Terras brasileiras em mãos estrangeiras superam o registrado pelo Incra, mostra estudo

Parecer deve ser usado em disputa bilionária pela Eldorado que envolve os irmãos Batista; nesta terça (30), TRF-4 julgou procedente uso de ação popular em processo que corre em SC

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São Paulo

Operações que envolvem uma área significativa de terras compradas por empresas estrangeiras não estão contabilizadas pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), mostra levantamento feito pela LCA Consultoria Econômica para embasar a disputa bilionária entre a Paper Excellence e a J&F, dos irmãos Batista, pela Eldorado Celulose.

O estudo compila dados da base independente Land Matrix, financiada pela Comissão Europeia, para mostrar que estrangeiros têm no Brasil 3,33 milhões de hectares —cerca de 15% mais do registrado no Incra. A base do SNCR (Sistema Nacional de Cadastro Rural), disponibilizado pelo órgão federal, contabiliza 2,8 milhões de hectares de terras rurais em propriedade de estrangeiros.

A Land Matrix registra transações com 200 ou mais hectares de pessoas jurídicas em todo o mundo e acompanha a compra de terras brasileiras por estrangeiros desde 2000. A base do Incra, por sua vez, registra terras de todos os tamanhos, de pessoas físicas e jurídicas estrangeiras. A segunda deveria ser superior a primeira, e não o contrário.

Vista aérea de fábrica com vários cilindros metálicos verticais e prédios de formato retangular
Fábrica da Eldorado em Três Lagoas (MS); controle é disputado entre J&F e Paper Excellence - Divulgação

"Disso se conclui que muitas operações não passaram pelo Incra", diz o coordenador do parecer, o economista Bernardo Gouthier Macedo, consultor da LCA desde a fundação em 1995.

Ao consultar os investidores em terras no Brasil, a Land Matrix identificou que todos os 123 negócios computados ao longo de 23 anos tinham investido em terras para atender atividades produtivas específicas, com destaque para a produção florestal.

"A gente não entra na controvérsia política ou societária, mas, a partir de diferentes dados, tratamos dos possíveis impactos das discussões no ambiente de negócios envolvendo terras", explica

No conjunto das informações coletadas, fica claro, por exemplo, que o controle acionário é elemento importante nos negócios fechados por estrangeiros no Brasil. Levantamento a partir do TTR Data, plataforma que mapeia fusões e aquisições, mostra que foram realizadas 737 operações envolvendo estrangeiros de 2010 a 2023. Em 535 delas, o equivalente a 72,6%, os estrangeiros assumiram o controle das empresas.

Nos setores que dependem do uso da terra, como agricultura e pecuária, plantio florestal ou mesmo energia, para instalação de parques eólicos ou solares, a questão fundiária também tem peso. Foram realizadas, no mesmo período, 241 transações nessas áreas de negócios, sendo que em quase metade, 49%, as terras eram essenciais para as atividades operacionais, seja por propriedade ou arrendamento.

A posse da terra, no entanto, é um elemento muito mais relevante em transações que envolvem o agronegócio no sentido mais tradicional do termo: plantar e colher. Controle da terra em atividades associadas à indústria têm um peso menor.

Segundo o Land Matrix, de 2010 para cá, quase 1,9 milhão de hectares foram negociados em 79 operações de cinco setores: agricultura, pecuária e serviços relacionados, produção florestal, energia, extração de minerais metálicos e extração de minerais não metálicos.

Nesse conjunto, 18 operações de agropecuária e atividades correlatas ficaram com 75,8% das terras. A produção florestal, responsável por 37 negócios —praticamente o dobro—, ficou com 15% do total das terras negociadas. Trata-se de uma sinalização de que setores industriais que dependem da terra podem estar fazendo o chamado planejamento fundiário —buscando alternativas à lei para conseguir os insumos.

O parecer ainda destaca que muitos são os países que adotam medidas para proteger soberania nacional, mas com equilíbrio, porque também estão interessados em atrair o investimento estrangeiro e seus efeitos benéficos sobre o crescimento econômico e geração de empregos.

Dados reunidos pela LCA mostram que, no ano passado, cultivos e criação de animais para indústria alimentícia e para produção de biocombustíveis, produção florestal para fabricação de papel e celulose, geração de energia elétrica a partir das fontes eólica e solar, indústria extrativa de minerais metálicos e não metálicos responderam, no conjunto, por 56% da arrecadação nacional de ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural).

