Descrição de chapéu Coreia do Norte

Crescimento de mercados e comércio causa transformação na Coreia do Norte

Atividade surgida nos anos 1990 no país ameaça o regime por um lado e o ajuda de outro

Operário opera máquina com peças de tênis empilhadas à sua frente
Han Kyu Chol, 47, chefe de oficina na fábrica de sapatos Ryuwon, em Pyongyang e operário padrão em setembro de 2018 -  Ana Estela de Sousa Pinto/Folhapress
Ana Estela de Sousa Pinto
Pyongyang

A Coreia do Norte de hoje não é a mesma de uma década atrás, afirma o embaixador brasileiro Roberto Colin, que chefiou a missão diplomática no país de 2012 a 2016.

“As instituições políticas, a economia e a sociedade, todas experimentaram mudanças importantes —possivelmente duradouras— nesse período”, afirma ele.

Na economia, o principal fenômeno é a expansão do comércio e dos mercados. A atividade, que surgiu espontaneamente nos anos 1990 como alternativa de sobrevivência em meio a grave crise econômica, manteve-se sob atitude oscilante do governo, que ora tentou sufocá-lo, ora preferiu vigiá-lo e lucrar com ele.

A ascensão de Kim Jong-un, em 2011, reacendeu as expectativas de reforma econômica no país, diz Colin, mas o caminho não deve ser como o trilhado por Deng Xiao Ping no final dos anos 1970 na China.

“Em todos os níveis, a China daquela época tinha condições muito mais favoráveis. Deng Xiao Ping tinha plena consciência da crise que se abatia sobre o país, estava decidido a revertê-la e tinha o poder político para isso”, afirma Colin.

Kim Jong-un, por seu lado, parece ter consciência da situação e o desejo de mudá-la, “mas não é certo que disponha dos meios para implementar eventuais reformas”, afirma o embaixador.

Um dos motivos é que, no nível doméstico, o sistema político de liderança coletiva da China do final dos anos 1970 era mais flexível e pragmático.

Na Coreia do Norte atual, o poder hereditário e o dogmatismo da ideologia juche limitam a ação do ditador.

No nível global, a importância estratégica da China e os avanços nas relações com os EUA e o Japão impulsionaram as reformas de Deng, enquanto que as relações conflituosas da Coreia do Norte criam barreiras importantes.

Entre elas, sanções que fecharam em 2016 a zona mista de produção industrial na fronteira com a Coreia do Sul e os bloqueios da ONU, que em 2017 baniram 90% das exportações norte-coreanas de carvão, ferro e pescados.

Segundo os sul-coreanos, as barreiras derrubaram o PIB norte-coreano em 3,5% em 2017. Já segundo o professor Ri Gi-song, em entrevista à agência japonesa Kyodo News, o ano passado registrou alta de 3,7%, com PIB de US$ 30,7 bilhões.

O regime norte-coreano deixou de publicar estatísticas econômicas em 1960, e estimativas são feitas hoje em dia por grupos de estudo no exterior, com base em imagens de satélites, mapas de calor, espiões, vazão de água nas barragens, fumaça nas chaminés, tamanho dos campos de arroz.

Para o embaixador Colin, embora as elites políticas temam ser alijadas se uma reforma mais ampla for levada a curso, os mercados devem ser um fator indutor de mudanças não apenas econômicas mas também sociais e políticas.

Em vez de reformas feitas de forma institucional, de cima para baixo (como ocorreu em grande medida na China), a influência dos mercados poderá, “lenta mas definitivamente, transformar a Coreia do Norte de baixo para cima”, afirma Colin.

Segundo o diplomata, a economia da Coreia do Norte é mais sólida do que se imagina. “A atividade provou ser persistente e adaptável, com importante contingente atuando na economia paralela ou nos mercados privados.”

Embora haja mudanças provocadas pelo surgimento de uma economia de mercado incipiente e não planejada, isso não implica necessariamente risco político para Kim Jong-un.

“O colapso da Coreia do Norte está sendo previsto há pelo menos 20 anos, mas o regime conseguiu sobreviver a todas vicissitudes, parecendo estável e sustentável”, afirma o embaixador.

