Dia sangrento de protestos contra militares em Mianmar deixa ao menos 2 mortos

Vítimas foram atingidas por disparos na cabeça e no peito em Mandalay; total de mortes entre opositores sobe para 3

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Rangoon (Mianmar) | AFP e Reuters

Subiu para três o número de manifestantes mortos durante os protestos contra o golpe de Estado dado pelos militares em Mianmar em 1º de fevereiro.

Segundo os serviços de emergência de Mandalay (a segunda maior cidade do país), mais de 30 pessoas ficaram feridas e duas morreram neste sábado (20) em decorrência de disparos feitos pelas forças de segurança contra os manifestantes.

"Um baleado na cabeça morreu no local. Outro morreu depois, com um ferimento a bala no peito", disse um médico voluntário à agência de notícias Reuters, sob condição de anonimato. As duas vítimas juntam-se a Mya Khaing, que teve a morte confirmada nesta sexta (19), dez dias depois de também ter sido baleada na cabeça durante protestos na capital do país, Naypyitaw.

O porta-voz da junta militar afirmou que o caso de Mya será investigado, mas as autoridades ainda não se manifestaram publicamente a respeito das duas mortes deste sábado. O noticiário noturno da TV estatal também não fez nenhuma menção aos protestos ou às vítimas.

Os incidentes corroboram relatos de que a polícia está usando munição letal —além das balas de borracha, canhões de água e gás lacrimogêneo— contra os manifestantes, mas a repressão violenta não esmoreceu o ânimo das multidões que continuam indo às ruas diariamente há mais de duas semanas.

"Não estive envolvida neste movimento ainda, mas agora vou. Não estou com medo agora", disse Thidar Hnin, viúva de Thet Naing Win, um carpinteiro de 36 anos identificado como o homem que morreu depois de ser baleado no peito. A segunda vítima ainda não teve a identidade confirmada, mas segundo relatos das equipes de resgate, era um adolescente.

Homem ferido durante protestos em Mianmar recebe atendimento de emergência na cidade de Mandalay - 20.fev.21/Reuters

“Eles podem derrubar uma jovem, mas não podem roubar a esperança e a determinação de um povo determinado”, escreveu no Twitter o enviado especial da ONU para os direitos humanos em Mianmar, Tom Andrews.

O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, condenou neste sábado o "uso de força letal" em Mianmar. "O uso de força letal, intimidação e assédio contra manifestantes pacíficos é inaceitável", escreveu Guterres em rede social.

Nesta sábado, grupos de jovens fizeram novas homenagens a Mya durante protestos em Rangoon e em Naypyitaw. "A tristeza pela morte dela é uma coisa, mas também temos coragem de continuar por ela", disse o estudante Khin Maw Maw à Reuters. Nas redes sociais, a jovem, que completou 20 anos na quinta-feira (18) em coma, um dia antes de morrer, vem sendo chamada de heroína e mártir.

"Expressamos nossas mais profundas condolências à família dela e a todos os feridos durante os protestos pacíficos em Mianmar", disse o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price, nesta sexta. "Condenamos toda a violência contra o povo de Mianmar e reiteramos nossos apelos ao Exército para não recorrer à violência contra manifestantes pacíficos."

Além de Naypyitaw, Rangoon (a maior cidade de Mianmar) e Mandalay, os atos deste sábado se espalharam por várias regiões do país. Os confrontos têm sido recorrentes: cenas de manifestantes lançando pedras contra os policiais que, por sua vez, respondem com gás lacrimogêneo e tiros —embora nem sempre esteja claro que tipo de munição eles estão usando— tornaram-se comuns desde o golpe de 1º de fevereiro.

Também neste sábado, a polícia de Mianmar prendeu um ator, Lu Min, por ele ter expressado oposição ao golpe militar, de acordo com a sua mulher, Khin Sabai Oo.

“Eles forçaram a porta e o levaram sem me dizer para onde. Não consegui para-los. Eles não me disseram”, disse a esposa em vídeo postado em rede social.