Segundo o parecer, o investimento direto por estrangeiro nesses setores ocorre principalmente por posição de controle: 89% das empresas que recepcionam investimento estrangeiro possuem 50% ou mais do seu capital nas mãos de estrangeiros.

Empresas investidas por estrangeiros também empregavam cerca de 3 milhões de trabalhadores em 2020. Atualmente, 43% dos trabalhadores do setor de energia estão de empresas com capital estrangeiro.

Macedo defende que é preciso cuidado com a troca de farpas jurídicas em um negócio do porte da Eldorado para não afetar esse ambiente de negócios.

"O Brasil não está em posição de esnobar investimentos, e o tema é sensível nesse aspecto. Uma coisa é discutir o papel do capital estrangeiro na economia, outra é usar essa questão como arma num litígio privado, que pode extrapolar, comprometendo negócios já estabelecidos ou inibir novos fluxos de capital estrangeiro."

PARECER SERÁ APRESENTADO PELA PAPER EXCELLENCE, EM DISPUTA COM A J&F

O estudo da LCA está sendo preparado para ser apresentado pela Paper Excellence, do empresário indonésio Jackson Widjaja, como um parecer sobre efeitos econômico da aplicação de leis que regem a compra e o arrendamento de terras rurais por estrangeiros no Brasil.

A avaliação será utilizada na nova rodada de embates judiciais dentro da disputa com a J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, pelo controle da Eldorado Brasil Celulose.

Paper e J&F negociaram o controle da Eldorado em 2017, mas os vendedores questionam o processo e até hoje a compra não foi efetivada. O negócio é avaliado em R$ 15 bilhões.

Na etapa atual de embates, a Paper é questionada em diferentes frentes por não ter submetido o negócio à análise do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Segundo órgão, a Eldorado tem cerca de 14, 5 mil hectares de terras rurais, mais 400 mil hectares arrendados. Nesta terça-feira (30), ocorreu julgamento sobre o caso no TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região).

No Incra, o processo contra a Paper foi deflagrado por uma denúncia anônima. A empresa já apresentou dois pareceres jurídicos, um da jurista Ellen Gracie, primeira mulher a integrar o Supremo Tribunal Federal, e outro do ex-advogado-geral da União Luis Inácio Adams.

Ao avaliar as exposições, no final de junho, o Incra entendeu que o procedimento de compra e venda da Eldorado, por estar em discussão judicial, ainda não foi concluído, e sugeriu que o processo fosse encaminhado à apreciação da Procuradoria Federal Especializada para manifestação acerca dos aspectos jurídicos dos pareceres. Em resposta, o recurso foi negado.

O parecer econômico da LCA não foi apresentado no julgamento desta terça. Na atual etapa, o TRF-4 não julgou o mérito da questão. Avaliou o uso de uma ação popular como instrumento para suspender a venda da Eldorado.

A ação foi apresentada pelo ex-prefeito de Chapecó, Luciano Buligon, mas rejeitada em primeira instância. A juíza Heloisa Menegotto Pozenato, da 2ª Vara Federal do município, entendeu que uma ação popular não seria adequada para tratar do tema. Nem chegou a julgar mérito. Houve recurso, que foi acolhido pelo desembargador Rogério Favreto. Nesta terça, os demais desembargadores, também sem julgar o mérito, avaliaram que a ação popular é instrumento adequado, e a discussão volta para a primeira instância.

Procurado pela Folha para comentar a conclusão do parecer, o Incra destacou a diferença entre cadastro e registro. Afirmou que atua com cadastro territorial de imóveis em sua base de dados, e que registro é competência dos cartórios de imóveis. Os números cadastrados junto ao órgão são fruto do fluxo de processos que chegam à autarquia.

A Folha fez contato com J&F para que comentasse o litígio, mas a empresa não se manifestou até a publicação deste texto.

CONHEÇA A REGRA EM VIGOR

Parecer da AGU (Advocacia-Geral da União), de agosto de 2010, resgatou os princípios da lei 5.709/71, que determina:

  • empresa estrangeira, bem como empresa brasileira sob controle estrangeiro que queira fazer aquisição, locação, arrendamento ou contrato de parcerias de terras rurais precisa submeter um projeto de exploração e solicitar autorização ao Incra para realizar tais operações
  • caso a propriedade tenha mais de 100 MEIs (Módulos de Exploração Indefinida, que não tem valor fixo e varia de acordo com área do município), a operação também precisa ser aprovada pelo Congresso
  • propriedades rurais controladas por estrangeiros não podem ultrapassar 25% do território municipal e, quando se tratar de uma mesma nacionalidade, o limite ficará restrito a 10% do território do município
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