Além da falta de números, outra dificuldade para entender a atual economia da Coreia do Norte é que ela é híbrida. Em algumas áreas, opera de maneira capitalista, pressionada pelo surgimento espontâneo do mercado, mas sem as instituições e práticas que permitem ao capitalismo ser eficiente.

O resultado, segundo Colin, é que “por uma lado, a Coreia do Norte já não se beneficia de um sistema de gestão socialista em pleno funcionamento e, por outro, ainda não criou condições para se beneficiar plenamente de uma economia de mercado em pleno funcionamento”.

É esse dilema que a liderança do regime norte-coreano tenta solucionar.

O setor informal, segundo analistas estrangeiros, é responsável por uma significativa contribuição para a sobrevivência do regime e até mesmo um crescimento modesto da economia norte-coreana.

O Instituto de Política Econômica Internacional (Seul) afirma que 17,4 milhões de pessoas (ou 70% da população) retira renda de alguma atividade informal.

Por outro lado, a insegurança jurídica (resultado da ausência de direitos de propriedade) e a atitude dúbia do governo seguram investimentos.

Paradoxalmente, esse pode ser um dos motivos pelos quais a economia norte-coreana consegue resistir mais às sanções, escreve o especialista em Coreia do Norte Marcus Noland, do Instituto para Economia Internacional Peterson: quando a atividade é muito constrangida, qualquer relaxamento traz grandes ganhos de produtividade.

Para Colin, a economia de mercado deve continuar a crescer no país. No poder, Kim Jong-un segue caminho diverso de seu pai, Kim Jong-il, que tentou conter os mercados à força e com reformas monetárias, provocando insatisfação e até mesmo protestos.

“Embora o regime tenha procurado manter a estrutura socialista da economia pelo menos institucionalmente, a economia privada continuará a ser tolerada, mas sob controle. Com as crescentes sanções internacionais, não lhe resta outra opção”, diz o embaixador.

O risco político, segundo ele, é que a economia privada cria uma rede de informação e comunicação e traz mobilidade e desigualdade crescente de renda entre regiões, classes e até mesmo gerações.

“Em particular, a desigualdade de renda está transformando a ordem política existente”, afirma ele. Em vez da lealdade ao regime, a hierarquia começa a ganhar contornos socioeconômicos.

Para Colin, porém, a economia privada poderá tanto minar como impulsionar o regime norte-coreano.

De um lado, ela pode erodir o poder oficial ao reduzir o controle estatal sobre a sociedade e levar a uma atitude mais cética sobre a ideologia do regime.

De outro lado, pode servir ao regime aliviando o impacto da escassez de bens, ajudando a economia centralmente planificada a funcionar e, ao mesmo tempo, adotando medidas que mantenham o staus quo, impedindo mudanças drásticas na economia e na sociedade.

“O cenário mais provável é o de que o estado e o mercado continuem a operar na condição de uma cautelosa coexistência.”

Constrições a medidas populistas como a distribuição de bônus e rações especiais por ocasião de grandes festividades nacionais devem forçar o regime a atrair investimentos externos e promover a cooperação econômica internacional.

Essa, para Colin, pode ser uma saída ao mesmo tempo política e econômica para os conflitos da região. “A Coreia do Norte está numa das regiões mais dinâmicas do mundo, possui imensos recursos naturais, recursos humanos qualificados e de baixo custo e uma longa história de desenvolvimento industrial e tecnológico. A cooperação seria melhor que sanções para induzir reformas econômicas e políticas.”

 

Folha leva à Coreia do Norte perguntas de leitores

"O que você gostaria de perguntar a um norte-coreano, se tivesse a oportunidade de visitar esse que é um dos países mais fechados do mundo?" foi a questão feita pela Folha a seus leitores antes de embarcar.

Foram enviadas mais de 70 questões, parte delas respondidas durante a viagem, no final de outubro.

Muito foi visto e ouvido, mas o número de vozes e pontos de vista ausentes deixa sempre muitas questões em aberto.

Erramos: o texto foi alterado

Saíram invertidos os números de PIB per capita (em PPP) do Brasil e da Coreia do Sul, no quadro “Alguns números da Coreia do Norte”. Os dados já foram corrigidos.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.