Dia #4 - Terça, 17 de março. Cena: um mar de prédios. Silêncio
Sacada de casa, 10 horas da manhã. Fecho os olhos para minha meditação diária (meditar, agora mesmo, é um santo remédio contra a ansiedade da clausura) quando algo na sinfonia urbana de ruídos me chama a atenção. O que é? Escuto. Um caminhão aqui, uma voz do outro lado da avenida, um carrinho de compras sendo arrastado no asfalto. E passarinhos —pela primeira vez, ouço em toda sua glória a fauna da árvore em frente ao meu prédio.
Algo parece essencialmente diferente.
E eu percebo que é a continuidade dos sons da cidade.
Agora são discerníveis, individualizáveis. A cidade confinada deixou um pouco de lado o caos, deixou de ser ruído branco.
Aqui de cima, vejo principalmente idosos na rua indo presumivelmente às compras. Uma pessoa com patinete elétrica passa pela ciclovia (o serviço público de bicicletas foi suspenso na segunda-feira). Um ônibus totalmente vazio, uns poucos carros, uma serra elétrica ao longe. Parada, Barcelona não está.
Já os eventos sociais foram transferidos para as redes —e para as sacadas dos apartamentos. A sacada é o novo espaço de confraternização do confinado. De repente, pululam por toda parte vídeos e lives estrelando ciudadanos em sacadas oferecendo a seu público (literalmente) cativo árias de ópera, espetáculos teatrais infantis, concertos improvisados.
Um dos mais populares mostra um dueto improvisado entre um tecladista e um saxofonista vizinhos tocando Titanic e outros temas lacrimosos, para alegria dos que saíram à janela no bairro de Sagrada Família, com o famoso cartão-postal de Gaudí de fundo. Em dois dias, foi compartilhado quase 400 mil vezes no Facebook. Noutro vídeo, vizinhos aparecem jogando bingo à distância, gritando números na escuridão da noite. Viva a inventividade do confinado.
Amenidades à parte, vocês não têm ideia de como está a situação aqui –é o que venho repetindo a todos os meus amigos do Brasil, onde o status da coisa é um pouco, mas muito pouco, anterior ao nosso.
Há apenas uma semana, eu me encontrava em uma bela "masía" (restaurante rural) celebrando a temporada de "calçots" (uma espécie de cebola típica daqui, servida com salsa romesco e um "porrón" de bom vinho, e que recomendo profusamente) com a família do meu namorado. Entre nós, as preocupações eram reais, mas, como direi?, não prementes. O decreto do estado de alarme, no último sábado, veio como um tsunami.
O confinamento está só começando, e a previsão é de que se estenda por semanas ainda indefinidas. Os números oficiais de contágio saltaram para mais de 11 mil, quase 2.000 a mais que o dia anterior, com 500 mortos (e esse número, no momento em que você estiver lendo, já será muito maior).
A mídia local discute aspectos do infradiagnóstico, e chega-se a especular que o total real de infectados pode chegar a 25 mil. Estima-se que a estabilização dos contágios pode começar dentro de 3 a 10 dias. Enquanto isso, que cantemos e meditemos –profundamente– em nossas sacadas.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
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