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Financial Times Coronavírus

Em países pobres, efeito da quarentena pode ser pior que o do coronavírus

Decretar que as pessoas fiquem em casa é confinar milhões delas em casas exíguas

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David Pilling
Financial Times

O primeiro-ministro Narendra Modi avisou que, se a Índia não acertar nos próximos 21 dias, correrá o risco de zerar os avanços dos últimos 21 anos.

Na África do Sul, Cyril Ramaphosa decretou um dos “lockdowns” (isolamentos domiciliares compulsórios) mais rígidos do mundo antes mesmo de o país ter registrado uma única morte por coronavírus.

Segundo o presidente, o bloqueio de três semanas é necessário para salvar centenas de milhares de vidas.

Com algumas exceções, entre elas o Brasil, líderes em todo o mundo em desenvolvimento estão fechando suas economias para barrar a pandemia.

Mas em países que já têm altos índices de mortalidade devido a outras doenças e que apresentam níveis brutais de pobreza, é possível que a cura seja pior que a doença?

Mulher cobre o rosto do filho com uma roupa em terminal de ônibus de Nova Déli - Sajjad Hussain - 29.mar.2020/AFP

Numa era de pensamento coletivo em que deixar de impor um lockdown corre o risco de levar à acusação de estar possibilitando mortes em massa, vale a pena pelo menos colocar a pergunta.

Mesmo que líderes como Modi ou Ramaphosa tenham dúvidas, pessoalmente, seus instintos de sobrevivência política podem obrigá-los a seguir adiante. É pouco provável que alguém perca apoio por ser duro demais contra o coronavírus.

Para dizer o óbvio, é mais difícil impor um lockdown em um país pobre que em um país rico.

Em cidades enormes como Lagos, Mumbai ou Manila, ordenar que as pessoas fiquem em casa significa confinar milhões de pessoas em domicílios exíguos.

Nas favelas onde até metade da população talvez resida, seis ou até oito pessoas podem ocupar cada cômodo, sem acesso fácil a água ou mesmo sabonete.

A escritora e ativista política indiana Arundhati Roy descreveu o lockdown não como um ato de distanciamento social, mas de “compressão social”.

Já é difícil manter economias ricas funcionando durante um lockdown. A enorme economia informal existente em países pobres é uma faca de dois gumes.

Ela pode atuar como amortecedor de choques. Algumas pessoas talvez possam sair das cidades e subsistir em pequenos lotes familiares. Mas a economia informal dificulta as coisas de outras maneiras.

Pessoas que ganham a vida com dificuldade vendendo mercadorias nas calçadas, consertando panelas, engraxando sapatos ou fazendo tranças nos cabelos de turistas têm poucas opções de sobrevivência se são forçadas a ficar em casa.

Em questão de horas após a decretação do "lockdown" na Índia já se viam cenas lamentáveis de trabalhadores migrantes caminhando de volta a seus locais de origem, em alguns casos situados a centenas de quilômetros.

Os indícios de tensão social são visíveis em toda parte na África do Sul também.

A polícia vem usando balas de borracha e gás lacrimogêneo para implementar o distanciamento social nas densamente povoadas “townships”, onde vive a maioria negra do país ainda hoje, um quarto de século depois do fim do apartheid.

E há as bombas silenciosas, as consequências invisíveis de se combater uma doença, possivelmente ignorando outras.

Enquanto acompanhamos obsessivamente o aumento do número de mortos pelo coronavírus, apenas algumas poucas pessoas dedicadas se preocupam com os possíveis efeitos colaterais das medidas contra o vírus em um país como a República Democrática do Congo, onde no ano passado o sarampo fez 6.200 mortos, e a malária, outros 17 mil.

Se a economia desses países entrar em colapso, assassinos silenciosos como diarreia, desnutrição e mortalidade infantil podem varrer suas populações.

Alex de Waal, diretor-executivo da Fundação pela Paz Mundial, diz que os "lockdowns" só funcionam se os países conseguem fortalecer seu sistema de saúde e pela capacidade de realizar testes de coronavírus.

Eles não funcionam sem a cooperação da população, para a qual é preciso que as pessoas recebam assistência de renda e que existam cadeias de fornecimento que funcionem corretamente.

Nada disso quer dizer que líderes como Modi ou Ramaphosa tenham errado ao impor lockdowns. São decisões verdadeiramente dilacerantes a tomar em tempos de incerteza radical.

Não há muito como saber se a população correrá menos risco por ser mais jovem ou mais risco porque pode estar subnutrida ou ter imunidade comprometida.

No ano passado, segundo o Livreto de Dados sobre Mortalidade Mundial, da ONU, 9,9 milhões de pessoas morreram na Índia e 10,4 milhões na África.

Apenas em 2021 saberemos se esse número terá subido neste ano. Mesmo então, quando já for tarde demais, talvez ainda seja difícil tirar conclusões sensatas.

Tradução de Clara Allain

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