Descrição de chapéu PIB juros Selic

É difícil ter regra perfeita, mas arcabouço reduz incerteza, diz Vescovi

Ex-secretária do Tesouro avalia que governo precisará manter boa relação entre Poderes para avançar no ajuste

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

Aprovado na Câmara dos Deputados e prestes a ter o aval do Senado, o novo arcabouço fiscal reduz incertezas em relação ao futuro das contas públicas no Brasil, embora seja difícil obter uma regra perfeita, avalia a economista-chefe do Santander Brasil, Ana Paula Vescovi, em entrevista à Folha.

Segundo ela, o novo marco não será, sozinho, suficiente para estabilizar a dívida pública. Por isso, o governo precisará manter o engajamento do Congresso e do Judiciário no alcance de medidas que contribuam para reequilibrar as finanças do país.

Vescovi comandou o Tesouro Nacional entre maio de 2016 e abril de 2018, quando assumiu a secretaria-executiva do Ministério da Fazenda até o fim daquele ano. A partir dessa experiência, ela afirma que o cenário de colaboração entre os Poderes hoje é positivo, mas alerta de que "as pressões de grupos de interesse existem".

A economista-chefe do Santander, Ana Paula Vescovi - Ronny Santos - 27.jan.2022/Folhapress

"Esse apoio não pode esmorecer. Tem que ser permanente, até se conseguir fazer o ajuste fiscal no Brasil", diz ela, que também é colunista da Folha.

O Santander revisou a projeção de crescimento neste ano de 1% para 1,9%. Por quê? Foram basicamente dois motivos. Primeiro, essa supersafra. A gente vai ter um PIB [Produto Interno Bruto] agro, na nossa projeção, crescendo 12% neste ano. Pesa pouco no PIB total, mas vai ajudar a atenuar essa fase cíclica contracionista. E ajuda a desinflacionar. A gente está apostando que possa ter uma deflação de alimentos este ano. Isso é superimportante, porque é ganho de poder aquisitivo para as pessoas de mais baixa renda.

O outro fator é o mercado de trabalho resiliente. Temos salários reais em 12 meses crescendo, descontada a inflação, perto de 8%. Isso ajuda a dar sustentação ao consumo. A massa agregada de salários, que une não só os salários do setor privado, mas também pensões, aposentadorias, transferência de renda de programas sociais, deve crescer 4% neste ano. Isso vai ajudar também a sustentar o PIB.

Há expectativa de desaceleração da inflação no curto prazo, mas o relatório de vocês cita incerteza para médio e longo prazo. O próprio Banco Central cita a desancoragem de expectativas para manter a taxa de juros no nível atual. O que motiva essa incerteza? A gente já cumpriu uma parte importante do processo de desinflação, talvez até tenha alguma coisa ainda para vir, principalmente na área de alimentos. Mas tem uma outra parte mais associada a serviços que está bem resiliente ainda, dado que o mercado de trabalho está se sustentando. A desinflação dos serviços é mais lenta. É esse o ponto que o BC tem ressaltado. Nós chegamos agora na fase mais difícil, e é preciso esperar os resultados de uma política que está fazendo efeito.

O governo tem criticado o patamar de juros, pedindo um aceno do BC com o corte da Selic. Muitos analistas esperam que isso ocorra a partir de agosto. Já é o momento de iniciar esse ciclo de redução? A comunicação do BC está bem clara. Se vai ser em agosto ou setembro, vai depender um pouco dos dados à frente. Mas nós conjugamos, sim, da opinião de que a partir de agosto e, talvez com os dados atuais, em setembro, o BC tenha condições de iniciar esse ciclo de distensão da política monetária.

Sei que uma fase de contração monetária é difícil para todo mundo, mas temos confiança de que a política está funcionando. Basta paciência para ver que realmente temos um combate ao inimigo de fato, que é a inflação. Não existe outro remédio para combater a inflação senão conter a demanda.

Há espaço para o governo mexer na meta de inflação? Não vejo e não acredito que vão mexer. É tão contraproducente que tenho certeza de que essa discussão está sendo feita ou vai ser feita tecnicamente. Se tiver uma decisão diferente disso, vai ter piora nos preços de ativos.

Não tenho dúvida alguma de que o Brasil não deve tolerar qualquer nível maior de inflação. O nosso inimigo é inflação, não são os juros. Juros são uma decorrência de um processo de choques que vieram e que a gente está ajustando. O Brasil tem a grande oportunidade de sair na frente no processo de relaxamento monetário por ter controlado a inflação antes de outras economias.

Ter uma inflação de 3%, igual aos demais países emergentes, significa compromisso de longo prazo para melhorar a situação de desigualdade de renda. E acho até que deveria manter o horizonte de referência [de ano-calendário], que está funcionando. Nós alargamos já com esse ciclo, mantendo mais alto por mais tempo, aceitando uma convergência mais longa. Mas ok, pode vir alguma mudança, seria positivo a gente falar "a meta de inflação é 3% e ponto".

Como a aprovação do novo arcabouço fiscal ajuda ou não o cenário econômico? Já ajudou. Os mercados melhoraram substancialmente nas últimas semanas, e parte dessa melhora vem da percepção de que nós temos uma regra agora conhecida para conduzir a política fiscal. Não haverá um vácuo. Tem um esforço de controlar a despesa, uma comunicação do governo realmente preocupada em fazer contenção e revisão de gastos.