Min, que costumava participar das manifestações em Rangoon, era uma entre seis celebridades colocadas pelos militares em uma lista de procurados por incitar a desobediência civil. Os acusados estão sujeitos a penas de até dois anos.

Os atos pedem o fim da ditadura, a revogação da Constituição de 2008, considerada favorável ao Exército, e a libertação de presos políticos, como Aung San Suu Kyi, conselheira de Estado de Mianmar e, na prática, líder do governo civil deposto pelos militares. Desde a tomada de poder, 546 pessoas foram detidas pela junta que agora governa o país, de acordo com a Associação de Assistência a Prisioneiros Políticos de Mianmar.

Suu Kyi, que já passou 15 anos em prisão domiciliar, foi detida sob uma acusação obscura de violação de normas comerciais —ela teria importado ilegalmente seis walkie-talkies. Nesta semana, ela também foi acusada de uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus, a mesma denúncia apresentada contra o presidente Win Myint, também deposto e detido.

A Liga Nacional pela Democracia (LND), partido de Suu Kyi e Myint que comanda o país desde 2015, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento nas últimas eleições em Mianmar, realizadas em novembro do ano passado. A legenda, entretanto, foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras. ​

O Exército vem tentando usar supostas acusações de fraude no pleito como justificativa para a tomada de poder. Os militares também acrescentaram à narrativa o argumento de que a comissão eleitoral do país usou a pandemia de coronavírus como pretexto para impedir a realização de uma campanha justa. Dizem ainda que agiram de acordo com a Constituição e que a maior parte da população apoia sua conduta, acusando manifestantes de incitarem a violência.

O general Min Aung Hlaing, chefe das Forças Armadas e líder da junta que agora comanda o país, decretou em 1º de fevereiro um estado de emergência que deve durar um ano. “Colocaremos em operação uma verdadeira democracia multipartidária”, declarou o novo regime, acrescentando que o poder será transferido após “a realização de eleições gerais livres e justas”. A promessa, apesar de reiterada, é encarada com ceticismo pelos mianmarenses opositores e por observadores internacionais.

A agitação nas ruas, que completou duas semanas nesta sexta, reviveu as memórias sobre o violento histórico de reações a protestos em Mianmar. Na revolta de 1988, mais de 3.000 manifestantes foram mortos pelas forças de segurança do país durante atos contra o regime militar —o país viveu sob uma ditadura de 1962 a 2011.

O golpe segue recebendo duras críticas da comunidade internacional. Líderes políticos de diversas nacionalidades pediram o restabelecimento do governo democraticamente eleito e a libertação de todos os presos civis.

Países como EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Japão, Índia e Nova Zelândia fizeram apelos sobre a necessidade de rápida restauração da democracia e, em alguns casos, anunciaram sanções aos generais que assumiram o comando do país.

O presidente americano, Joe Biden, cujo governo considera a tomada de poder em Mianmar um golpe de Estado, anunciou na semana passada um conjunto de sanções contra os militares, incluindo o bloqueio de bens do governo mianmarense, que somam US$ 1 bilhão (R$ 5,3 bi).

Há, entretanto, poucas referências históricas de militares mianmarenses cedendo a pressões externas, com exceção das influências de Rússia e China. Pequim, como principal parceiro regional de Mianmar, vinha adotando uma abordagem mais branda, sem condenar abertamente o golpe. Mais recentemente, porém, juntou-se a outros países-membros do Conselho de Segurança da ONU para pedir a libertação de Suu Kyi.

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, por sua vez, não mencionou golpe militar ou presos políticos em uma nota divulgada sobre o assunto e limita-se a dizer que tem a expectativa de “um rápido retorno do país à normalidade democrática e de preservação do Estado de Direito”.


CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

  • 1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente
  • 1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar
  • 1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência
  • 1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais
  • 1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder
  • 1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz
  • 1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições
  • 2008: Assembleia aprova nova Constituição
  • 2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido
  • 2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento
  • 2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro
  • 2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência
  • 2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar
  • 2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado
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