Diário de confinamento em Barcelona: 'O perigo mora em casa'

'Prestes a completar uma semana de confinamento coletivo, driblar a ansiedade é fundamental'

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Barcelona

Dia #6 – Quinta-feira, 19 de março. Cena:

Hoje bateu.

Enquanto vejo notícias do Brasil e vídeos no "fofobuqui" do Yo-Yo Ma tocando Bach para acalmar os nossos ânimos, a Espanha marca mais de 17 mil contaminados pelo coronavírus, num total de pelo menos 3.400 novos casos em um único dia. E meu coração, não sei pour quoi, bate hoje mais ansioso.

O aumento vertiginoso de casos é esperado. Segundo o Conselho de Saúde de Madri, província que lidera o número de casos, o ápice de contágios deve se dar dentro de aproximadamente seis ou sete dias, com um ponto de inflexão (princípio de queda) a partir de meados de abril.

Mulher caminha usando máscara em frente à Casa Batllo, vazia durante a quarentena em Barcelona - Reuters

Por aqui, hoje anunciam que vão proibir dinheiro vivo para pagar ônibus, reforçar a disponibilidade de testes rápidos para casos leves de coronavírus, e algumas medidas mais que começam a se acumular como "poperô" de mil carros tunados em minha aturdida cabeça, saturada de corona corona corona 24h/7.

Um amigo brasileiro que vive há anos nos EUA com esposa e filhas me conta que a venda de armas no país disparou. E completa: "hoje fui no supermercado e não tinha papel higiênico, toalha, água, farinha, amendoim e biscoitos Oreo. Esses últimos acho que não é por causa de sobrevivência, deve ser para manter as crianças felizes em casa" (e finaliza com um emoticom de carinha marota).

Aqui, num grande supermercado perto de casa, os corredores estão vazios —e as prateleiras também. Quase é mais fácil dizer o que tem, não o que falta: a horda taquicárdica deixou para trás umas fraldas geriátricas XL e lenços ultramentolados (que eu comprei sem me ligar, pensando que-sorte-tenho de encontrar um pacote de lenços para chamar de meu); amaciantes supercaros com perfumes crípticos, tipo "flor de cerejeira e romã"; feijão branco em lata e luvas de limpeza de privada aroma lavanda.

Tanto perfume artificial metido em pacotes plásticos subitamente me dá enjoo. Eu me apoio (com luvas) na gôndola de chocolates (sem chocolates) para respirar fundo (pela máscara, criando aquele bafo quente circular infinito, o que me dá ainda mais angústia). Volto para casa, ruas basicamente vazias, com o tíquete de compra à mão —“é importante, caso a polícia te pare”, comentou um amigo.

À noite, em nosso isolamento domiciliar, vemos "Os Sete Samurais" do Kurosawa na tevê. Dá saudade de casa (sou "mezzo-descendente" de japonês e italiano, um crássico paulistano). Tô de quarentena, mas posso ver um épico de três horas e meia numa quarta à noite, penso. No fim (spoiler, spoiler!!!), o samurai-chefe observa a colina repleta de sepulturas depois da batalha contra ladrões em uma aldeia rural do Japão feudal e comenta ao companheiro: nós perdemos. Quem ganhou foram eles —e a imagem P&B corta pros camponeses cantando e plantando arroz num campo renovado.

Começo a refletir sobre o que vem depois. Depois que a tal batalha mundial acabar.

Como um raio, uma visão randômica e completamente desimportante (ou não) sabota meu fluxo de ideias: penso no Yo-Yo Ma e nos figurinos caseiros em tempos de confinamento. Nos vídeos supracitados, o violoncelista, talvez o mais lendário e pop do mundo, aparece impecável de terno, pronto para ser teletransportado para o Carnegie Hall, no que parece ser a sala de sua casa.

Dedica sua performance “aos profissionais de saúde nas linhas de frente” e oferece um lindo Dvořák com a legenda: “nesses dias de ansiedade, quis encontrar uma maneira de seguir compartilhando algumas músicas que me reconfortam (...) Stay safe”. Meu coração vai se tranquilizando, obrigada. Pode ser fetiche, mas para eu ficar ainda mais emocionada com sua Suíte número 3 para cello de Bach, eu queria ver o Yo-Yo Ma tocando de pijama.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.


Leia a parte 1 do diário de confinamento em Barcelona: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'

Leia a parte 2 do diário de confinamento em Barcelona: 'Teste, só para pacientes internados'

Leia a parte 3 do diário de confinamento em Barcelona: 'A vida vista de cima'

Leia a parte 4 do diário de confinamento em Barcelona: 'Panelaço contra o rei'

Leia a parte 6 do diário de confinamento em Barcelona: 'Solidariedade em tempos de vírus'

Leia a parte 7 do diário de confinamento em Barcelona: 'O lado utópico da crise'

Leia a parte 8 do diário de confinamento em Barcelona: 'O canto dos pássaros urbanos'

Leia a parte 9 do diário de confinamento em Barcelona: 'Os de baixo ficam sem banquete'

Leia a parte 10 do diário de confinamento em Barcelona: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'

Leia a parte 11 do diário de confinamento em Barcelona: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'

Leia a parte 12 do diário de confinamento em Barcelona: 'Tensão cresce em diferentes setores'

Leia a parte 13 do diário de confinamento em Barcelona: 'Único tratamento agora é a disciplina'

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