“Irashaimase!”, ouve-se em todo mercado, loja ou farmácia no Japão. A palavra, estridentemente proferida por atendentes, quer dizer “bem-vindo”. Nos últimos dias, porém, outro gesto se tornou frequente: braços cruzados em xis, na altura do tórax, para sinalizar itens indisponíveis. “Só amanhã”, lamenta-se.
Desde o fim de fevereiro alastrou-se pelo país um boato que dizia que a matéria-prima do papel higiênico japonês vem da China, epicentro do surto do novo coronavírus.
A informação foi desmentida rapidamente, mas não adiantou: no domingo (1º), por exemplo, o estoque do produto de um megamercado de Tóquio esgotou em cinco minutos. Em Toyohashi (a 230 km da capital), uma atendente informava nesta sexta (6): “Tarde demais, desculpe”.
O temor diante do vírus, que já infectou mais de mil pessoas no país, levou muitos japoneses a estocar itens como papel higiênico, lenços, máscaras cirúrgicas, macarrão instantâneo, enlatados, congelados e álcool gel —e até uma vodca polonesa de alto teor alcoólico (95%), que se tornou uma alternativa à ausência de desinfetantes nas prateleiras, segundo a agência japonesa Jiji.
“É um famoso fenômeno sócio-psicológico, a ‘self-fulfilling prophecy’ [profecia autorrealizável]”, diz a socióloga Mie Kito. É um prognóstico que se concretiza a partir de rumores: há o produto X para todos, mas quanto mais pessoas pensam que não há, mais vão comprar para estocar e, assim, o produto X eventualmente se esgotará.
“Senti o impulso de comprar mais máscaras e papéis, mas resisti. Sei e inclusive dou aulas sobre o fenômeno, então estou controlando meus comportamentos de consumo”, relata Kito, 40, que leciona na Universidade Meiji Gakuin, em Tóquio.
O Japão não é o único país a lidar com estoques esgotados por conta do covid-19 —Austrália, Estados Unidos e Europa também tiveram prateleiras esvaziadas. Entretanto, o coronavírus é só a ponta do iceberg no horizonte japonês.
Além da saga do cruzeiro Diamond Princess, que confinou mais de 3.000 passageiros e tripulantes por 14 dias e depois liberou muitos não-diagnosticados, o país patina diante da alta de impostos sobre consumo (de 8% para 10%, vigente desde outubro), de fábricas desaceleradas (a gigante Toyota sinalizou que vai diminuir suas atividades por falta de peças chinesas) e de falências por falta de trabalhadores (1,8% foi o recorde de 2019, a primeira alta desde 2008, segundo o Tokyo Shoko Research).
Acrescente-se à geleira o impacto de tufões (o maior, Hagibis, de outubro, provocou prejuízos de mais de US$ 500 milhões, cerca de R$ 2,3 bilhões) e os problemas do setor de turismo (queda de 34% nas reservas de viagens dentro do país neste mês, ante março de 2019, de acordo com a Associação Japonesa de Agências de Turismo).
Até mesmo Kyoto, um disputado destino instagramável, estrelou uma campanha com a hashtag #NoPeople, mostrando seus principais pontos turísticos desertos neste inverno.
Pré-Olimpíada, o PIB (Produto Interno Bruto) encolheu 6,3% no último trimestre de 2019 e agora teme-se que o país entre em recessão técnica (dois períodos seguidos de crescimento econômico negativo).
Para o economista Paulo Yokota, ex-professor da USP e ex-diretor do Banco Central do Brasil, o quadro atual agrava impasses antigos: dívida pública (240% do PIB, uma das maiores do mundo), pirâmide demográfica desequilibrada (muitos idosos, poucos jovens e ínfimos bebês a caminho) e falta de inovações competitivas no mercado asiático.
Apesar da atmosfera pessimista, o governo japonês vem economizando palavras para comentar a crise.
“A burocracia japonesa é notoriamente dominada pela cultura de ‘kotonakare shugi’ [literalmente ‘não problematização’], que prioriza a estabilidade e a conformidade e rejeita qualquer coisa que possa balançar o barco institucional. Quem decidir acionar o alarme para alertar sobre uma crise iminente pode ser culpado por causá-la”, disse o cientista político Koichi Nakano, professor da Universidade Sophia, em Tóquio, em artigo publicado no jornal The New York Times.
Altamente criticado pelo silêncio diante dos impactos do coronavírus, o primeiro-ministro Shinzo Abe se dirigiu pela primeira vez à imprensa em 29 de fevereiro, mais de um mês após o início do surto. A popularidade do premiê, que está no poder desde 2012 e deve governar até 2021, caiu para 41% (uma queda de 8,3 pontos percentuais, a maior dos últimos dois anos).