A partir da aprovação na Câmara, até das primeiras manifestações do Ministério da Economia com o Ministério do Planejamento, já veio uma reação muito positiva. Isso ajuda a puxar as expectativas, a fazer uma convergência para as metas de inflação. E ajuda o trabalho do BC.

A sra. estava na equipe que propôs e implementou o teto de gastos. À luz dessa experiência, quais são os pontos positivos e negativos do novo arcabouço em análise pelo Congresso? O ponto positivo é que ele tem um esforço de controle de gastos. Tem lá a banda de gastos, que visa a observar como é o desempenho da receita para definir o espaço para gastar no ano subsequente. Tem a preocupação de criar flexibilidade para não incorrer num dos principais problemas da regra do teto, que era fácil de entender, mas tinha certa inflexibilidade.

Regra perfeita é difícil ter. A regra do teto era muito simples, e por ser simples ajudou a coordenar expectativas na política fiscal. Essa regra é um pouco mais complexa, e a gente está com dificuldade de fazer as contas e chegar aos números do governo. Mas ela, sim, reduziu a incerteza, ainda que tenha alguma modificação no Senado.

Tem aí um desafio. A regra sozinha não vai conseguir estabilizar a dívida pública, que vai continuar crescendo por alguns anos. Paralelamente à regra, o governo anunciou as metas fiscais, que são muito ousadas. Tão ousadas que já tem uma divergência: o governo anunciou 0,5% [do PIB] de déficit neste ano, o próprio Tesouro alega que tem como meta mais crível -1%. Então acho que esses são os pontos: mais flexível, mais adaptável, mas com menor capacidade de ancorar as expectativas em termos de resultados fiscais.

Há ao menos um equilíbrio, ou falta algo para que ela seja de fato crível? Os riscos de execução são grandes, vai ter que acompanhar ao longo do tempo. Eu acompanhei o ajuste fiscal logo após o Plano Real. Não tinha regra, não existia a Lei de Responsabilidade Fiscal. Tinha vontade de fazer o ajuste. Eu me remeto a esse período para dizer que, acima de tudo, é um engajamento da sociedade. A compreensão do Congresso, do Poder Judiciário, da importância de o Brasil ter contas públicas em ordem e principalmente, um governo organizado, conseguindo entregar.

Como avalia esse engajamento hoje? O ministro Fernando Haddad tem agradecido tanto ao Congresso quanto ao Judiciário por terem encampado as medidas, mas a sra. já esteve no governo e conhece barreiras que muitas vezes são colocadas. O governo está conseguindo espaço para dialogar sobre a importância do ajuste fiscal. Está recebendo apoio do Legislativo, do Judiciário. A coordenação que vem da equipe econômica tem sido um fator positivo a atrair apoios.

Precisa persistir nesse esforço, porque ao longo da execução a gente vai perceber que não é tão fácil. As pressões de grupos de interesse existem, e eles acham que sua demanda é mais importante do que todo o resto, enquanto a demanda sobre políticas públicas é quase infinita. É por isso que existe regra, porque o cobertor é curto mesmo. Tem que eleger prioridades.

Esse apoio não pode esmorecer. Tem que ser permanente, até conseguir fazer o ajuste fiscal no Brasil. A gente precisa voltar a ter superávit primário, estabilizar a dívida pública e trazê-la para um patamar menor, mais seguro e sustentável.

A regra deve ser apertada, se não agora, em algum momento mais à frente? É difícil falar. A sociedade faz escolhas, mas é importante levar às lideranças a compreensão das escolhas. Se a gente fizesse um ajuste fiscal mais contundente, colheria mais rapidamente os benefícios de juros menores e crescimento mais estável.

Vimos recentemente o lançamento de um programa para incentivar a aquisição de automóveis e o BNDES reivindicando uma participação maior na concessão de crédito. Essas medidas geram desconfiança? A gente tem que ter uma baita atenção aos erros do passado, ao fato de que às vezes antecipa demanda e gera problemas depois na normalização dessa demanda. Distorce decisões alocativas, penaliza os governos numa tentativa de atenuar alguns elementos cíclicos. O Brasil está cheio de experiências que não deveria esquecer.

A S&P melhorou a perspectiva da nota de crédito do Brasil. É um voto de confiança? É um voto de confiança, sim. O mais importante agora é observar a execução da política fiscal. E esperar, porque é uma sinalização. A decisão de upgrade [melhora da nota] ainda não veio, mas minha aposta é que, se a gente aprovar uma reforma tributária legal, a gente leva esse upgrade.

A sra. está confiante de que dessa vez ela será aprovada? Estou confiante. Acho que não vai ser a reforma ideal, mas vai ser a reforma possível. Ela é transformadora porque vai tirar um absurdo de litígios e incertezas jurídicas. E vai abrir a possibilidade de fazer outras reformas que serão igualmente importantes, dentro da área tributária inclusive, de concessão de subsídios, de benefícios que não estão sendo avaliados devidamente. Estamos em um momento ímpar. Espero que não desperdicemos.


RAIO-X

Ana Paula Vescovi, 54

Economista-chefe do Santander Brasil. Durante o governo Temer, foi secretária do Tesouro Nacional e secretária-executiva do Ministério da Fazenda. Também foi presidente dos conselhos de administração da Caixa e do Instituto de Resseguros do Brasil, além de secretária da Fazenda do Espírito Santo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.