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Ex-editor do BuzzFeed revela glórias e fracassos do mercado da viralização

Livro reconstitui o boom dos blogs dos anos 2000 até o fenômeno Trump nas redes sociais

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São Paulo

Há oito anos, a população mundial conectada à internet parecia se dividir sobre uma única questão: o vestido da foto é azul e preto ou branco e dourado?

Uma desconhecida enviou um email para uma funcionária do BuzzFeed dizendo que as pessoas estavam ficando loucas com a foto de um vestido que ela publicara no Tumblr (uma rede social hoje quase extinta). Parte enxergava a peça de uma cor, parte tinha certeza de que era de outra.

Cates Holderness olhou para a foto, tosca e estourada, e dividiu a pergunta com os colegas de Redação. Pouco depois, 20 pessoas debatiam em torno da sua mesa, cada um com sua certeza.

Em um texto de duas linhas, Cates lançou a dúvida no site, às 20h14: "Quais as cores desse vestido?", e foi embora; 26 de fevereiro de 2015 virou para o BuzzFeed "o melhor dia da internet".

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Funcionários na sede do BuzzFeed, em Nova York - Chang W. Lee - 7.ago.14/The New York Times

Essa história é recuperada em "Traffic" (tráfego), livro lançado por Ben Smith, editor-chefe do BuzzFeed de 2011 a 2020, ex-colunista de mídia do New York Times e hoje chefe do Semafor, cofundado por ele. A obra não tem previsão de lançamento no Brasil.

O livro conta a história de "genialidade, rivalidade e desilusão na corrida bilionária para viralizar" de veículos de mídia americanos como BuzzFeed e Huffington Post, que emergiram com as redes sociais modernas, ajudaram a formar uma nova cultura de jornalismo na internet e submergiram.

Como testemunha privilegiada e várias vezes protagonista dos enredos dessa cena dos anos 2010, Smith expõe bastidores de negócios, intrigas em festas e perfis detalhados de pioneiros da comunicação digital, sobretudo de Nick Denton, fundador de sites como Gawker e Gizmodo, e de Jonah Peretti, cofundador do BuzzFeed e do Huffington Post.

Os jornalistas conservadores Andrew Breitbart, Matt Drudge e até Steve Bannon, estrategista de Donald Trump, também aparecem como figuras relevantes desse circuito.

O livro relata a corrida econômica para se firmar como uma nova empresa de mídia na era de ouro do Facebook. Trata de discussões que surgiram há mais de uma década e que estão longe de serem pacificadas.

A relação entre jornalismo, política e algoritmo, o jogo de força entre empresas de comunicação e redes sociais, as regras impostas pelas big techs e a ascensão digital de líderes da extrema-direita aparecem a partir da história de jovens que queriam testar novos usos da internet.

Não é mais um livro sobre empreendedores do Vale do Silício, mas sobre quem quis dominar ou driblar as regras das tecnologias do Vale do Silício.

O principal da história se passa em escritórios de SoHo, bairro de Nova York, onde a premissa era gerar muito tráfego na internet, cliques. É a partir dessa cena, conta Smith, que se criou a base para medir audiência na internet, tal qual todos os grandes veículos de jornalismo fazem hoje —ou como fazem, também, os influenciadores em suas contas de TikTok.

Os modelos para vender propaganda online e para monitorar o sucesso de qualquer página da web foram criados na órbita dos personagens retratados por Smith (e em certa medida por ele).

A foto do vestido –visto por 67% das pessoas como branco e dourado e como 33% como preto e azul, segundo a enquete do BuzzFeed— não é uma mera anedota sobre mobilização online universal. É o tipo de brincadeira que Peretti vislumbrava desde o primeiro conteúdo viral de sua autoria, criado a partir de uma troca de emails com a Nike.

Quando jovem, Peretti queria costumizar um tênis da Nike com um palavrão. Diante de recusas da empresa, enviou um pedido final por email: "Você pode, por favor, me enviar uma foto da menina vietnamita de dez anos que está fazendo meu tênis?".

Ele encaminhou a troca de mensagens com a Nike para dez amigos, e logo a história escalou para várias caixas de entrada, num tipo de viralização via email que ficou famosa nos Estados Unidos. Em algumas semanas, ele explicava o caso em uma entrevista em rede nacional ao programa de TV Today Show, da NBC.

No BuzzFeed, o vestido reuniu mais de 700 mil pessoas ao mesmo tempo num único link, um feito astronômico na época. Para o Facebook, no entanto, o vestido virou uma preocupação. A publicação não correu a rede social como outros conteúdos de sucesso, que seguem certo padrão de ascensão. É como se ele tivesse quebrado as estruturas imaginárias da rede.