Abe pretende declarar “estado de emergência” junto ao parlamento japonês nesta semana. Se aprovada, a declaração pode incluir instruções à sociedade como não sair de casa se não for necessário, além de restringir shows, jogos e festivais e fechar temporariamente creches e colégios.
Entretanto, muitas dessas diretrizes já estão acontecendo no dia a dia: Tóquio e Osaka cancelaram as tradicionalíssimas festas das cerejeiras; eventos como Anime Japan e Tokyo Fashion Week foram suspensos; parques como Tokyo Disney e Universal Studios Japan, paralisados.
Desde 2 de março, é difícil ver adolescentes pedalando e crianças caminhando juntas pelas ruas pela manhã no Japão. Isso porque Abe recomendou o fechamento temporário de todas as escolas públicas até abril, pegando de surpresa muitas famílias, japonesas e imigrantes.
O premiê pediu ainda para agências e empresas liberarem funcionários para passar tempo com os filhos —uma indicação incomum, pois folga é um ponto fora da curva na cultura nipônica de trabalho.
“O governo garantiu pagar aos pais que tiveram de se afastar do trabalho para cuidar dos filhos pequenos. Mas, no detalhe, o subsídio deve valer para trabalhadores de tempo integral, não temporários —neste caso, tirar dias de folga quer dizer perder o pagamento desses dias”, diz a socióloga Kito.
Ficar em casa, estocar e esperar que os dias difíceis passem não é viável para muitos imigrantes, que recebem por hora trabalhada.
Enquanto a rotina dos japoneses mudou com a estocagem de itens considerados básicos, a dos decasséguis (trabalhadores temporários imigrantes) foi ainda mais afetada.
Não é regra, obviamente: há imigrantes estocando 10 kg de arroz extra e três pacotes de 18 rolos de papel higiênico, assim como há japoneses temendo perder o emprego por não ter com quem deixar os filhos. Babás, aliás, são incomuns e caras no país (custam entre 2.000 e 3.000 ienes a hora, ou cerca de R$ 88 a R$ 130, quase o dobro do valor de hora trabalhada de operários).
Entre brasileiros, o contexto de crise também vem dominando as discussões.
“O carro-chefe da economia japonesa é o setor automobilístico, que emprega muitos decasséguis; se tem crise, é afetado. Trabalhava em uma fábrica que fornecia peças para a Toyota, tinha mês bom e mês ruim. Para fugir dessas oscilações, aprendi japonês e mudei de área”, conta Ricardo Pozzuto, 42, que hoje trabalha em uma usina de peças de cerâmica para helicópteros e, no tempo livre, administra uma página no Facebbok voltada para a comunidade brasileira no país.
No caso de muitos decasséguis, outro ponto está influenciando o orçamento: as novas leis trabalhistas, aprovadas em 2018 e instauradas a partir de 2019.
Esperada (a primeira revisão dos últimos 70 anos), a nova legislação foi idealizada para aprimorar condições de trabalho e impedir extrapolações de empresas no país, famoso por longas jornadas, estipulando o máximo de 45 horas extras por mês. No bolso, porém, a limitação reduziu rendimentos de operários —se antes era possível ganhar 300 mil ienes (R$ 13 mil) por mês, o valor baixou para 250 mil ienes (R$ 10 mil), por exemplo.
Há 17 anos no Japão, pai de dois filhos pequenos e vivendo em Miyoshi (na província de Aichi, uma das que mais tem brasileiros), Pozzuto não quer arriscar.
"Para nós, imigrantes, não dá mais pra contar com ‘zangyo’ [hora extra] que é variável, a gente precisa pensar o orçamento com o ‘teiji’ [jornada de 8 horas]. Não dá pra viver na ilha da fantasia, maravilhado com o estilo de vida japonês."
“Entendo: muitas vezes, o cara vivia no vermelho no Brasil e, ao chegar no Japão, descobre um poder aquisitivo maior trabalhando na fábrica, acaba se empolgando e esquece das outras contas a pagar. Cada um precisa analisar a sua situação. A vida é como matemática, se está fácil é porque está errado”, diz Pozzuto.
Andreia Yonamine, 40, é mais otimista. Há 13 meses no Japão, ela, o marido e as duas filhas (de 11 e 19 anos) se instalaram em Toyohashi, também na província de Aichi. Até agora, nada mudou na dinâmica do dia a dia, diz.
“Meu marido, minha filha maior e eu, trabalhamos. No fim de semana, vamos ao culto da igreja evangélica, depois saímos para passear no shopping e jantar fora”, relata. Carro, três iPhones 11, três Apple Watch e um iPad estão entre os itens recentemente adquiridos pela família. Uma casa é a próxima parada.
“Nós viemos para ficar e fazer a vida aqui. Então, nós vivemos na expectativa do melhor, da fé. É viver um dia de cada vez.”
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