavalie os mecanismos de admissão e controle dos indicadores.

Por nota, a A B3 disse estar levantando todas as informações disponíveis e avaliando os impactos do caso Americanas no ISE. De acordo com a metodologia do índice, uma empresa pode ser excluída em situações de crise, mas é preciso passar por um processo de investigação dos fatos.

Em conversa com jornalistas nesta terça (17), o presidente-executivo da B3, Gilson Finkelsztain, disse que as regras do Novo Mercado não preveem exclusão de empresas envolvidas em escândalos ou fraudes.

Para Roberto Gonzalez, especialista em governança corporativa, o rombo contábil revelado pela Americanas não tira a credibilidade do índice, que teve papel importante para estimular boas práticas no setor privado.

Contudo, ele concorda que o episódio sugere problemas na governança, ainda que na teoria tudo estivesse funcionando bem.

"Eu gostaria de dizer que governança corporativa é uma tábua de salvação, mas infelizmente isso não existe. O que sabemos é que ela torna mais difícil as coisas acontecerem", afirma.

Caso Americanas reflete obsessão por resultados

Fabio Alperowitch, fundador da Fama Investimentos, gestora de fundos com foco em ESG, diz que é possível olhar o episódio por duas perspectivas. Uma é entender a Americanas como responsável por um escândalo sem precedentes. Outra é vê-la como peça de um sistema maior.

"Temos no ramo empresarial uma cultura dinheirista, obsessiva por resultado financeiro, a despeito de qualquer coisa", afirma.

Em 2019, a Fama zerou sua exposição a Americanas por questões ligadas a ESG. Em relatório publicado à época, a gestora justifica a decisão devido à "alta rotatividade de executivos, seja por algumas evidências de relacionamento desgastado na cadeia de suprimentos, seja por certa opacidade das demonstrações financeiras e constante dificuldade de acesso à companhia".

Além disso, diz Alperowitch, o tamanho dos juros a pagar pela Americanas não batia com o resultado financeiro, dando a entender que era referente a uma dívida muito maior.

O gestor também comenta o fato de a varejista ter entre seus principais acionistas os fundadores do 3G Capital, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira.

O trio de bilionários tem boa reputação no mercado, mas, para Alperowitch, é preciso questionar isso. "Boa parte [da reputação] é reflexo do tamanho da conta bancária. O mercado endeusa demais pessoas que ganham muito dinheiro".

três homens grisalhos, de terno, sorriem
O trio de bilionários da 3G Capital, Beto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles. - Divulgação

Ele lembra outros episódios de governança com empresas controladas por executivos do trio.

Em 2019, por exemplo, Kraft Heinz teve que fazer um grande ajuste de US$ 15,4 bilhões em seu balanço, depois de ter supervalorizado os valores de seus ativos.

Após acordo de US$ 62 milhões com a SEC (órgão regulador do mercado de capitais nos Estados Unidos), o processo movido contra a empresa foi encerrado, sem que a Kraft admitisse ou negasse má conduta contábil.

Vanessa Pinsky, especialista em ESG e pesquisadora da USP, também destaca a "obsessão por custos e despesas", expressão que aparece na política de sustentabilidade da Americanas como "as únicas variáveis sob o controle da companhia".

"Ser obcecado por resultados, como um dos principais valores de uma empresa, pode levar a problemas éticos e de alinhamento com as expectativas dos stakeholders [partes interessadas]", diz.

"De nada adianta ter processos robustos de compliance se não houver uma cultura ESG e de integridade na empresa", acrescenta.

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