Executivos da companhia passaram a conceber que tinham zero controle sobre o poder de alastramento dos algoritmos. "O vestido era inofensivo, mas o próximo meme a colonizar a plataforma inteira em questão de minutos poderia não ser, e aquele já tinha se movido rápido demais para a equipe de Menlo Park [cidade-sede do Facebook] controlar", escreve Smith, após recuperar uma conversa preocupada que um diretor da companhia teve com Peretti em uma festa.

Foi a última vez que um conteúdo viralizou assim no BuzzFeed. Nos anos seguintes, o Facebook passou a afunilar mais as recomendações de seus algoritmos às pessoas e a tentar mantê-las em suas bolhas –o que, sabe-se, gerou boas e más consequências.

print da notícia do BuzzFeed que pergunta qual a cor do vestido
Publicação viral do BuzzFeed sobre o vestido "que muda de cor", em 2015 - Reprodução

O livro foca, boa parte, a relação entre a nova imprensa, que queria se diferenciar dos jornais tradicionais, e os modelos e métricas impostos por Facebook e Twitter. Mostra como esses novos sites trabalharam com a rede de Mark Zuckerberg, não contra contra ela. Ao fim, evidencia como lutam para sobreviver.

"Traffic" descreve uma cena blogger nova-iorquina anterior a essas plataformas, no momento em que investidores voltavam a ter interesse em tecnologia após a bolha da internet, crise que durou até meados dos anos 2000.

Tanto Nick Denton como Jonah Peretti captaram talentos da blogosfera, que viraram jornalistas e, por vezes, tinham seus furos recuperados pela grande imprensa.

Denton, calculista, recluso e investigador de status social, via a internet como um negócio; Peretti, inventivo e ativista ligado à esquerda, como "um lugar para experimentos sociais". A história de ambos se entrelaça pelas conexões sociais e geográficas, pois seus escritórios ficavam no mesmo bairro, e pela busca ensandecida por clique, quando o modelo de publicidade digital ainda não era tão óbvio.

O primeiro lançou o Gawker, um controverso veículo de fofoca, precursor da divulgação de nude de famosos em grande escala, pelas também extintas "sex tapes". O site aterrorizava celebridades e políticos e faliu após perder um penoso processo judicial para o lutador Hulk Hogan, cujos advogados eram pagos pelo bilionário Peter Thiel, que quis se vingar de um título malicioso do site divulgado anos atrás.

Peretti, por sua vez, se aliou a Arianna Huffington, ex-conservadora e depois candidata independente ao governo da Califórnia, e a Kenneth Lerer, cofundando o Huffington Post. Peretti era o menino-gênio por trás do Huff e brincava no BuzzFeed nas horas livres, até este virar seu principal empreendimento.

Smith reconstitui a entrada das campanhas políticas nas redes sociais. Mostra como Peretti captou —com dados, não impressões— que Barack Obama era mais "viralizável" do que Hillary Clinton antes das primárias democratas de 2008. O Huffington Post abraçou a campanha de Obama —Arianna era ex-rival de Hillary, e Kenny apoiava o então senador.

Poucos anos depois, lembra o autor, as redes sociais, até então povoadas por progressistas defensores de uma comunicação descentralizada, só se interessavam em um nome, Donald Trump.

Smith traz momentos divisores dessa época recente da política americana. O BuzzFeed analisava "dados de sentimentos" fornecidos pelo Facebook –basicamente uma classificação de reações positivas e negativas do público acerca de determinado assunto na internet.

A empresa, de repente, parou de compartilhar essas informações. "Um funcionário do Facebook me disse que era muito trabalhoso manter a base de dados, embora eu seja um pouco cético sobre essa história", escreve.

Ele acredita que a empresa tenha parado de repassar os dados porque talvez aqueles jovens funcionários de Palo Alto, antes orgulhosos de fundarem a casa do "populismo liberal de Obama", tivessem vergonha de vê-la "invadida por baby booomers bravos que amavam Donald Trump".

Smith não se arrisca na futurologia sobre mídia e jornalismo diante das incertezas sobre o modelo de negócios desse mercado. Entende que "a internet", como se convencionou chamar o que acontece nas redes, virou a própria sociedade e que as forças que a dominam —seja o populismo de esquerda, seja de direita— são forças sociais, não digitais. Um mês após Smith publicar o livro, o BuzzFeed encerrou sua divisão de notícias.

Traffic: Genius, Rivalry, and Delusion in the Billion-Dollar Race to Go Viral

  • Preço US$ 30 (352 págs.)
  • Autoria Ben Smith
  • Editora Penguin Press
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